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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62014CJ0549

Acórdão do Tribunal de Justiça (Oitava Secção) de 7 de setembro de 2016.
Finn Frogne A/S contra Rigspolitiet ved Center for Beredskabskommunikation.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Højesteret.
Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 2.° — Princípio da igualdade de tratamento — Obrigação de transparência — Contrato relativo ao fornecimento de um sistema de comunicações complexo — Dificuldades de execução — Divergência das partes quanto à responsabilidade — Transação — Redução do âmbito do contrato — Transformação de uma locação de material numa venda — Alteração substancial de um contrato — Justificação pela oportunidade objetiva de encontrar uma solução por acordo.
Processo C-549/14.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2016:634

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

7 de setembro de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 2.o — Princípio da igualdade de tratamento — Obrigação de transparência — Contrato relativo ao fornecimento de um sistema de comunicações complexo — Dificuldades de execução — Divergência das partes quanto à responsabilidade — Transação — Redução do âmbito do contrato — Transformação de uma locação de material numa venda — Alteração substancial de um contrato — Justificação pela oportunidade objetiva de encontrar uma solução por acordo»

No processo C‑549/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Højesteret (Supremo Tribunal, Dinamarca), por decisão de 27 de novembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de dezembro de 2014, no processo

Finn Frogne A/S

contra

Rigspolitiet ved Center for Beredskabskommunikation,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: D. Šváby (relator), presidente de secção, J. Malenovský e M. Vilaras, juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Finn Frogne A/S, por K. Dyekjær, C. Bonde, P. Gjørtler, H. B. Andersen, S. Stenderup Jensen, advokater, e J. Grayston, solicitor,

em representação do Governo dinamarquês, por C. Thorning, na qualidade de agente, assistido por P. Hedegaard Madsen, advokat,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Grasso, avvocato dello Stato,

em representação do Governo austríaco, por M. Fruhmann, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por L. Grønfeldt e A. Tokár, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114, e retificação no JO 2004, L 351, p. 44).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Finn Frogne A/S (a seguir «Frogne») ao Rigspolitiet ved Center for Beredskabskommunikation (Centro de Comunicações de Emergência, Polícia Nacional Dinamarquesa) (a seguir «CFB») a respeito da validade de um acordo extrajudicial de transação celebrado entre o CFB, na qualidade de entidade adjudicante, e a Terma A/S, adjudicatária num contrato público, no âmbito da execução desse contrato.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do considerando 2 da Diretiva 2004/18:

«[...] A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado, nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Todavia, no que se refere aos contratos públicos que ultrapassem um determinado valor, é aconselhável estabelecer disposições que instituam uma coordenação comunitária dos procedimentos nacionais para a adjudicação dos contratos públicos que se baseiem nesses princípios por forma a garantir os seus efeitos e a abertura à concorrência dos contratos públicos. Por conseguinte, tais disposições de coordenação devem ser interpretadas em conformidade com as regras e princípios atrás referidos, bem como com as restantes regras do Tratado.»

4

O artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Princípios de adjudicação dos contratos», prevê:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

5

O artigo 28.o da referida diretiva prevê:

«Para celebrarem os seus contratos públicos, as entidades adjudicantes aplicam os processos nacionais, adaptados para os efeitos da presente diretiva.

Devem celebrar esses contratos públicos recorrendo a concursos públicos ou limitados. [...] Nos casos e nas circunstâncias específicas expressamente previstas nos artigos 30.° e 31.°, podem recorrer a um procedimento por negociação, com ou sem publicação de anúncio de concurso.»

6

O artigo 31.o da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«As entidades adjudicantes podem celebrar contratos públicos recorrendo a um procedimento por negociação, sem publicação prévia de um anúncio, nos seguintes casos:

1)

No caso dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços:

[...]

c)

Na medida do estritamente necessário, quando, por motivo imperioso resultante de acontecimentos imprevisíveis para as entidades adjudicantes em questão, não possam ser cumpridos os prazos exigidos pelos concursos públicos e limitados ou pelos procedimentos por negociação com publicação de um anúncio de concurso, referidos no artigo 30.o As circunstâncias invocadas para justificar a urgência imperiosa não devem em caso algum ser imputáveis às entidades adjudicantes;

[...]

4)

No caso dos contratos de empreitada de obras públicas e dos contratos públicos de serviços:

a)

Relativamente a obras ou serviços complementares que não constem do projeto inicialmente previsto nem do contrato inicial e que se tenham tornado necessários, na sequência de uma circunstância imprevista, para a execução da obra ou a prestação do serviço neles descritos, na condição de o adjudicatário ser o mesmo operador económico que executa a referida obra ou o referido serviço:

quando essas obras ou esses serviços complementares não possam ser técnica ou economicamente separados do objeto de contrato inicial sem grande inconveniente para as entidades adjudicantes

ou

quando essas obras ou esses serviços, embora possam ser separados do objeto do contrato inicial, sejam absolutamente necessários à sua conclusão.

Contudo, o valor total dos contratos relativos a obras ou serviços complementares não pode exceder 50% do montante do contrato inicial;

[...]»

7

A Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras (JO 1989, L 395, p. 33), conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007 (JO 2007, L 335, p. 31) (a seguir «Diretiva 89/665»), inclui um artigo 2.o‑D, com a epígrafe «Privação de efeitos». Nos termos deste artigo:

«1.   Os Estados‑Membros devem assegurar que o contrato seja considerado desprovido de efeitos por uma instância de recurso independente da entidade adjudicante ou que a não produção de efeitos do contrato resulte de uma decisão dessa instância de recurso em qualquer dos seguintes casos:

a)

Se a entidade adjudicante tiver adjudicado um contrato sem publicação prévia de um anúncio de concurso no Jornal Oficial da União Europeia sem que tal seja permitido nos termos da Diretiva 2004/18/CE;

[...]

4.   Os Estados‑Membros devem estabelecer que a alínea a) do n.o 1 do presente artigo não é aplicável caso:

a entidade adjudicante considere que a adjudicação de um contrato sem publicação prévia de um anúncio de concurso no Jornal Oficial da União Europeia é permitida nos termos da Diretiva 2004/18/CE,

a entidade adjudicante tenha publicado no Jornal Oficial da União Europeia um anúncio, tal como descrito no artigo 3.o‑A da presente diretiva, manifestando a sua intenção de celebrar o contrato, e

o contrato não tenha sido celebrado antes do termo de um prazo mínimo de 10 dias consecutivos a contar do dia seguinte à data da publicação do anúncio.

[...]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

8

No ano de 2007, o Estado dinamarquês lançou um concurso público, sob a forma de diálogo concorrencial, para fornecimento de um sistema global de comunicações comum aos serviços de emergência e manutenção desse sistema durante vários anos. Posteriormente, o CFB tornou‑se a autoridade pública competente para este concurso.

9

O referido contrato foi adjudicado à Terma. O contrato celebrado com esta em 4 de fevereiro de 2008 abrangia um montante total de 527 milhões de coroas dinamarquesas (DKK) (cerca de 70629800 euros), correspondente a uma solução mínima que se encontrava descrita na documentação do concurso, respeitando o remanescente a opções e a prestações que não seriam necessariamente objeto de um pedido de execução.

10

Durante a execução do referido contrato, tendo surgido dificuldades quanto ao cumprimento dos prazos de entrega, o CFB e a Terma rejeitaram mutuamente a responsabilidade quanto à impossibilidade de executar o contrato tal como havia sido previsto.

11

Na sequência de negociações, as partes celebraram um acordo extrajudicial de transação nos termos do qual o contrato seria reduzido ao fornecimento de um sistema de comunicações por rádio para os serviços distritais de polícia, num montante aproximado de 35000000 DKK (cerca de 4690000 euros), enquanto o CFB adquiriria duas torres de servidores centrais, num montante aproximado de 50000000 DKK (cerca de 6700000 euros), que a própria Terma adquirira com o objetivo de as alugar ao CFB em execução do contrato inicial. No âmbito desse acordo, cada parte declarava renunciar a quaisquer outros direitos resultantes do contrato inicial, com exceção dos que resultassem da transação.

12

Antes da finalização desta transação, o CFB publicou, em 19 de outubro de 2010, no Jornal Oficial da União Europeia, um anúncio voluntário de transparência ex ante relativo à transação que se propunha celebrar com a Terma, em conformidade com o disposto no artigo 2.o‑D, n.o 4, da Diretiva 89/665.

13

A Frogne, que não se candidatara à pré‑seleção para participar no concurso relativo ao contrato inicial, interpôs um recurso na Klagenævnet for Udbud (Comissão de recursos em matéria de contratos públicos, Dinamarca) (a seguir «comissão de recursos»). Por decisão de 10 de dezembro de 2010, antes de se pronunciar sobre o mérito, a comissão de recursos recusou conferir efeito suspensivo a este recurso.

14

A referida transação foi celebrada em 17 de dezembro de 2010.

15

Por decisão de 3 de novembro de 2011, foi negado provimento ao recurso da Frogne junto da comissão de recursos.

16

A ação judicial intentada pela Frogne na sequência desta decisão foi também julgada improcedente por decisão do Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este, Dinamarca) de 20 de dezembro de 2013.

17

Num primeiro momento, esse órgão jurisdicional considerou que a alteração do contrato inicial nos termos previstos pela transação celebrada entre o CFB e a Terma constituía uma alteração substancial desse contrato, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

18

Contudo, num segundo momento, o referido órgão jurisdicional considerou, por um lado, que essa transação não tinha resultado da vontade da Terma e do CFB de renegociar os termos essenciais do contrato inicial com vista a otimizar a sua colaboração ulterior nessas condições essenciais alteradas, constituindo antes uma resolução alternativa do litígio entre as partes, que se substituía à cessação daquele contrato por circunstâncias que tornavam o seu cumprimento impossível, resolução no âmbito da qual cada parte fez concessões importantes com o objetivo de alcançar uma solução aceitável, de âmbito efetivamente reduzido em relação ao referido contrato, permitindo assim evitar riscos para ambas as partes de perdas provavelmente desproporcionais. Por outro lado, nada permite pressupor que a intenção do CFB ou da Terma teria sido a de contornar as regras de adjudicação de contratos públicos.

19

Nestas condições, o Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este) considerou que os princípios da igualdade de tratamento e da transparência não se opõem à celebração de uma tal transação desde que exista uma estreita conexão entre o contrato inicial e as prestações previstas no âmbito do mesmo. Ora, tal era o caso no que respeitava ao fornecimento de um sistema de comunicações de rádio para os serviços distritais de polícia, mas não quanto à venda das duas torres servidores centrais. Atendendo a este último elemento, aquele tribunal decidiu que a decisão do CFB de recorrer à transação em causa no processo principal e a celebração desse acordo eram contrárias ao princípio da igualdade de tratamento e à obrigação de transparência. O facto de a celebração do referido acordo ter permitido à entidade adjudicante fazer face aos riscos associados a uma situação conflitual foi considerado irrelevante relativamente à licitude desta conclusão.

20

Contudo, o Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este) declarou que a apreciação do CBF no sentido de que podia celebrar a transação com a Terma sem publicação prévia de um anúncio de concurso nos termos das regras da União não constituía um erro manifesto. Tendo em consideração o anúncio voluntário de transparência ex ante que a entidade adjudicante publicou no Jornal Oficial da União Europeia, relativo à transação cuja celebração se previa, em aplicação do artigo 2.o‑D, n.o 4, da Diretiva 89/665, e o facto de, antes da sua celebração, ter atendido não apenas ao termo do prazo de dez dias previsto nessa disposição mas também ao que a comissão de recursos decidira sobre o eventual efeito suspensivo do recurso interposto pela Frogne junto desta última, o referido órgão jurisdicional entendeu que este acordo não poderia ser declarado sem efeito, de modo que não havia que dar provimento ao recurso aí interposto.

21

A Frogne interpôs recurso no Højesteret (Supremo Tribunal, Dinamarca), alegando que a questão de saber se um contrato público ponderado no âmbito de uma transação relativa a um concurso público inicial deve ser objeto de um procedimento de adjudicação depende unicamente do caráter substancial ou não da alteração assim introduzida ao contrato inicial. No caso em apreço, a alteração seria substancial, quer quanto ao objeto do contrato, conforme alterado, quer quanto à significativa redução do seu montante, sendo o contrato alterado suscetível de interessar às empresas mais pequenas. Por outro lado, não poderiam ser invocadas considerações de natureza económica ou a proteção da situação do adjudicatário para justificar uma violação do princípio da igualdade de tratamento e do dever de transparência.

22

O CFB visa ambos os aspetos da transação. No que respeita, por um lado, à limitação do contrato ao fornecimento de um sistema de comunicações por rádio apenas para os serviços distritais de polícia, sublinha a importância do facto de a alteração ter consistido numa redução considerável das prestações, situação que não se regeria pelo direito da União. Quanto, por outro lado, à aquisição das torres de servidores centrais, encontrando‑se apenas prevista a sua locação no âmbito do contrato inicial, considera, em substância, que a disposição desses materiais em propriedade, em vez de em locação, não constitui uma alteração substancial desse contrato.

23

Em termos mais gerais, o CFB considera que, se surgem dificuldades na execução de um contrato, o que não será pouco frequente em certos tipos de contratos, como os relativos ao desenvolvimento de sistemas informáticos, deve ser reconhecida à entidade adjudicante uma ampla margem de apreciação, a fim de lhe permitir encontrar uma solução razoável em caso de dificuldades de execução. Na sua falta, ver‑se‑ia obrigada a renunciar a ajustamentos razoáveis ou a romper o contrato, com os riscos e perdas daí decorrentes. Interpretar a Diretiva 2004/18 no sentido de que esta impõe em tal hipótese o recurso a um novo procedimento de adjudicação de um contrato público levaria, na prática, a impedir a celebração de uma transação, o que constituiria uma ingerência no direito das obrigações, não autorizada pelos Tratados.

24

O Højesteret (Supremo Tribunal) questiona‑se sobre o âmbito do artigo 2.o da Diretiva 2004/18, em especial quanto à questão de saber se o princípio da igualdade de tratamento e a obrigação de transparência determinam que uma entidade adjudicante não pudesse prever a celebração de uma transação para resolver as dificuldades suscitadas pela execução de um contrato público sem que surgisse automaticamente uma obrigação de lançar um novo concurso relativo aos termos desse acordo.

25

Segundo esse órgão jurisdicional, o elemento novo relativamente a situações anteriormente analisadas pelo Tribunal de Justiça residiria nas referidas dificuldades de execução, cuja imputação a uma ou a outra das partes é discutida, e, em definitivo, a questão pertinente seria a de saber se existe a possibilidade de recorrer a uma transação para lhes pôr fim sem ser necessário lançar um novo concurso público.

26

Neste contexto, o Højesteret (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 2.o da Diretiva 2004/18 [...], conjugado com os acórdãos do Tribunal de Justiça [de 19 de junho de 2008, pressetext Nachrichtenagentur (C‑454/06, EU:C:2008:351), e de 13 de abril de 2010, Wall (C‑91/08, EU:C:2010:182)], ser interpretado no sentido de que uma transação que limita ou altera os serviços a prestar, conforme inicialmente acordados pelas partes no âmbito de um contrato que foi previamente sujeito a procedimento de concurso, e que prevê a renúncia recíproca das partes a aplicarem penalidades por incumprimento para evitar uma subsequente ação judicial constitui um contrato que, por si só, carece de um procedimento de concurso, quando o contrato inicial é objeto de litígio?»

Quanto à questão prejudicial

27

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que, após a adjudicação de um contrato público, não lhe pode ser introduzida uma alteração substancial sem abertura de um novo procedimento de concurso, mesmo que essa alteração constitua, objetivamente, uma modalidade de acordo extrajudicial de transação, implicando renúncias recíprocas pelas partes, com vista a pôr termo a um litígio, cujo desfecho é incerto, resultante de dificuldades surgidas na execução desse contrato.

28

Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o princípio da igualdade de tratamento e a obrigação de transparência que dele decorre constituem um obstáculo a que, após a adjudicação de um contrato público, a entidade adjudicante e o adjudicatário introduzam alterações às disposições desse contrato em termos tais que essas disposições passariam a apresentar características substancialmente diferentes das do contrato inicial. É o que sucede se as alterações pretendidas têm por efeito seja a extensão do contrato, em termos relevantes, a elementos não previstos seja a alteração do equilíbrio económico do contrato a favor do adjudicatário, ou ainda se essas alterações são suscetíveis de pôr em causa a adjudicação do contrato, no sentido de que, caso as referidas alterações tivessem figurado no procedimento de adjudicação do contrato inicial, teriam permitido aceitar uma proposta diferente ou admitir proponentes diferentes dos inicialmente admitidos (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 19 de junho de 2008, pressetext Nachrichtenagentur, C‑454/06, EU:C:2008:351, n.os 34 a 37).

29

Quanto a esta última hipótese, há que salientar que uma alteração dos elementos de um contrato que consiste numa redução importante do seu objeto pode ter como consequência a sua colocação ao alcance de um mais amplo número de operadores económicos. Com efeito, na medida em que a importância inicial desse contrato era tal que apenas certas empresas estavam em condições de apresentar a sua candidatura ou de entregar uma proposta, uma redução da importância do referido contrato é suscetível de torná‑lo igualmente interessante para operadores económicos de menor dimensão. Por outro lado, uma vez que os níveis mínimos de capacidades exigidos para um determinado contrato devem, nos termos do artigo 44.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/18, estar ligados e ser proporcionais ao objeto do contrato, uma redução do seu objeto é suscetível de gerar uma redução proporcional das exigências de capacidades requeridas aos candidatos ou aos proponentes.

30

Em princípio, uma alteração substancial de um contrato público após a sua adjudicação não pode ser operada diretamente pela entidade adjudicante e pelo adjudicatário, devendo antes dar lugar a um novo procedimento de adjudicação relativo ao contrato alterado (v., por analogia, acórdão de 13 de abril de 2010, Wall, C‑91/08, EU:C:2010:182, n.o 42). O mesmo não sucederia se essa alteração tivesse sido prevista nas condições do contrato inicial (v., neste sentido, acórdão de 19 de junho de 2008, pressetext Nachrichtenagentur, C‑454/06, EU:C:2008:351, n.os 37, 40, 60, 68 e 69).

31

Contudo, resulta da decisão de reenvio que, segundo a análise do Østre Landsret (Tribunal de Recurso da Região Este), à qual se refere o Højesteret (Supremo Tribunal), a particularidade da situação em causa no processo principal reside no facto de a alteração do contrato, qualificada de substancial, ter resultado não da vontade das partes em renegociar os termos essenciais do contrato que as vinculava inicialmente, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida, mas de dificuldades objetivas, e de consequências imprevisíveis, surgidas no âmbito da execução deste contrato, dificuldades cuja imprevisibilidade é também invocada por alguns interessados nas observações que apresentaram ao Tribunal de Justiça, quando se trata de contratos complexos, tais como os contratos que implicam o desenvolvimento de sistemas informáticos, como acontece no caso em apreço.

32

Contudo, há que observar que nem o facto de a alteração substancial dos termos de um contrato público ser motivada não pela vontade deliberada da entidade adjudicante e do adjudicatário de renegociar os termos do contrato, mas da sua vontade de alcançar um acordo extrajudicial relativo às dificuldades objetivas surgidas no âmbito da execução do referido contrato, nem o caráter objetivamente aleatório de certas realizações podem justificar que essa alteração seja decidida sem respeitar o princípio da igualdade de tratamento de que devem beneficiar todos os operadores potencialmente interessados num contrato público.

33

No que respeita, em primeiro lugar, aos motivos que podem conduzir a entidade adjudicante e o adjudicatário de um contrato a pretenderem uma alteração substancial deste, implicando a abertura de um novo procedimento de adjudicação, há que salientar, por um lado, que a referência à vontade deliberada das partes em renegociar os termos desse contrato não é um elemento determinante. É certo que uma tal intenção é visada no n.o 44 do acórdão de 5 de outubro de 2000, Comissão/França (C‑337/98, EU:C:2000:543), o primeiro acórdão no qual o Tribunal de Justiça examinou esta problemática. Contudo, como resulta dos n.os 42 a 44 desse acórdão, essa formulação respeitava a um interesse de circunstância no quadro factual específico do processo que deu origem ao referido acórdão. Pelo contrário, a qualificação de alteração substancial deve ser analisada de um ponto de vista objetivo, em função dos critérios recordados no n.o 28 do presente acórdão.

34

Por outro lado, resulta do n.o 40 do acórdão de 14 de novembro de 2013, Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736), que não é possível abstrair dos princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação, bem como da obrigação de transparência neles implicada, decorrentes do Tratado FUE, no caso de se pretender alterar de modo substancial um contrato de concessão de serviços ou de atribuição de um direito exclusivo com o objetivo de alcançar uma solução razoável que permita adequadamente pôr fim a um litígio surgido entre entidades públicas e um operador económico, por motivos absolutamente independentes da vontade daqueles, quanto ao âmbito da convenção que os une. Uma vez que esses princípios e essa obrigação constituem o fundamento do artigo 2.o da Diretiva 2004/18, como resulta da leitura do seu considerando 2, este ensinamento vale também no âmbito da aplicação desta diretiva.

35

No que respeita, em segundo lugar, ao caráter objetivamente aleatório de certas realizações que podem ser objeto de um contrato público, importa, na verdade, recordar que, nos termos do artigo 31.o da Diretiva 2004/18, as entidades adjudicantes podem adjudicar diretamente um contrato, ou seja, negociando em diversos casos os termos do contrato com um operador económico selecionado sem publicação prévia de um anúncio de concurso, dos quais muitos se caracterizam pela imprevisibilidade de certas circunstâncias. Contudo, como resulta dos termos do último período do artigo 28.o, segundo parágrafo, desta diretiva, só os casos e circunstâncias específicas expressamente previstas no referido artigo 31.o podem dar lugar à sua aplicação, de modo que a enumeração das respetivas exceções deve ser considerada taxativa. Ora, não se afigura que a situação em causa no processo principal corresponda a uma dessas situações.

36

Por outro lado, o próprio facto de se poder considerar que, em razão do seu objeto, certos contratos públicos apresentam à partida um caráter aleatório torna previsível o risco de aparecimento de dificuldades na fase da execução. Por conseguinte, relativamente a um tal contrato, incumbe à entidade adjudicante não apenas recorrer aos procedimentos de adjudicação mais adequados mas também definir o objeto desse contrato com cautela. Acresce que, como resulta do n.o 30 do presente acórdão, a entidade adjudicante pode lançar mão da possibilidade de introduzir certas alterações, mesmo substanciais, ao contrato, após a sua adjudicação, desde que o tenha previsto na documentação que regeu o procedimento de adjudicação.

37

Com efeito, embora o respeito pelo princípio da igualdade de tratamento e pela obrigação de transparência deva ser assegurado relativamente aos concursos públicos específicos, tal não impede que se tomem em consideração as suas especificidades. A conciliação daquele imperativo jurídico e desta necessidade concreta passa, por um lado, pelo respeito estrito das condições de um contrato, tal como foram fixadas na respetiva documentação, até ao termo da fase de execução desse contrato, mas também, por outro, pela possibilidade de prever expressamente nesses documentos a faculdade de adaptação, pela entidade adjudicante, de certas condições do referido contrato, inclusivamente importantes, após a sua adjudicação. Ao prever expressamente esta faculdade e ao fixar as modalidades da sua aplicação na referida documentação, a entidade adjudicante garante que todos os operadores económicos interessados em participar no referido concurso tiveram disso conhecimento desde o início e estão assim em pé de igualdade no momento de formular a sua proposta (v., por analogia, acórdão de 29 de abril de 2004, Comissão/CAS Succhi di Frutta, C‑496/99 P, EU:C:2004:236, n.os 112, 115, 117 e 118).

38

Em contrapartida, na falta de tal previsão na documentação do concurso, a necessidade de aplicar, para um dado concurso público, as mesmas condições a todos os operadores económicos exige, em caso de alteração substancial daquele, a abertura de um novo procedimento de adjudicação (v., por analogia, acórdão de 29 de abril de 2004, Comissão/CAS Succhi di Frutta, C‑496/99 P, EU:C:2004:236, n.o 127).

39

Por último, há que precisar que todos estes desenvolvimentos são feitos sem prejuízo das potenciais consequências do anúncio voluntário de transparência ex ante que foi publicado no âmbito do concurso em causa no processo principal.

40

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 2.o da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que, após a adjudicação de um contrato público, não lhe pode ser introduzida uma alteração substancial sem abertura de um novo procedimento de adjudicação, mesmo que essa alteração constitua, objetivamente, uma modalidade de acordo extrajudicial de transação, implicando renúncias recíprocas pelas partes, com vista a pôr termo a um litígio, cujo desfecho é incerto, resultante das dificuldades surgidas na execução desse contrato. A conclusão só seria diferente se a documentação do referido contrato previsse a faculdade de adaptar certas das suas condições, mesmo que importantes, após a sua adjudicação, fixando as modalidades de aplicação dessa faculdade.

Quanto às despesas

41

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

 

O artigo 2.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que, após a adjudicação de um contrato público, não lhe pode ser introduzida uma alteração substancial sem abertura de um novo procedimento de adjudicação, mesmo que essa alteração constitua, objetivamente, uma modalidade de acordo extrajudicial de transação, implicando renúncias recíprocas pelas partes, com vista a pôr termo a um litígio, cujo desfecho é incerto, resultante das dificuldades surgidas na execução desse contrato. A conclusão só seria diferente se a documentação do referido contrato previsse a faculdade de adaptar certas das suas condições, mesmo que importantes, após a sua adjudicação, fixando as modalidades de aplicação dessa faculdade.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: dinamarquês.

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