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Documento 62016CJ0498

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 25 de janeiro de 2018.
Maximilian Schrems contra Facebook Ireland Limited.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof.
Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Artigos 15.o e 16.o — Competência judiciária em matéria de contratos celebrados por consumidores — Conceito de “consumidor” — Cessão entre consumidores de direitos a exercer contra um mesmo profissional.
Processo C-498/16.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2018:37

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

25 de janeiro de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Artigos 15.o e 16.o — Competência judiciária em matéria de contratos celebrados por consumidores — Conceito de “consumidor” — Cessão entre consumidores de direitos a exercer contra um mesmo profissional»

No processo C‑498/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria), por decisão de 20 de julho de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de setembro de 2016, no processo

Maximilian Schrems

contra

Facebook Ireland Limited,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, J. Malenovský, M. Safjan (relator), D. Šváby e M. Vilaras, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 19 de julho de 2017,

vistas as observações apresentadas:

em representação de M. Schrems, por W. Proksch e H. Hofmann, Rechtsanwälte,

em representação da Facebook Ireland Limited, por N. Pitkowitz, M. Foerster e K. Struckmann, Rechtsanwälte,

em representação do Governo austríaco, por G. Eberhard e G. Kunnert, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por T. Henze, R. Kanitz e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

em representação do Governo português, por M. Figueiredo, L. Inez Fernandes e S. Duarte Afonso, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin e M. Heller, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de novembro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 15.o e 16.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Maximilian Schrems, com domicílio na Áustria, à Facebook Ireland Limited, cuja sede social se situa na Irlanda, a respeito de pedidos de declaração, de cessação, de informações, de prestação de contas, bem como do pagamento de um montante de 4000 euros, relativamente às contas privadas Facebook tanto de M. Schrems como de mais sete pessoas que lhe cederam os seus direitos relativos a essas contas.

Quadro jurídico

Regulamento n.o 44/2001

3

Nos termos dos considerandos 8, 11 e 13 do Regulamento n.o 44/2001:

«(8)

Os litígios abrangidos pelo presente regulamento devem ter conexão com o território dos Estados‑Membros que este vincula. Devem, portanto, aplicar‑se, em princípio, as regras comuns em matéria de competência sempre que o requerido esteja domiciliado num desses Estados‑Membros.

[…]

(11)

As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular‑se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, exceto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

[…]

(13)

No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.»

4

O artigo 2.o do referido regulamento dispõe:

«1.   Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, seja qual for a sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.

2.   As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado‑Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas nesse Estado‑Membro às regras de competência aplicáveis aos nacionais.»

5

A secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 44/2001, sob a epígrafe «Competência em matéria de contratos celebrados por consumidores», inclui os artigos 15.o a 17.o

6

O artigo 15.o deste regulamento dispõe:

«1.   Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional, a seguir denominada “o consumidor”, a competência será determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.o e no ponto 5 do artigo 5.o:

a)

Quando se trate de venda, a prestações, de bens móveis corpóreos; ou

b)

Quando se trate de empréstimo a prestações ou de outra operação de crédito relacionados com o financiamento da venda de tais bens; ou

c)

Em todos os outros casos, quando o contrato tenha sido concluído com uma pessoa que tem atividade comercial ou profissional no Estado‑Membro do domicílio do consumidor ou dirige essa atividade, por quaisquer meios, a esse Estado‑Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado‑Membro, e o dito contrato seja abrangido por essa atividade.

2.   O cocontratante do consumidor que, não tendo domicílio no território de um Estado‑Membro, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado‑Membro, é considerado, quanto aos litígios relativos à sua exploração, como tendo domicílio no território desse Estado.

3.   O disposto na presente secção não se aplica ao contrato de transporte, com exceção do contrato que prevê a prestação combinada de transporte e alojamento por um preço global».

7

O artigo 16.o do referido regulamento prevê:

«1.   O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer perante os tribunais do Estado‑Membro em cujo território estiver domiciliada essa parte, quer perante o tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio.

2.   A outra parte no contrato só pode intentar uma ação contra o consumidor perante os tribunais do Estado‑Membro em cujo território estiver domiciliado o consumidor.

3.   O disposto no presente artigo não prejudica o direito de formular um pedido reconvencional perante o tribunal em que tiver sido instaurada a ação principal, nos termos da presente secção.»

8

O artigo 17.o do mesmo regulamento enuncia:

«As partes só podem convencionar derrogações ao disposto na presente secção desde que tais convenções:

1)

Sejam posteriores ao nascimento do litígio; ou

2)

Permitam ao consumidor recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção; ou

3)

Sejam concluídas entre o consumidor e o seu cocontratante, ambos com domicílio ou residência habitual, no momento da celebração do contrato, num mesmo Estado‑Membro, e atribuam competência aos tribunais desse Estado‑Membro, salvo se a lei desse Estado‑Membro não permitir tais convenções.»

Regulamento (UE) n.o 1215/2012

9

O Regulamento n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), revogou o Regulamento n.o 44/2001. Todavia, em conformidade com o seu artigo 66.o, n.o 1, o Regulamento n.o 1215/2012 aplica‑se apenas às ações judiciais intentadas em 10 de janeiro de 2015 ou em data posterior.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

10

M. Schrems utiliza a rede social Facebook desde 2008. Inicialmente, utilizou esta rede social apenas para fins pessoais e sob pseudónimo. Desde 2010, consagra uma conta Facebook só às suas atividades privadas como a troca de fotografias, conversas e publicação de conteúdos com cerca de 250 amigos. Nessa conta, escreve o seu nome em caracteres cirílicos, de modo a impedir qualquer busca através do seu nome. Além disso, desde 2011, abriu uma página Facebook que ele próprio registou e criou, para informar os internautas sobre as suas ações contra a Facebook Ireland, as suas conferências, a sua participação em debates e as suas aparições nos media e ainda para lançar campanhas de angariação de fundos e fazer publicidade aos seus livros.

11

Desde agosto de 2011, M. Schrems apresentou na Comissão Irlandesa para a Proteção de Dados 23 queixas contra a Facebook Ireland, tendo uma delas dado origem a um pedido de decisão prejudicial no Tribunal de Justiça (acórdão de 6 de outubro de 2015, Schrems, C‑362/14, EU:C:2015:650).

12

M. Schrems publicou dois livros relativos à sua ação contra alegadas violações da proteção de dados, proferiu conferências, algumas das quais pagas, nomeadamente para organizadores profissionais de eventos, registou numerosos sítios web como blogues, petições em linha e sítios para custear as ações contra a demandada no processo principal. Por outro lado, constituiu uma associação destinada a assegurar o respeito do direito fundamental à proteção de dados, recebeu diversas distinções e obteve a cessão de direitos, por parte de mais de 25000 pessoas de todo o mundo, para os exercer no presente processo.

13

A associação constituída por M. Schrems destinada a assegurar o respeito do direito fundamental à proteção de dados não tem fins lucrativos e tem por objeto fazer respeitar o direito fundamental à proteção dos dados, realizar o trabalho necessário de acompanhamento em matéria de informação e junto dos media, bem como de esclarecimento político. O seu objetivo consiste em apoiar financeiramente processos modelo de interesse geral contra empresas que possam ameaçar este direito fundamental. Pretende‑se igualmente financiar as despesas necessárias e, para o efeito, recolher, gerir e aplicar os donativos.

14

M. Schrems alega, em substância, que a demandada é responsável por numerosas violações de disposições em matéria de proteção de dados, nomeadamente do Datenschutzgesetz 2000 (Lei austríaca de 2000 relativa à proteção de dados), do Data Protection Act 1988 (Lei de 1988 relativa à proteção de dados), ou da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO 1995, L 281, p. 31).

15

M. Schrems apresentou no Landesgericht für Zivilrechtssachen Wien (Tribunal Regional Cível de Viena, Áustria) pedidos detalhados, em primeiro lugar, de declaração relativamente à qualidade de mero prestador de serviços da demandada no processo principal e à sujeição desta às instruções dadas ou à sua qualidade de mandante, quando o tratamento é efetuado em proveito próprio, bem como à invalidade de cláusulas contratuais relativas às condições de utilização, em segundo lugar, de cessação da utilização para fins próprios ou de terceiros dos seus dados, em terceiro lugar, de prestação de informações sobre a utilização dos seus dados e, em quarto lugar, de prestação de contas e de execução relativamente ao ajustamento das condições contratuais, reparação dos danos e enriquecimento sem causa.

16

Afirma ter‑se baseado para este efeito tanto nos seus próprios direitos como em direitos semelhantes que outras sete contrapartes contratuais da demandada no processo principal, também consumidores e residentes na Áustria, Alemanha ou Índia, lhe cederam com vista à sua ação contra a Facebook Ireland.

17

Segundo M. Schrems, o referido órgão jurisdicional é internacionalmente competente enquanto foro do consumidor, em conformidade com o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001.

18

A Facebook Ireland suscita, nomeadamente, a exceção da falta de competência internacional.

19

O Landesgericht für Zivilrechtssachen Wien (Tribunal Regional Cível de Viena) julgou improcedente a ação de M. Schrems com o fundamento de que este, ao utilizar o Facebook igualmente para fins profissionais, não podia invocar o foro do consumidor. Segundo o referido órgão jurisdicional, o foro baseado na pessoa do cedente não se transmite ao cessionário.

20

M. Schrems interpôs recurso do despacho de primeira instância no Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria), que alterou parcialmente o referido despacho. Julgou procedentes os pedidos relacionados com o contrato celebrado pessoalmente entre o demandante no processo principal e a demandada no processo principal. Em contrapartida, negou provimento ao recurso, na medida em que tinha por objeto os direitos cedidos, com o fundamento de que o foro do consumidor é reservado ao demandante no processo principal quando formula pedidos próprios. Por conseguinte, M. Schrems não podia invocar a aplicação do artigo 16.o, n.o 1, segunda parte, do Regulamento n.o 44/2001, com vista ao exercício de direitos cedidos. Contudo, quanto ao restante, o referido órgão jurisdicional julgou improcedentes as exceções processuais suscitadas pela Facebook Ireland.

21

Ambas as partes interpuseram recursos de «Revision» desta decisão no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria).

22

Esse órgão jurisdicional observa que, se o demandante no processo principal fosse considerado «consumidor», o processo deveria ser iniciado em Viena. O mesmo se aplica ao processo relativo aos direitos de consumidores que residem em Viena. Isso não representaria um encargo adicional significativo para a demandada no processo principal se o presente processo se destinasse igualmente a exercer contra ela outros direitos cedidos.

23

Porém, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio considera que é impossível responder com a certeza exigida à questão de saber em que medida um consumidor ao qual foram cedidos direitos de outros consumidores, com vista ao seu exercício coletivo, pode invocar o foro do consumidor.

24

Foi nestas circunstâncias que o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 15.o do Regulamento [n.o 44/2001] ser interpretado no sentido de que um “consumidor” na aceção deste artigo perde esta qualidade quando, após uma utilização prolongada de uma conta privada no Facebook e, no contexto da defesa da aplicação dos seus direitos, publica livros e também faz conferências por vezes remuneradas, gere sítios web, recolhe donativos para a defesa da aplicação dos direitos e obtém a cedência dos direitos de vários consumidores mediante a garantia de que estes receberão os eventuais benefícios resultantes dos processos ganhos após a dedução das despesas processuais?

2)

Deve o artigo 16.o do Regulamento [n.o 44/2001] ser interpretado no sentido de que um consumidor de um Estado‑Membro também pode invocar no tribunal do foro do demandante, simultaneamente com os seus próprios direitos emergentes de contratos como consumidor, direitos de que sejam titulares outros consumidores com domicílio:

a)

no mesmo Estado‑Membro,

b)

noutro Estado‑Membro, ou

c)

num Estado terceiro,

se tais direitos, derivados de contratos celebrados por consumidores com o mesmo demandado no mesmo contexto jurídico, lhe tiverem sido cedidos e se tal cessão não tiver sido feita no contexto da atividade comercial ou profissional do demandante, mas apenas se destinar à defesa conjunta dos respetivos direitos?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

25

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que um utilizador de uma conta privada Facebook não perde a qualidade de «consumidor», na aceção deste artigo, quando publica livros, faz conferências, gere sítios web, recolhe donativos e obtém a cedência dos direitos de vários consumidores para os exercer em justiça.

26

A título preliminar, importa recordar que, na medida em que o Regulamento n.o 44/2001 substitui a Convenção de 27 de setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pelas sucessivas Convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção, a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições da referida Convenção é válida igualmente para as do referido regulamento, quando as disposições desses instrumentos possam ser qualificadas de equivalentes (acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 21 e jurisprudência referida), como se verifica no caso em apreço.

27

No sistema do Regulamento n.o 44/2001, a competência dos tribunais do Estado‑Membro em cujo território o requerido tem o seu domicílio constitui o princípio geral enunciado no artigo 2.o, n.o 1, deste regulamento. É apenas por derrogação a este princípio que essa disposição prevê casos, taxativamente enumerados, em que o requerido pode ou deve ser demandado perante um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro. Consequentemente, as normas de competência derrogatórias a esse princípio geral são de interpretação estrita, no sentido de que não podem dar lugar a uma interpretação que extravase as hipóteses expressamente previstas pelo referido regulamento (v., neste sentido, acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 32).

28

Embora os conceitos utilizados pelo Regulamento n.o 44/2001, nomeadamente os que figuram no artigo 15.o, n.o 1, deste regulamento, devam ser interpretados de maneira autónoma, reportando‑se principalmente ao sistema e aos objetivos do referido regulamento, para assegurar a sua aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 22 e jurisprudência referida), é necessário, para garantir o respeito dos objetivos prosseguidos pelo legislador da União no domínio dos contratos celebrados por consumidores e a coerência do direito da União, ter também em conta o conceito de «consumidor» contido noutras regulamentações do direito da União (acórdão de 5 de dezembro de 2013, Vapenik, C‑508/12, EU:C:2013:790, n.o 25).

29

A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «consumidor» na aceção dos artigos 15.o e 16.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado de forma restritiva, atendendo‑se à posição dessa pessoa num contrato determinado, em conjugação com a natureza e finalidade deste, e não à situação subjetiva dessa mesma pessoa, pois uma única e mesma pessoa pode ser considerada consumidor no âmbito de determinadas operações e operador económico no âmbito de outras (v., neste sentido, acórdãos de 3 de julho de 1997, Benincasa, C‑269/95, EU:C:1997:337, n.o 16, e de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 36).

30

O Tribunal de Justiça concluiu daí que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objetivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, ficam sob a alçada do regime especial previsto pelo referido regulamento para proteção do consumidor enquanto parte considerada mais fraca, ao passo que essa proteção não se justifica em casos de contratos cujo objetivo é uma atividade profissional (v., neste sentido, acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 36).

31

Daqui se conclui que as regras de competência específicas dos artigos 15.o a 17.o do Regulamento n.o 44/2001, em princípio, só são aplicáveis nos casos em que o contrato celebrado entre as partes tem por finalidade a utilização não profissional do bem ou serviço em causa (v., neste sentido, acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 37).

32

No que se refere em especial a uma pessoa que celebra um contrato para um fim parcialmente relacionado com a sua atividade profissional e que por conseguinte só em parte é estranho a essa atividade, o Tribunal de Justiça considerou que esta só poderia beneficiar das referidas disposições no caso do nexo do referido contrato com a atividade profissional do interessado ser tão ténue que se tornaria marginal e, por isso, só teria um papel despiciendo no contexto da operação a propósito da qual o contrato foi celebrado, considerada globalmente (v., neste sentido, acórdão de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 39).

33

É à luz destes princípios que há que examinar se um utilizador de uma conta Facebook não perde a qualidade de «consumidor», na aceção do artigo 15.o do Regulamento n.o 44/2001, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal.

34

A este respeito, resulta nomeadamente da decisão de reenvio que M. Schrems começou por utilizar, entre 2008 e 2010, uma conta Facebook que tinha aberto exclusivamente para fins privados, ao passo que, a partir de 2011, utilizou igualmente uma página Facebook.

35

Segundo o demandante no processo principal, existem dois contratos distintos, a saber, um para a página Facebook e outro para a conta Facebook. Em contrapartida, segundo a Facebook Ireland, a conta Facebook e a página Facebook fazem parte de uma única e mesma relação contratual.

36

Embora caiba ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se M. Schrems e a Facebook Ireland estão efetivamente ligados por um ou mais contratos e daí retirar as respetivas consequências no que respeita à qualidade de «consumidor», há que precisar que mesmo uma eventual ligação contratual entre a conta Facebook e a página Facebook não prejudica a apreciação da referida qualidade à luz dos princípios recordados nos n.os 29 a 32 do presente acórdão.

37

No âmbito desta apreciação, em conformidade com a exigência, recordada no n.o 29 do presente acórdão, de interpretar de maneira restritiva o conceito de «consumidor», na aceção do artigo 15.o do Regulamento n.o 44/2001, há, nomeadamente, que ter em conta, no que respeita aos serviços de uma rede social digital destinados a serem utilizados durante um longo período de tempo, a evolução posterior da utilização que é feita desses serviços.

38

Esta interpretação implica, nomeadamente, que um demandante utilizador desses serviços possa invocar a qualidade de consumidor apenas se a utilização essencialmente não profissional desses serviços, para a qual foi inicialmente celebrado um contrato, não tiver adquirido, em seguida, um caráter essencialmente profissional.

39

Em contrapartida, uma vez que o conceito de «consumidor» é definido por oposição ao de «operador económico» (v., neste sentido, acórdãos de 3 de julho de 1997, Benincasa, C‑269/95, EU:C:1997:337, n.o 16, e de 20 de janeiro de 2005, Gruber, C‑464/01, EU:C:2005:32, n.o 36) e que é independente dos conhecimentos e das informações de que a pessoa em questão realmente dispõe (acórdão de 3 de setembro de 2015, Costea, C‑110/14, EU:C:2015:538, n.o 21), nem a experiência que essa pessoa pode adquirir no domínio em que se inserem os referidos serviços nem o seu compromisso para efeitos da representação dos direitos e dos interesses dos utilizadores desses serviços lhe retiram a qualidade de «consumidor», na aceção do artigo 15.o do Regulamento n.o 44/2001.

40

Com efeito, uma interpretação do conceito de «consumidor» que exclua tais atividades impediria uma defesa efetiva dos direitos que os consumidores dispõem relativamente aos seus cocontratantes profissionais, incluindo os relativos à proteção dos seus dados pessoais. Tal interpretação violaria o objetivo enunciado no artigo 169.o, n.o 1, TFUE de promover o seu direito à organização para defesa dos seus interesses.

41

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 15.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que um utilizador de uma conta privada Facebook não perde a qualidade de «consumidor», na aceção deste artigo, quando publica livros, faz conferências, gere sítios web, recolhe donativos e obtém a cedência dos direitos de vários consumidores para os exercer em justiça.

Quanto à segunda questão

42

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que não se aplica à ação de um consumidor destinada a exercer, no tribunal do lugar em que está domiciliado, não só os seus próprios direitos mas também os direitos cedidos por outros consumidores domiciliados no mesmo Estado‑Membro, noutros Estados‑Membros ou em Estados terceiros.

43

A este propósito, importa recordar, antes de mais, que as regras de competência que figuram na secção 4 do capítulo II do Regulamento n.o 44/2001 constituem uma derrogação quer à regra geral de competência prevista no artigo 2.o, n.o 1, deste regulamento, que atribui competência aos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do domicílio do demandado, quer à regra de competência especial em matéria de contratos, prevista no artigo 5.o, ponto 1, deste mesmo regulamento, segundo a qual o tribunal competente é o do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão. Assim, essas regras devem necessariamente ser objeto de interpretação estrita (v. acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 28 e jurisprudência referida).

44

Em seguida, o Tribunal de Justiça já salientou que, uma vez que o regime especial instituído nos artigos 15.o e seguintes do Regulamento n.o 44/2001 é inspirado pela preocupação de proteger o consumidor enquanto parte no contrato reputada economicamente mais fraca e juridicamente menos experiente do que o seu cocontratante, o consumidor só é protegido na medida em que for pessoalmente demandante ou demandado num processo. Consequentemente, o consumidor que não seja ele próprio parte no contrato de consumo em causa não pode beneficiar do foro do consumidor (v., neste sentido, acórdão de 19 de janeiro de 1993, Shearson Lehman Hutton, C‑89/91, EU:C:1993:15, n.os 18, 23 e 24). Estas considerações devem valer também em relação a um consumidor cessionário de direitos de outros consumidores.

45

Com efeito, as regras de competência em matéria de contratos celebrados por consumidores, estabelecidas no artigo 16.o, n.o 1, do referido regulamento, aplicam‑se, de acordo com a redação desta disposição, apenas à ação intentada pelo consumidor contra a outra parte no contrato, o que implica necessariamente a celebração de um contrato entre o consumidor e o profissional em questão (acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa, C‑375/13, EU:C:2015:37, n.o 32).

46

O requisito relativo à existência de um contrato celebrado entre o consumidor e o profissional em questão permite garantir a previsibilidade da atribuição de competência, que constitui um dos objetivos do Regulamento n.o 44/2001, como resulta do seu considerando 11.

47

Por último, contrariamente ao que foi alegado, no âmbito do presente processo, por M. Schrems e pelos Governos austríaco e alemão, o facto de o cessionário consumidor poder, em todo o caso, intentar, no tribunal do lugar do seu domicílio, uma ação fundada nos direitos de que goza pessoalmente decorrentes de um contrato celebrado com o demandado, análogos aos que lhe foram cedidos, não é suscetível de incluir igualmente estes últimos na competência desse tribunal.

48

Com efeito, como o Tribunal de Justiça precisou noutro contexto, uma cessão de créditos não pode, em si mesma, ter incidência na determinação do tribunal competente (acórdãos de 18 de julho de 2013, ÖFAB, C‑147/12, EU:C:2013:490, n.o 58, e de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 35). Daqui resulta que a competência dos tribunais diferentes dos referidos expressamente pelo Regulamento n.o 44/2001 não pode ser estabelecida através de uma concentração de vários direitos na esfera de um só requerente. Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 98 das suas conclusões, uma cessão como a que está em causa no processo principal não pode fundamentar um novo foro específico ao consumidor cessionário.

49

Em face de todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que não se aplica à ação de um consumidor para invocar, no tribunal do lugar em que está domiciliado, não só os seus próprios direitos mas também os direitos cedidos por outros consumidores domiciliados no mesmo Estado‑Membro, noutros Estados‑Membros ou em Estados terceiros.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que um utilizador de uma conta privada Facebook não perde a qualidade de «consumidor», na aceção deste artigo, quando publica livros, faz conferências, gere sítios web, recolhe donativos e obtém a cedência dos direitos de vários consumidores para os exercer em justiça.

 

2)

O artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que não se aplica à ação de um consumidor para invocar, no tribunal do lugar em que está domiciliado, não só os seus próprios direitos mas também os direitos cedidos por outros consumidores domiciliados no mesmo Estado‑Membro, noutros Estados‑Membros ou em Estados terceiros.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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