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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62010CJ0491

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 22 de Dezembro de 2010.
    Joseba Andoni Aguirre Zarraga contra Simone Pelz.
    Pedido de decisão prejudicial: Oberlandesgericht Celle - Alemanha.
    Cooperação judiciária em matéria civil – Regulamento (CE) n.° 2201/2003 – Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental – Responsabilidade parental – Direito de guarda – Rapto de criança – Artigo 42.° – Execução de uma decisão, acompanhada da respectiva certidão, que ordena o regresso de uma criança, proferida por um tribunal competente (espanhol) – Competência do tribunal requerido (alemão) para recusar a execução da referida decisão em caso de violação grave dos direitos da criança.
    Processo C-491/10 PPU.

    Colectânea de Jurisprudência 2010 I-14247

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2010:828

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    22 de Dezembro de 2010 (*)

    «Cooperação judiciária em matéria civil – Regulamento (CE) n.° 2201/2003 – Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental – Responsabilidade parental – Direito de guarda – Rapto de criança – Artigo 42.° – Execução de uma decisão, acompanhada da respectiva certidão, que ordena o regresso de uma criança, proferida por um tribunal competente (espanhol) – Competência do tribunal requerido (alemão) para recusar a execução da referida decisão em caso de violação grave dos direitos da criança»

    No processo C‑491/10 PPU,

    que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Oberlandesgericht Celle (Alemanha), por decisão de 30 de Setembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 15 de Outubro de 2010, no processo intentado por

    Joseba Andoni Aguirre Zarraga

    contra

    Simone Pelz,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: A. Tizzano (relator), presidente de secção, J.‑J. Kasel, M. Ilešič, E. Levits e M. Safjan, juízes,

    advogado‑geral: Y. Bot,

    secretário: K. Malacek, administrador,

    visto o pedido do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 2010, em conformidade com o artigo 104.°‑B, n.° 1, terceiro parágrafo, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, no sentido de ser examinada a necessidade de submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação urgente,

    vista a decisão da Primeira Secção, de 28 de Outubro de 2010, de submeter o referido reenvio a tramitação urgente,

    vistos os autos e após a audiência de 6 de Dezembro de 2010,

    vistas as observações apresentadas:

    –        em representação de J. A. Aguirre Zarraga, representado pelo Bundesamt für Justiz, por A. Schulz, na qualidade de agente,

    –        em representação de S. Pelz, por K. Niethammer‑Jürgens, Rechtsanwältin,

    –        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

    –        em representação do Governo grego, por T. Papadopoulou, na qualidade de agente,

    –        em representação do Governo espanhol, por J. M. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agente,

    –        em representação do Governo francês, por B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agente,

    –        em representação do Governo letão, por M. Borkoveca e D. Palcevska, na qualidade de agentes,

    –        em representação da Comissão Europeia, por A.‑M. Rouchaud‑Joët e W. Bogensberger, na qualidade de agentes,

    ouvido o advogado‑geral,

    profere o presente

    Acórdão

    1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1).

    2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe J. A. Aguirre Zarraga a S. Pelz a propósito do regresso a Espanha da filha de ambos, Andrea, que se encontra actualmente na Alemanha com a mãe.

     Quadro jurídico

     Regulamento n.° 2201/2003

    3        Nos termos do décimo sétimo considerando do Regulamento n.° 2201/2003:

    «Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a Convenção de Haia de 25 de Outubro de 1980 [sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (a seguir ‘Convenção de Haia de 1980’)], completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.° Os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor‑se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados. Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efectuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado‑Membro onde se encontra a criança raptada.»

    4        O décimo nono considerando deste regulamento tem a seguinte redacção:

    «A audição da criança desempenha um papel importante na aplicação do presente regulamento embora este instrumento não se destine a alterar os procedimentos nacionais aplicáveis na matéria.»

    5        O vigésimo primeiro considerando do Regulamento n.° 2201/2003 enuncia:

    «O reconhecimento e a execução de decisões proferidas num Estado‑Membro têm por base o princípio da confiança mútua e os fundamentos do não reconhecimento serão reduzidos ao mínimo indispensável.»

    6        Nos termos do vigésimo quarto considerando do referido regulamento:

    «A certidão emitida para facilitar a execução da decisão não deverá ser susceptível de recurso. Só pode dar origem a uma acção de rectificação em caso de erro material, ou seja quando a certidão não reflicta correctamente o conteúdo da decisão.»

    7        No trigésimo terceiro considerando do mesmo regulamento pode ler‑se o seguinte:

    «O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[, proclamada em 7 de Dezembro de 2000, em Nice (JO C 364, p. 1, a seguir «Carta dos Direitos Fundamentais»)]; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais […]»

    8        O artigo 11.° do Regulamento n.° 2201/2003, intitulado «Regresso da criança», dispõe:

    «1.      Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na Convenção da Haia […] de 1980, a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

    2.      Ao aplicar os artigos 12.° e 13.° da Convenção da Haia de 1980, deve‑se providenciar no sentido de que a criança tenha a oportunidade de ser ouvida durante o processo, excepto se tal for considerado inadequado em função da sua idade ou grau de maturidade.

    […]

    8.      Não obstante uma decisão de retenção, proferida ao abrigo do artigo 13.° da Convenção da Haia de 1980, uma decisão posterior que exija o regresso da criança, proferida por um tribunal competente ao abrigo do presente regulamento, tem força executória nos termos da secção 4 do capítulo III, a fim de garantir o regresso da criança.»

    9        No que respeita ao reconhecimento das decisões, o artigo 21.° deste regulamento prevê:

    «1.      As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem quaisquer formalidades.

    […]

    3.      Sem prejuízo do disposto na secção 4 do presente capítulo, qualquer parte interessada pode requerer, nos termos dos procedimentos previstos na secção 2 do presente capítulo, o reconhecimento ou o não reconhecimento da decisão.

    […]»

    10      Nos termos do artigo 23.° do referido regulamento:

    «Uma decisão em matéria de responsabilidade parental não é reconhecida:

    a)      Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido, tendo em conta o superior interesse da criança;

    b)      Se, excepto em caso de urgência, tiver sido proferida sem que a criança tenha tido a oportunidade de ser ouvida, em violação de normas processuais fundamentais do Estado‑Membro requerido;

    […]»

    11      O artigo 42.° do mesmo regulamento, intitulado «Regresso da criança», enuncia:

    «1.      O regresso da criança referido na alínea b) do n.° 1 do artigo 40.°, resultante de uma decisão executória proferida num Estado‑Membro[,] é reconhecido e goza de força executória noutro Estado‑Membro sem necessidade de qualquer declaração que lhe reconheça essa força e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento, se essa decisão tiver sido homologada no Estado‑Membro de origem, nos termos do n.° 2.

    Mesmo se a legislação nacional não previr a força executória de pleno direito de uma decisão que exija o regresso da criança previsto no n.° 8 do artigo 11.°, o tribunal pode declarar a decisão executória, não obstante qualquer recurso.

    2.      O juiz de origem que pronunciou a decisão referida na alínea b) do n.° 1 do artigo 40.° só emite a certidão referida no n.° 1[…] se:

    a)      A criança tiver tido oportunidade de ser ouvida, excepto se for considerada inadequada uma audição, tendo em conta a sua idade ou grau de maturidade;

    b)      As partes tiverem tido a oportunidade de ser ouvidas; e

    c)      O tribunal, ao pronunciar‑se, tiver tido em conta a justificação e as provas em que assentava a decisão pronunciada ao abrigo do artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980.

    Se o tribunal ou qualquer outra autoridade tomarem medidas para garantir a protecção da criança após o seu regresso ao Estado‑Membro onde reside habitualmente, essas medidas deverão ser especificadas na certidão.

    O juiz de origem emite a referida certidão, por sua própria iniciativa, utilizando o formulário constante do Anexo IV (certidão relativa ao regresso da criança).

    A certidão é redigida na língua da decisão.»

    12      O artigo 43.° do Regulamento n.° 2201/2003, sob a epígrafe «Acção de rectificação», dispõe:

    «1.      A legislação do Estado‑Membro de origem é aplicável a qualquer rectificação da certidão.

    2.      A emissão de uma certidão nos termos do n.° 1 do artigo 41.° ou do n.° 1 do artigo 42.° não é susceptível de recurso.»

    13      O artigo 60.° deste regulamento, intitulado «Relações com determinadas convenções multilaterais», dispõe que, nas relações entre os Estados‑Membros, este regulamento prevalece, nomeadamente, sobre a Convenção de Haia de 1980.

     Regulamento (CE) n.° 1206/2001

    14      O Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de Maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção de provas em matéria civil ou comercial (JO L 174, p. 1), prevê no seu artigo 10.°, n.° 4, no que respeita à utilização de tecnologias de comunicação modernas:

    «No âmbito da obtenção de provas, o tribunal requerente poderá solicitar ao tribunal requerido que recorra às tecnologias da comunicação, em particular à videoconferência e à teleconferência.

    O tribunal requerido atenderá a essa solicitação, a menos que tal procedimento seja incompatível com a lei do Estado‑Membro do tribunal requerido, ou salvo importantes dificuldades de ordem prática.

    […]»

     Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    15      Resulta da decisão de reenvio e dos autos do processo comunicados ao Tribunal de Justiça pelo tribunal de reenvio que os antecedentes do litígio no processo principal e os diversos processos entre as partes podem ser resumidos da seguinte forma.

     Antecedentes do litígio no processo principal

    16      J. A. Aguirre Zarraga, de nacionalidade espanhola, e S. Pelz, de nacionalidade alemã, casaram em 25 de Setembro de 1998, em Erandio (Espanha). Desse casamento nasceu, em 31 de Janeiro de 2000, a filha do casal, Andrea. O lugar da residência habitual da família situava‑se em Sondika (Espanha).

    17      As relações entre S. Pelz e J. A. Aguirre Zarraga deterioraram‑se perto do final do ano de 2007, tendo‑se o casal separado. Posteriormente, cada um deles intentou uma acção de divórcio nos tribunais espanhóis.

     Tramitação do processo nos tribunais espanhóis

    18      Tanto S. Pelz como J. A. Aguirre Zarraga pediram que lhes fosse concedido o direito de guarda exclusivo da filha comum. Por decisão de 12 de Maio de 2008, o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao (juiz de primeira instância e de instrução n.° 5 de Bilbau) confiou provisoriamente o direito de guarda a J. A. Aguirre Zarraga, concedendo um direito de visita a S. Pelz. Na sequência desta decisão, Andrea passou a viver no domicílio do pai.

    19      A referida decisão baseava‑se designadamente nas recomendações do Equipo Psicosocial Judicial (Serviço psicossocial judicial) constantes de um parecer elaborado a pedido do juiz chamado a conhecer do processo. Segundo este parecer, a guarda devia ser atribuída ao pai, dado ser este o mais bem colocado para assegurar a manutenção do ambiente familiar, escolar e social da criança. Dado que S. Pelz tinha repetidamente anunciado a sua intenção de se instalar na Alemanha com o seu novo parceiro e com a filha, o referido juiz tinha considerado que a atribuição da guarda à mãe seria contrária às conclusões do referido parecer e opor‑se‑ia ao bonum filii.

    20      No mês de Junho de 2008, S. Pelz mudou‑se para a Alemanha e instalou‑se nesse país, no qual reside com o seu novo parceiro. Em Agosto de 2008, após as férias de Verão que tinha passado com a mãe, Andrea permaneceu junto desta na Alemanha. Desde então, não regressou ao domicílio do pai em Espanha.

    21      Considerando que, desde 15 de Agosto de 2008, Andrea residia com a mãe na Alemanha, em violação da sua decisão de 12 de Maio de 2008, o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao, mediante nova decisão de medidas provisórias de 15 de Outubro de 2008, proferida a pedido de J. A. Aguirre Zarraga, entre outras medidas, proibiu Andrea de abandonar o território espanhol acompanhada da mãe, de qualquer membro da família desta ou de qualquer pessoa com uma ligação de afinidade com S. Pelz. Além disso, esta decisão suspendeu o direito de visita anteriormente concedido a esta última até à prolação da sentença definitiva.

    22      Em Julho de 2009, o processo relativo ao direito de guarda de Andrea prosseguiu perante o mesmo juiz. Este considerou que se impunham a realização de um novo exame pericial assim como a audição pessoal de Andrea e marcou datas para ambas as diligências, que deviam ter lugar em Bilbau. No entanto, nem Andrea nem a mãe compareceram nessas datas. Segundo o tribunal de reenvio, o juiz espanhol não deferiu o pedido apresentado por S. Pelz no sentido de a autorizar, bem como a filha, a abandonar livremente o território espanhol após o exame pericial e a audição de Andrea. O referido juiz também não acolheu o pedido expresso de S. Pelz requerendo que a audição de Andrea fosse efectuada por videoconferência.

    23      Por sentença de 16 de Dezembro de 2009, o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao atribuiu o direito de guarda relativo a Andrea exclusivamente ao pai. S. Pelz recorreu desta sentença para a Audiencia Provincial de Bizkaya, pedindo designadamente que se procedesse a uma audição de Andrea.

    24      Por acórdão de 21 de Abril de 2010, este último tribunal indeferiu tal pedido com o fundamento de que, segundo as regras processuais espanholas, a apresentação de provas em sede de recurso só é possível em certos casos expressamente determinados por lei. Ora, a falta de comparência voluntária de uma parte devidamente convocada em primeira instância para uma audiência não constitui um desses casos. Além disso, o processo ainda está pendente no referido tribunal.

     Processos nos tribunais alemães

    25      Decorreram dois processos na Alemanha.

    26      O primeiro tinha por objecto o pedido de J. A. Aguirre Zarraga no sentido de obter o regresso da sua filha a Espanha, apresentado com fundamento na Convenção de Haia de 1980. Este pedido foi inicialmente acolhido pelo Amtsgericht Celle (Tribunal do Cantão de Celle), por decisão de 30 de Janeiro de 2009.

    27      S. Pelz interpôs recurso desta decisão. Por acórdão de 1 de Julho de 2009, o Oberlandesgericht Celle (Tribunal Supremo Regional de Celle) deu provimento a este recurso, anulando a referida decisão e rejeitando o pedido de J. A. Aguirre Zarraga com base no artigo 13.°, segundo parágrafo, da Convenção de Haia de 1980.

    28      O Oberlandesgericht Celle salientou designadamente que a audição de Andrea à qual tinha procedido demonstrava que esta última se opunha de maneira persistente ao regresso pedido pelo seu pai e se recusava categoricamente a voltar a Espanha. Na sequência de tal audição, o perito nomeado por esse tribunal concluiu que a opinião de Andrea devia ser tomada em conta atendendo tanto à sua idade como ao seu grau de maturidade.

    29      O segundo processo nos tribunais alemães foi desencadeado com base numa certidão emitida em 5 de Fevereiro de 2010 em aplicação do artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003 pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao com base na sentença de divórcio que tinha proferido em 16 de Dezembro de 2009, na qual tinha igualmente decidido sobre o direito de guarda relativo a Andrea.

    30      Por carta de 26 de Março de 2010, o Bundesamt für Justiz (Serviço Federal da Justiça) transmitiu ao tribunal competente da República Federal da Alemanha, ou seja, ao Amtsgericht Celle, as referidas sentença e certidão. O dito serviço chamou a atenção desse tribunal para o facto de que, por força do § 44, n.° 3, da Lei relativa à execução e à aplicação de certos instrumentos legais em matéria de direito internacional da família (Gesetz zur Aus‑ und Durchführung bestimmter Rechtsinstrumente auf dem Gebiet des internationalen Familienrechts), a decisão do tribunal espanhol que ordenava o regresso da criança devia ser executada de pleno direito.

    31      S. Pelz opôs‑se à execução coerciva da referida decisão, acompanhada da respectiva certidão, pedindo que a mesma não fosse reconhecida.

    32      Por decisão de 28 de Abril de 2010, o Amtsgericht Celle considerou que a sentença do Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao não devia ser reconhecida nem executada, com o fundamento de que este último não tinha ouvido Andrea antes de tomar a sua decisão.

    33      Em 18 de Junho de 2010, J. A. Aguirre Zarraga recorreu desta decisão para o Oberlandesgericht Celle, pedindo que a mesma fosse anulada, que os pedidos de S. Pelz fossem rejeitados e que a sentença do Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao de 16 de Dezembro de 2009 fosse executada de pleno direito na parte em que ordenava o regresso de Andrea ao domicílio do pai.

    34      Embora o Oberlandesgericht Celle reconheça que o tribunal do Estado‑Membro de execução de uma certidão emitida em conformidade com o artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003 não tem, em princípio, competência de controlo própria ao abrigo do artigo 21.° do mesmo regulamento, considera porém que isto não deveria acontecer em caso de violação particularmente grave de um direito fundamental.

    35      A este respeito, o tribunal de reenvio salienta, por um lado, que o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao não obteve a opinião actual de Andrea e, portanto, não pôde ter em conta esta opinião na sua sentença de 16 de Dezembro de 2009 respeitante, designadamente, ao direito de guarda relativo a esta criança. Por outro lado, os esforços do juiz espanhol para ouvir Andrea foram insuficientes atendendo à importância concedida à tomada em consideração da opinião da criança pelo artigo 24.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais.

    36      Além disso, o Oberlandesgericht Celle interroga‑se sobre a questão de saber se, no caso de, não obstante tal violação de um direito fundamental, o tribunal do Estado‑Membro de execução não dispor de nenhum poder de controlo, este Estado‑Membro pode considerar‑se vinculado por uma certidão, emitida ao abrigo do artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003, cujo conteúdo é manifestamente falso. Com efeito, segundo o tribunal de reenvio, a certidão do Juzgado de Primera Instancia e Instrucción n.° 5 de Bilbao de 5 de Fevereiro de 2010 comporta uma declaração manifestamente falsa, na medida em que indica que Andrea foi ouvida pelo referido tribunal espanhol, quando a verdade é que não o foi.

    37      Nestas condições, o Oberlandesgericht Celle decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)      No quadro de uma interpretação do artigo 42.° do Regulamento [n.° 2201/2003] conforme com a Carta dos Direitos Fundamentais, o tribunal do Estado‑Membro de execução dispõe excepcionalmente de uma competência de controlo própria quando a decisão do Estado‑Membro de origem que deve ser executada implica uma violação grave dos direitos fundamentais?

    2)      O tribunal do Estado‑Membro de execução está obrigado a executar essa decisão mesmo quando o tribunal do Estado‑Membro de origem emitiu, nos termos do artigo 42.° do Regulamento [n.° 2201/2003], uma certidão que, como resulta dos autos, é manifestamente inexacta?»

     Quanto à tramitação urgente

    38      Por nota de 19 de Outubro de 2010, o presidente do Tribunal de Justiça, em aplicação do artigo 104.°‑B, n.° 1, terceiro parágrafo, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, pediu à Primeira Secção que examinasse a necessidade de submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação urgente.

    39      A este respeito, importa precisar que decorre da jurisprudência que o Tribunal de Justiça reconhece a urgência em decidir em situações de deslocação de crianças, designadamente quando a separação de uma criança do progenitor ao qual, como no processo principal, a guarda foi previamente atribuída, mesmo que apenas a título provisório, possa deteriorar ou prejudicar as relações entre esse progenitor e a criança, e causar danos psíquicos (v., neste sentido, acórdãos de 11 de Julho de 2008, Rinau, C‑195/08 PPU, Colect., p. I‑5271, n.° 44; de 23 de Dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, Colect., p. I‑0000, n.° 30; de 1 de Julho de 2010, Povse, C‑211/10 PPU, Colect., p. I‑0000, n.° 35; e de 5 de Outubro de 2010, McB., C‑400/10 PPU, Colect., p. I‑0000, n.° 28).

    40      Resulta da decisão de reenvio que Andrea está separada do pai há mais de dois anos e que, devido à distância e às relações tensas entre as partes no processo principal, existe um risco sério e concreto de ausência total de contactos entre Andrea e o pai enquanto durar o processo pendente no tribunal de reenvio. Nestas circunstâncias, o recurso à tramitação ordinária dos processos para tratar o presente pedido de decisão prejudicial poderia prejudicar seriamente, ou mesmo de maneira irreparável, as relações entre J. A. Aguirre Zarraga e a sua filha, bem como comprometer ainda mais a integração desta no seu ambiente familiar e social no caso de um eventual regresso a Espanha.

    41      Nestas condições, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, a Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 28 de Outubro de 2010, submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação urgente.

     Quanto às questões prejudiciais

    42      Através das suas questões prejudiciais, que devem ser tratadas conjuntamente, o tribunal de reenvio pergunta, no essencial, se, em circunstâncias como as do processo principal, o tribunal competente do Estado‑Membro de execução pode excepcionalmente opor‑se à execução de uma decisão que ordena o regresso de uma criança, decisão essa à qual foi junta uma certidão emitida com base no artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003 pelo tribunal do Estado‑Membro de origem, com o fundamento de que este último declarou, na referida certidão, ter respeitado a obrigação de ouvir a criança antes de tomar a sua decisão, no quadro de um processo de divórcio, sobre a atribuição do direito de guarda relativo a essa criança, quando a verdade é que essa audição não teve lugar, em violação do referido artigo 42.°, interpretado em conformidade com o artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais.

    43      A fim de responder a estas questões, importa começar por assinalar que, num contexto como o do processo principal, estamos perante uma retenção ilícita de uma criança, na acepção do artigo 2.°, ponto 11, do Regulamento n.° 2201/2003.

    44      Ora, como salientou o advogado‑geral nos n.os 120 e 121 da sua tomada de posição, este regulamento parte do postulado segundo o qual a deslocação ou a retenção ilícitas de uma criança em violação de uma decisão judicial proferida noutro Estado‑Membro prejudicam gravemente os interesses desta criança e prevê portanto medidas para permitir o regresso desta ao seu lugar de residência inicial sem demora. A este respeito, o referido regulamento instituiu um sistema por força do qual, em caso de divergência de apreciação entre o juiz da residência habitual da criança e o juiz do lugar onde esta se encontra ilicitamente, o primeiro conserva a sua competência e, de uma certa forma, tem a última palavra para decidir sobre o regresso da criança.

    45      O imperativo de celeridade subjacente a tal sistema exige que, em tais circunstâncias, os tribunais nacionais chamados a pronunciar‑se sobre um pedido de regresso da criança decidam rapidamente. De resto, é para isso que o artigo 11.°, n.° 3, do Regulamento n.° 2201/2003 impõe aos referidos tribunais que utilizem os processos mais céleres previstos pelo direito nacional e que tomem as suas decisões, salvo se tal for impossível em razão de circunstâncias excepcionais, o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido.

    46      Importa sublinhar que, para alcançar este objectivo, o sistema estabelecido pelo Regulamento n.° 2201/2003 se funda no papel central atribuído ao tribunal competente para conhecer do mérito em aplicação das disposições do referido regulamento e que, diversamente do vigésimo primeiro considerando deste, em conformidade com o qual o reconhecimento e a execução das decisões proferidas num Estado‑Membro devem ter por base o princípio da confiança mútua, devendo os fundamentos do não reconhecimento ser reduzidos ao mínimo indispensável, o décimo sétimo considerando do dito regulamento prevê que, em caso de retenção ilícita de uma criança, a execução de uma decisão que implique o seu regresso deve ser efectuada sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado‑Membro onde se encontra a criança.

    47      É, portanto, para permitir uma execução rápida designadamente das decisões que ordenam o regresso de uma criança proferidas, como no processo principal, nas circunstâncias referidas no artigo 11.°, n.° 8, do Regulamento n.° 2201/2003 que este prevê nos seus artigos 40.° a 45.° um regime específico que permite dotar essas decisões de força executória no Estado‑Membro em que devem produzir os seus efeitos.

    48      Assim, resulta dos artigos 42.°, n.° 1, e 43.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2201/2003, interpretados à luz dos décimo sétimo e vigésimo quarto considerandos deste, que uma decisão que ordena o regresso de uma criança tomada por um tribunal competente ao abrigo do referido regulamento, quando seja executória e tenha dado lugar à emissão da certidão referida no dito artigo 42.°, n.° 1, no Estado‑Membro de origem, é reconhecida e reveste automaticamente força executória noutro Estado‑Membro, sem que seja possível opor‑se ao seu reconhecimento (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Rinau, n.° 84, e Povse, n.° 70).

    49      Por consequência, o tribunal do Estado‑Membro de execução mais não pode do que constatar a força executória de uma decisão quando acompanhada da respectiva certidão.

    50      Acresce que só pode ser intentada uma acção de rectificação da certidão emitida pelo juiz de origem ou apenas podem ser invocadas dúvidas quanto à autenticidade dessa certidão em conformidade com as regras de direito do Estado‑Membro de origem (v., neste sentido, acórdão Povse, já referido, n.° 73 e jurisprudência referida). Por outro lado, a fim de assegurar a celeridade da execução das decisões em causa e para evitar que a eficácia das disposições do Regulamento n.° 2201/2003 possa ser comprometida devido a uma utilização abusiva do processo, qualquer recurso contra a emissão de uma certidão ao abrigo do artigo 42.° deste regulamento, que não seja uma acção de rectificação na acepção do artigo 43.°, n.° 1, deste, é excluído, mesmo no Estado‑Membro de origem (v., neste sentido, acórdão Rinau, já referido, n.° 85).

    51      Além disso, resulta igualmente da jurisprudência que, no quadro da clara repartição de competências entre os tribunais do Estado‑Membro de origem e do Estado‑Membro de execução, estabelecida pelo Regulamento n.° 2201/2003, com vista ao rápido regresso da criança, as questões relativas à legalidade da decisão que ordena esse regresso enquanto tal, nomeadamente a questão de saber se estavam reunidas as condições exigíveis para permitir ao tribunal competente proferir essa decisão, devem ser suscitadas nos tribunais do Estado‑Membro de origem, em conformidade com as regras da sua ordem jurídica (acórdão Povse, já referido, n.° 74).

    52      É à luz destes princípios que há que interpretar o artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, do Regulamento n.° 2201/2003, nos termos do qual o tribunal do Estado‑Membro de origem só emite a certidão referida no n.° 1 do dito artigo se a criança tiver tido a oportunidade de ser ouvida, excepto se for considerada inadequada uma audição tendo em conta a sua idade ou grau de maturidade [alínea a)], se as partes tiverem tido a oportunidade de ser ouvidas [alínea b)] e se o referido tribunal, ao pronunciar‑se, tiver tido em conta a justificação e as provas em que assentava a decisão pronunciada ao abrigo do artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980 [alínea c)].

    53      Importa assinalar desde já que o artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, do dito regulamento mais não pretende do que indicar ao juiz do Estado‑Membro de origem o conteúdo mínimo exigido da decisão com base na qual será emitida a certidão prevista no n.° 1 do referido artigo 42.°

    54      Além disso, tendo em conta a jurisprudência recordada nos n.os 48, 50 e 51 do presente acórdão, há que concluir que o referido artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, não habilita minimamente o juiz do Estado‑Membro de execução a controlar as condições que enuncia de emissão da referida certidão.

    55      Com efeito, tal habilitação seria susceptível de comprometer o efeito útil do sistema instituído pelo Regulamento n.° 2201/2003, descrito nos n.os 44 a 51 do presente acórdão.

    56      Daqui resulta que, quando um tribunal de um Estado‑Membro emite a certidão mencionada no referido artigo 42.°, o tribunal do Estado‑Membro de execução é obrigado a executar a decisão acompanhada de tal certidão, sem se poder opor ao reconhecimento nem à força executória desta.

    57      Esta interpretação é confortada pelo facto de as causas de não reconhecimento ou de não declaração da força executória, pelo tribunal do Estado‑Membro de execução, de uma decisão em matéria de responsabilidade parental previstas pelos artigos 23.° e 31.° do Regulamento n.° 2201/2003, entre as quais a eventualidade de esse não reconhecimento ou essa não execução contrariarem manifestamente a ordem pública desse Estado‑Membro ou violarem normas processuais fundamentais deste último que impõem que se dê à criança a oportunidade de ser ouvida, não terem sido retomadas como motivos susceptíveis de justificar a oposição do juiz do referido Estado‑Membro no quadro dos processos previstos no capítulo III, secção 4, do referido regulamento (v., neste sentido, acórdão Rinau, já referido, n.os 91, 97 e 99).

    58      Todavia, o tribunal de reenvio pergunta, na sua primeira questão, se a referida interpretação se impõe igualmente quando a decisão do Estado‑Membro de origem que deve ser executada por força da certidão de que vem acompanhada incorre numa grave violação dos direitos fundamentais.

    59      A este respeito, saliente‑se que a clara repartição de competências entre os tribunais do Estado‑Membro de origem e do Estado‑Membro de execução, estabelecida pelas disposições do capítulo III, secção 4, do Regulamento n.° 2201/2003 (v., neste sentido, acórdão Povse, já referido, n.° 73), assenta na premissa de que os referidos tribunais respeitam, nas esferas de competências respectivas, as obrigações que o regulamento lhes impõe em conformidade com a Carta dos Direitos Fundamentais.

    60      Assim, na medida em que o Regulamento n.° 2201/2003 não pode ser contrário a esta última, há que interpretar o disposto no artigo 42.° do referido regulamento, que dá execução ao direito da criança de ser ouvida, à luz do artigo 24.° da referida Carta (v., neste sentido, acórdão McB., já referido, n.° 60).

    61      De resto, o décimo nono considerando do Regulamento n.° 2201/2003 indica que a audição da criança desempenha um papel importante na aplicação deste regulamento e o seu trigésimo terceiro considerando salienta, de maneira mais geral, que o referido regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais, garantindo, em particular, o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.° desta.

    62      A este respeito, importa começar por salientar que resulta do artigo 24.° desta Carta, bem como do artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), do Regulamento n.° 2201/2003, que estes não se referem à audição da criança enquanto tal, mas à possibilidade de a criança ser ouvida.

    63      Com efeito, por um lado, o referido artigo 24.°, no seu n.° 1, exige que as crianças possam exprimir livremente a sua opinião e que essa opinião seja tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, unicamente «em função da sua idade e maturidade», e, no seu n.° 2, impõe que todos os actos relativos à criança tenham em conta o interesse superior desta, o qual pode portanto justificar que não se proceda à sua audição. Por outro lado, o referido artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), impõe que seja dada à criança a oportunidade de ser ouvida «excepto se for considerada inadequada uma audição, tendo em conta a sua idade ou grau de maturidade».

    64      Isso implica que compete ao juiz que deva pronunciar‑se sobre o regresso de uma criança apreciar a oportunidade de tal audição, na medida em que os conflitos que tornam necessária uma decisão de atribuição da guarda de uma criança a um dos progenitores, e as tensões a ela associadas, constituem situações nas quais a audição da criança, designadamente se envolver a sua presença física perante o juiz, pode revelar‑se inadequada, ou mesmo prejudicial, para a sua saúde psíquica, frequentemente submetida às referidas tensões e que sofre dos seus efeitos prejudiciais. Assim, embora não deixe de constituir um direito da criança, a audição não pode constituir uma obrigação absoluta, mas deve ser objecto de uma apreciação em função das exigências ligadas ao interesse superior da criança em cada situação, em conformidade com o artigo 24.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais.

    65      Daqui decorre que, como previsto no artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais e no artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), do Regulamento n.° 2201/2003, o direito da criança de ser ouvida não exige que seja obrigatoriamente organizada uma audição perante o juiz do Estado‑Membro de origem, mas impõe que sejam postos à disposição dessa criança os procedimentos e as condições legais que lhe permitam exprimir livremente a sua opinião e que esta seja recolhida pelo juiz.

    66      Por outras palavras, embora seja verdade que o artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais e o artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), do Regulamento n.° 2201/2003 não impõem ao juiz do Estado‑Membro de origem a audição da criança em todos os casos, deixando assim uma certa margem de apreciação a esse juiz, não é menos certo que, quando decide ouvir a criança, estas disposições obrigam‑no a tomar, em função do interesse superior da criança e tendo em conta as circunstâncias de cada situação, todas as medidas adequadas com vista a tal audição, a fim de respeitar o efeito útil das referidas disposições, oferecendo à criança uma oportunidade real e efectiva de se exprimir.

    67      Com o mesmo objectivo, o juiz do Estado‑Membro de origem deve recorrer, na medida do possível e tomando sempre em consideração o interesse superior da criança, a todos os meios de que disponha no âmbito do direito nacional, bem como aos instrumentos próprios da cooperação judicial transfronteiriça, incluindo, se for caso disso, os previstos pelo Regulamento n.° 1206/2001.

    68      Daqui resulta que o juiz do Estado‑Membro de origem só pode emitir uma certidão em conformidade com as exigências do artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003 depois de ter verificado que, em função do interesse superior da criança e tendo em conta todas as circunstâncias da situação, a decisão à qual corresponderá tal certidão foi adoptada respeitando o direito da criança de se exprimir livremente e que foi oferecida a esta última uma oportunidade real e efectiva de se exprimir, tendo em conta os meios processuais nacionais e os instrumentos da cooperação judicial internacional.

    69      No entanto, como indicado no n.° 51 do presente acórdão, compete exclusivamente aos tribunais nacionais do Estado‑Membro de origem examinar a legalidade da referida decisão à luz das exigências impostas, designadamente, pelo artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais e pelo artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003.

    70      Com efeito, como sublinhado no n.° 46 do presente acórdão, os sistemas de reconhecimento e de execução das decisões proferidas num Estado‑Membro estabelecidos pelo referido regulamento baseiam‑se no princípio da confiança recíproca entre os Estados‑Membros quanto ao facto de as respectivas ordens jurídicas nacionais estarem em condições de fornecer uma protecção equivalente e efectiva dos direitos fundamentais, reconhecidos ao nível da União, em particular, na Carta dos Direitos Fundamentais.

    71      Neste contexto, como salientou o advogado‑geral no n.° 135 da sua tomada de posição, é portanto na ordem jurídica do Estado‑Membro de origem que as partes interessadas devem explorar as vias de recurso que permitam contestar a legalidade de uma decisão acompanhada da respectiva certidão ao abrigo do artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003.

    72      No que respeita ao litígio no processo principal, cabe salientar, por um lado, que resulta dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça que está pendente um processo de recurso na Audiencia Provincial de Bizkaya. Por outro lado, o Governo espanhol assinalou na audiência de alegações que a decisão deste último tribunal é igualmente susceptível de recurso em direito interno, ou seja, pelo menos, de um «recurso de amparo» para o Tribunal Constitucional, no quadro do qual podem designadamente ser suscitadas eventuais violações dos direitos fundamentais, entre os quais o direito da criança de ser ouvida.

    73      Assim, incumbe aos tribunais do Estado‑Membro de origem verificar se a decisão objecto de uma certidão emitida em aplicação do artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003 comporta uma violação do direito da criança de ser ouvida.

    74      Decorre de tudo quanto precede que, em circunstâncias como as do processo principal, a questão da eventual violação do artigo 42.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea a), do Regulamento n.° 2201/2003 pelo tribunal do Estado‑Membro de origem que proferiu a decisão acompanhada da respectiva certidão é da exclusiva competência dos tribunais deste Estado‑Membro e que o juiz competente do Estado‑Membro de execução não se pode opor ao reconhecimento e à execução da referida decisão, atendendo à certidão emitida pelo referido tribunal do Estado‑Membro de origem.

    75      Tendo em conta todas estas considerações, há que responder às questões submetidas que, em circunstâncias como as do processo principal, o tribunal competente do Estado‑Membro de execução não se pode opor à execução de uma decisão, acompanhada da respectiva certidão, que ordena o regresso de uma criança ilicitamente retida, com o fundamento de que o tribunal do Estado‑Membro de origem que proferiu essa decisão terá violado o artigo 42.° do Regulamento n.° 2201/2003, interpretado em conformidade com o artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais, uma vez que a apreciação da existência de tal violação é da exclusiva competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem.

     Quanto às despesas

    76      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

    Em circunstâncias como as do processo principal, o tribunal competente do Estado‑Membro de execução não se pode opor à execução de uma decisão, acompanhada da respectiva certidão, que ordena o regresso de uma criança ilicitamente retida, com o fundamento de que o tribunal do Estado‑Membro de origem que proferiu essa decisão terá violado o artigo 42.° do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, interpretado em conformidade com o artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, uma vez que a apreciação da existência de tal violação é da exclusiva competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem.

    Assinaturas


    * Língua do processo: alemão.

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