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Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62004CJ0237

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 23 de Março de 2006.
Enirisorse SpA contra Sotacarbo SpA.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunale di Cagliari - Itália.
Auxílios de Estado - Artigos 87.º CE e 88.º CE - Conceito de 'auxílio' - Participação de uma empresa pública no capital de uma empresa privada - Direito de exoneração sob reserva de uma renúncia prévia a todo e qualquer direito sobre o património da sociedade.
Processo C-237/04.

Colectânea de Jurisprudência 2006 I-02843

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2006:197

Processo C‑237/04

Enirisorse SpA

contra

Sotacarbo SpA

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Cagliari)

«Auxílios de Estado – Artigos 87.° CE e 88.° CE – Conceito de ‘auxílio’ – Participação de uma empresa pública no capital de uma empresa privada – Direito de exoneração sob reserva de uma renúncia prévia a todo e qualquer direito sobre o património da sociedade»

Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro apresentadas em 12 de Janeiro de 2006 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 23 de Março de 2006 

Sumário do acórdão

1.     Questões prejudiciais – Admissibilidade – Necessidade de fornecer ao Tribunal de Justiça esclarecimentos suficientes quanto ao contexto factual e legal

(Artigo 234.° CE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 23.°)

2.     Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites

(Artigo 88.° CE e 234.° CE)

3.     Concorrência – Normas comunitárias – Empresa – Conceito

4.     Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

5.     Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

1.     A necessidade de se chegar a uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam estas questões. Assim, as informações fornecidas na decisão de reenvio não devem apenas permitir ao Tribunal dar respostas úteis, mas devem também dar aos Governos dos Estados‑Membros e às outras partes interessadas a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça. Cabe ao Tribunal de Justiça velar por que esta possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta o facto de que, nos termos da disposição referida, apenas as decisões de reenvio são notificadas às partes interessadas. É, além disso, indispensável que o juiz nacional forneça um mínimo de explicações sobre os motivos da escolha das disposições comunitárias cuja interpretação pede e o nexo que faz entre estas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio.

(cf. n.os 17‑18, 21)

2.     A apreciação da compatibilidade de medidas de auxílio ou de um regime de auxílios com o mercado comum é da competência exclusiva da Comissão, que actua sob a fiscalização do juiz comunitário. Consequentemente, um tribunal nacional não pode, no âmbito de um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, questionar o Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade de um auxílio de Estado ou de um regime de auxílios com o mercado comum. Contudo, embora não incumba ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se, no quadro de um procedimento instaurado ao abrigo do artigo 234.° CE, sobre a compatibilidade de normas de direito interno com o direito comunitário nem interpretar disposições legislativas ou regulamentares nacionais, este tem, no entanto, competência para fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todos os elementos de interpretação que se prendam com o direito comunitário e que possam permitir‑lhe apreciar essa compatibilidade para decidir o processo perante ele pendente.

(cf. n.os 23‑24)

3.     No contexto do direito da concorrência, o conceito de «empresa» abrange qualquer entidade que exerça uma actividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento. Constitui uma actividade económica qualquer actividade consistente na oferta de bens ou serviços num determinado mercado. A este propósito, por um lado, o modo de financiamento não é pertinente e, por outro, o facto de serem confiadas a uma entidade determinadas missões de interesse geral não impede que as actividades em causa sejam consideradas actividades económicas.

(cf. n.os 28‑29, 33‑34)

4.     A qualificação de auxílio exige que todos os requisitos previstos no artigo 87.°, n.° 1, CE estejam preenchidos. Por conseguinte, em primeiro lugar, deve tratar‑se de uma intervenção do Estado ou proveniente de recursos estatais. Em segundo lugar, essa intervenção deve ser susceptível de afectar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros. Em terceiro lugar, deve conceder uma vantagem ao seu beneficiário. Em quarto lugar, deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência.

O conceito de auxílio abrange não só prestações positivas mas também intervenções que, sob diversas formas, atenuam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e que, por isso, não sendo subvenções na acepção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos.

(cf. n.os 38‑39, 42)

5.     Uma legislação nacional que concede aos sócios de uma empresa controlada pelo Estado a faculdade, que derroga o direito comum, de se exonerarem desta sociedade na condição de renunciarem aos seus direitos sobre o património da referida sociedade, não é susceptível de ser qualificada de auxílio de Estado na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

(cf. n.° 51)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

23 de Março de 2006 (*)

«Auxílios de Estado − Artigos 87.° CE e 88.° CE − Conceito de ‘auxílio’ – Participação de uma empresa pública no capital de uma empresa privada – Direito de exoneração sob reserva de uma renúncia prévia a todo e qualquer direito sobre o património da sociedade»

No processo C‑237/04,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Tribunale di Cagliari (Itália), por decisão de 14 de Maio de 2004, entrado no Tribunal de Justiça em 7 de Junho de 2004, no processo

Enirisorse SpA

contra

Sotacarbo SpA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, R. Schintgen (relator), R. Silva de Lapuerta, P. Kūris e G. Arestis, juízes,

advogado‑geral: M. Poiares Maduro,

secretário: K. Sztranc, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 27 de Outubro de 2005,

vistas as observações apresentadas:

–       em representação da Enirisorse SpA, por G. Dore e C. Dore, avvocati,

–       em representação da Sotacarbo SpA, por F. Angioni, D. Scano, G. M. Roberti e I. Perego, avvocati,

–       em representação do Governo italiano, por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por P. Gentili, avvocato dello Stato,

–       em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por V. Di Bucci e E. Righini, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 12 de Janeiro de 2006,

profere o presente

Acórdão

1       O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 43.° CE, 44.° CE, 48.° CE, 49.° CE e seguintes, no que respeita à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, bem como do artigo 87.° CE.

2       Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Enirisorse SpA (a seguir «Enirisorse») à Sotacarbo SpA (a seguir «Sotacarbo»), a respeito da recusa de esta última reembolsar à Enirisorse o valor das acções que esta detinha na Sotacarbo por ocasião da sua exoneração do capital da Sotacarbo.

 Quadro jurídico nacional

3       O artigo 2437.° do Código Civil italiano dispõe:

«Os sócios que se oponham às decisões relativas à alteração do objecto ou do tipo da sociedade ou à transferência da sede social para o estrangeiro têm o direito de se exonerar da sociedade e de obter o reembolso das suas acções, ao preço médio praticado no último semestre, se as acções estiverem cotadas em bolsa ou, caso contrário, proporcionalmente ao valor do património social resultante do balanço do último exercício.

A declaração de exoneração deve ser notificada por carta registada pelos sócios que participaram na assembleia‑geral até ao terceiro dia posterior ao seu termo, e pelos sócios que não assistiram à assembleia até ao décimo quinto dia posterior à data da inscrição da decisão no registo das decisões das empresas.

É nula toda e qualquer cláusula que exclua o direito de exoneração ou que dificulte o seu exercício.»

4       Nos termos do artigo 5.° da Legge n. 351, de 27 de Junho de 1985 (GURI n.° 166, de 16 de Julho de 1985, p. 5019, a seguir «legge n. 351/1985»):

«1.      O ENI, o ENEL e o ENEA estão autorizados a constituir uma sociedade anónima com o objectivo de desenvolver tecnologias inovadoras e avançadas na utilização do carvão (enriquecimento, técnicas de combustão, liquefacção, gaseificação, carboquímica, etc.) através:

a)      da criação, na Sardenha, do centro de investigação referido no artigo 1.°, alínea m), da legge n. 110 de 9 de Março de 1985;

b)      da realização do projecto e da construção de instalações que possibilitem inovações tecnológicas na utilização do carvão;

c)      da construção de instalações industriais para utilizar o carvão para fins diferentes da combustão.

2.      As despesas destinadas à constituição da sociedade anónima objecto do presente artigo serão imputadas nas dotações previstas no artigo 6.° da presente lei.

[…]

4.      As entidades referidas no n.° 1 do presente artigo estão autorizadas a contribuir, seja através dos seus fundos próprios, seja através dos meios que lhes serão atribuídos pelas leis do Estado, para o investimento necessário com vista à realização da fase industrial do projecto de desenvolvimento das tecnologias avançadas de utilização de carvão.

[…]»

5       O artigo 6.° da legge n. 351/1985 dispõe que as «despesas resultantes da aplicação da presente lei serão, à razão de 80 mil milhões de ITL para o ano de 1985, de 90 mil milhões de ITL para o ano de 1986 e de 100 mil milhões de ITL para o ano de 1987, pagas através da diminuição correspondente da dotação prevista, para efeitos do orçamento trienal de 1985‑1987, no capítulo 9001 do orçamento do Ministério do Tesouro para o exercício financeiro de 1985 recorrendo, para este efeito, à reserva ‘Intervenção a favor da Região da Sardenha no sector das energias minerais em substituição do plano global de metanização’».

6       O artigo 7.°, n.os 4 e 5, da legge n. 140, de 11 de Maio de 1999 (GURI n.° 117, de 21 de Maio de 1999, p. 4, a seguir «legge n. 140/1999») dispõe:

«4. O ENI e a ENEL são autorizados a exonerarem‑se da sociedade anónima referida no artigo 5.°, n.° 1, da legge n. 351, de 27 de Junho de 1985, constituída para desenvolver tecnologias inovadoras e avançadas para a utilização do carvão extraído da bacia carbonífera de Sulcis, após pagamento das partes que ainda não tenham sido liberadas.

5.      A sociedade referida no n.° 4 tem de apresentar, no prazo de oitenta dias a contar da entrada em vigor da presente lei, um novo programa de actividades com vista à prossecução das suas actividades.»

7       O artigo 33.° da legge n. 273 de 12 de Dezembro de 2002 (suplemento ordinário à GURI n.° 293, de 14 de Dezembro de 2002, a seguir «legge n. 273/2002») tem a seguinte redacção:

«Para garantir os recursos financeiros necessários à execução, por parte da Sotacarbo SpA, dos planos de actividade referidos no artigo 7.°, n.° 5, da legge n. 140, de 11 de Maio de 1999, os sócios da mesma sociedade devem proceder ao pagamento das partes ainda não liberadas, no prazo de 60 dias a contar da data de entrada em vigor da presente lei e têm a faculdade de se exonerar da sociedade, mediante renúncia prévia aos seus direitos sobre o património da sociedade e a realização prévia das entradas de capital ainda devidas. As declarações de exoneração já comunicadas à Sotacarbo SpA, nos termos do artigo 7.°, n.° 4, da citada legge n. 140, de 11 de Maio de 1999, podem ser revogadas no prazo de trinta dias a contar da data de entrada em vigor da presente lei. Decorrido esse prazo, presume‑se que a declaração de exoneração é definitiva, com plena aceitação, por parte do sócio exonerado, das condições acima indicadas.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8       A sociedade referida no artigo 5.° da legge n. 351/1985 foi constituída sob o nome Sotacarbo. Os três accionistas eram, respectivamente, as entidades públicas (Ente nazionale idrocarburi, a seguir «ENI» e Ente nazionale per l’energia elettrica, a seguir «ENEL») e um organismo público (Comitato nazionale per la ricerca e lo sviluppo dell’energia nucleare e delle energie alternative, a seguir «ENEA»). Como decorre do artigo 6.° desta lei, o financiamento da operação de constituição da Sotacarbo foi assumido pelo Estado.

9       Em 1987, o ENI pagou à Sotacarbo 12 708 900 033 ITL a título de capital para a criação de um centro de investigação relativo ao carvão na Sardenha.

10     Em 1992, o ENI e o ENEL foram privatizados e transformados em sociedades anónimas. O ENI, que já não estava interessado em manter a sua participação na Sotacarbo, transferiu esta participação para a sua filial Enirisorse. Esta, nos termos do artigo 7.°, n.° 4 da legge n. 140/1999, exerceu o seu direito de exoneração da Sotacarbo e procedeu ao pagamento do montante equivalente à fracção ainda não liberada da sua participação. Pediu simultaneamente à Sotacarbo o reembolso das suas acções na proporção do património social desta última.

11     A Sotacarbo não deu seguimento a esse pedido e informou, em 12 de Março de 2001, a Enirisorse de que, na assembleia extraordinária de 12 de Fevereiro do mesmo ano foi decidido anular as acções da Enirisorse sem proceder ao reembolso do seu valor.

12     A Enirisorse intentou uma acção no Tribunale di Cagliari para obter o reembolso do valor das acções em questão. Na sua acção, alega que o artigo 7.°, n.° 4, da legge n. 140/1999 lhe reconheceu o direito de se exonerar da Sotacarbo e que, nos termos do artigo 2437.° do Código Civil, esta última tinha de lhe reembolsar o valor das acções em causa.

13     A entrada em vigor da legge n. 273/2002, adoptada após a Enirisorse ter intentado a acção e, em especial, o artigo 33.° desta lei, levou a Enirisorse a pedir a esse órgão jurisdicional para submeter ao Tribunal de Justiça a questão de saber, designadamente, se uma medida como a prevista no artigo 33.° da referida lei constitui um auxílio de Estado na acepção do artigo 87.° CE.

14     Considerando, por um lado, que o artigo 33.° da legge n. 273/2002 faz com que a Sotacarbo beneficie de um subsídio que há que apreciar à luz das disposições do Tratado CE relativas aos auxílios de Estado e tendo, por outro lado, dúvidas quanto à compatibilidade deste artigo com o princípio da igualdade de tratamento «em economia de mercado», o Tribunale di Cagliari decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A disposição do artigo 33.° da legge n. 273/2002 constitui um auxílio de Estado incompatível [com o mercado comum], na acepção do artigo 87.° do Tratado [CE], a favor da Sotacarbo SpA, auxílio esse ilegal também pelo facto de não ter sido notificado nos termos do artigo 88.°, n.° 3, CE?

2)      A referida disposição legal viola o disposto nos artigos 43.° CE, 44.° CE, 48.° CE e 49.° CE e seguintes, em matéria de liberdade de estabelecimento e de livre circulação de serviços?»

 Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

 Observações submetidas ao Tribunal de Justiça

15     Em primeiro lugar, a Sotacarbo alega que, tendo em conta os critérios desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça no que respeita à admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial, as questões submetidas no caso vertente pelo órgão jurisdicional de reenvio devem ser julgadas inadmissíveis. Com efeito, antes de mais, o despacho de reenvio não fornece nenhuma descrição da natureza jurídica específica da sociedade Sotacarbo, da missão de interesse geral confiada a esta última ou do regime especial a que esta sociedade está sujeita. Depois, o órgão jurisdicional de reenvio não descreve suficientemente o quadro jurídico nacional em que se insere o artigo 33.° da legge n. 273/2002. Por último, o despacho de reenvio não fornece nenhuma explicação relativamente à relação existente entre os artigos do Tratado objecto da primeira questão e o objecto da segunda questão. Além disso, a segunda questão não tem qualquer relevância para a solução do litígio no processo principal.

16     Por seu lado, o Governo italiano e a Comissão das Comunidades Europeias recordam que, tal como resulta do acórdão de 17 de Junho de 1999 Piaggio (C‑295/97, Colect., p. I‑3735, n.os 29 a 33), não compete ao Tribunal de Justiça no âmbito de um pedido de decisão prejudicial pronunciar‑se sobre a compatibilidade de um eventual auxílio de Estado com o mercado comum. Assim, o Tribunal de Justiça pode apenas apreciar se a disposição nacional em causa no processo principal é abrangida ou não pelo conceito de «auxílio de Estado». Nestas condições, o Governo italiano considera que a parte da primeira questão prejudicial que visa estabelecer se a medida do processo principal constitui um auxílio de Estado incompatível com o mercado comum é inadmissível. Por sua vez, a Comissão propõe a reformulação dessa primeira questão de forma a que o Tribunal de Justiça possa dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional nacional. Relativamente à segunda questão prejudicial, o Governo italiano e a Comissão consideram que, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio não indicou os motivos precisos que o levaram a colocar essa questão, ela é inadmissível.

 Resposta do Tribunal de Justiça

17     Antes de mais, há que lembrar que, segundo jurisprudência assente, a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam estas questões (v., nomeadamente, acórdãos de 21 de Setembro de 1999, Brentjens’, C‑115/97 a C‑117/97, Colect., p. I‑6025, n.° 38; de 11 de Setembro de 2003, Altair Chimica, C‑207/01, Colect., p. I‑8875, n.° 24; e de 9 de Setembro de 2004, Carbonati Apuani, C‑72/03, Colect., p. I‑8027, n.° 10).

18     Assim, as informações fornecidas na decisão de reenvio não devem apenas permitir ao Tribunal dar respostas úteis, mas devem também dar aos Governos dos Estados‑Membros e às outras partes interessadas a possibilidade de apresentarem observações em conformidade com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça. Cabe ao Tribunal de Justiça velar por que esta possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta o facto de que, nos termos da disposição referida, apenas as decisões de reenvio são notificadas às partes interessadas (v., nomeadamente, despachos de 30 de Abril de 1998, Testa e Modesti, C‑128/97 e C‑137/97, Colect., p. I‑2181, n.° 6; de 11 de Maio de 1999, Anssens, C‑325/98, Colect., p. I‑2969, n.° 8; e acórdão Altair Chimica, já referido, n.° 25).

19     No caso vertente, a decisão de reenvio expõe, de forma breve mas precisa, o quadro jurídico nacional pertinente bem como a origem e a natureza do litígio. Daqui resulta que o órgão jurisdicional de reenvio definiu de modo suficiente o quadro tanto factual como jurídico em que formula o seu pedido de interpretação do direito comunitário e que forneceu ao Tribunal de Justiça todas as informações necessárias para este poder responder utilmente ao referido pedido.

20     Por conseguinte, o argumento da Sotacarbo, com o objectivo de obter a declaração de inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial na sua totalidade, deve ser julgado improcedente.

21     Em seguida, no que respeita em especial à segunda questão prejudicial, há que recordar que o Tribunal de Justiça decidiu que é indispensável que o juiz nacional forneça um mínimo de explicações sobre os motivos da escolha das disposições comunitárias cuja interpretação pede e o nexo que faz entre estas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio (despacho de 28 de Junho de 2000, Laguillaumie, C‑116/00, Colect., p. I‑4979, n.° 16, e acórdão Carbonati Apuani, já referido, n.° 11).

22     Ora, há que observar que, no caso vertente, o órgão jurisdicional de reenvio não fornece nenhuma indicação quanto às razões da escolha das disposições comunitárias objecto da segunda questão. Por conseguinte, há que declarar esta questão inadmissível.

23     Por último, relativamente à primeira questão prejudicial, resulta de jurisprudência assente que a apreciação da compatibilidade de medidas de auxílio ou de um regime de auxílios com o mercado comum é da competência exclusiva da Comissão, que actua sob a fiscalização do juiz comunitário (acórdãos de 21 de Novembro de 1991, Fédération nationale du commerce extérieur des produits alimentaires e Syndicat national des négociants et transformateurs de saumon, C‑354/90, Colect., p. I‑5505, n.° 14; de 11 de Julho de 1996, SFEI e o., C‑39/94, Colect., p. I‑3547, n.° 42; e Piaggio, já referido, n.° 31). Consequentemente, um tribunal nacional não pode, no âmbito de um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, questionar o Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade de um auxílio de Estado ou de um regime de auxílios com o mercado comum (despacho de 24 de Julho de 2003, Sicilcassa e o., C‑297/01, Colect., p. I‑7849, n.° 47).

24     No entanto, o Tribunal de Justiça também decidiu iterativamente que, se não lhe compete pronunciar‑se, no quadro de um procedimento instaurado ao abrigo do artigo 234.° CE, sobre a compatibilidade de normas de direito interno com o direito comunitário nem interpretar disposições legislativas ou regulamentares nacionais, este Tribunal tem, no entanto, competência para fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todos os elementos de interpretação que se prendam com o direito comunitário e que possam permitir‑lhe apreciar essa compatibilidade para decidir o processo perante ele pendente (v., nomeadamente, acórdãos de 15 de Dezembro de 1993, Hünermund e o., C‑292/92, Colect., p. I‑6787, n.° 8; de 3 de Maio de 2001, Verdonck e o., C‑28/99, Colect., p. I‑3399, n.° 28; de 12 de Julho de 2001, Ordine degli Architetti e o., C‑399/98, Colect., p. I‑5409, n.° 48; e de 27 de Novembro de 2001, Lombardini e Mantovani, C‑285/99 e C‑286/99, Colect., p. I‑9233, n.° 27).

25     Nestas condições, há que referir que a primeira questão prejudicial só é admissível na medida em que o órgão jurisdicional nacional queira saber se uma medida nacional como a em causa no processo principal, que concede aos sócios de uma empresa controlada pelo Estado a faculdade, que derroga o direito comum, de se exonerarem desta sociedade, mediante renúncia prévia aos seus direitos sobre o património da referida sociedade deve ser qualificada de auxílio de Estado, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

 Quanto à primeira questão

26     Antes de mais, há que recordar que a questão, assim reformulada, incide apenas sobre a interpretação do artigo 87.°, n.° 1, CE. Por conseguinte, há que analisar se estão reunidas os requisitos de aplicação desta disposição.

27     Em primeiro lugar, há que verificar se a Sotacarbo é uma empresa na acepção da referida disposição.

28     A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência assente, no contexto do direito da concorrência, o conceito de «empresa» abrange qualquer entidade que exerça uma actividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento (v., designadamente, acórdãos de 23 de Abril de 1991, Höfner e Elser, C‑41/90, Colect., p. I‑1979, n.° 21; de 21 de Setembro de 1999, Albany, C‑67/96, Colect., p. I‑5751, n.° 77; de 12 de Setembro de 2000, Pavlov e o., C‑180/98 a C‑184/98, Colect., p. I‑6451, n.° 74; e de 10 de Janeiro de 2006, Cassa di Risparmio di Firenze e o., C‑222/04, Colect., p. I‑289, n.° 107).

29     Constitui uma actividade económica qualquer actividade consistente na oferta de bens ou serviços num determinado mercado (acórdãos de 16 de Junho de 1987, Comissão/Itália, 118/85, Colect., p. 2599, n.° 7; de 18 de Junho de 1998, Comissão/Itália, C‑35/96, Colect., p. I‑3851, n.° 36; Pavlov e o., já referido, n.° 75; e Cassa di Risparmio di Firenze e o., já referido, n.° 108).

30     No caso vertente, embora a apreciação definitiva a esse respeito pertença ao órgão jurisdicional nacional, há que observar que diversos elementos do processo à disposição do Tribunal de Justiça revelam que a actividade da Sotacarbo pode ter carácter económico.

31     Com efeito, como referiu o advogado‑geral no n.° 25 das suas conclusões, a Sotacarbo tem, designadamente, como missão desenvolver novas tecnologias de utilização do carvão e prestar serviços de apoio especializado às administrações, aos organismos públicos e às sociedades interessadas no desenvolvimento dessas tecnologias. Ora, é precisamente neste género de actividades que consiste geralmente a actividade económica de uma empresa. Além disso, não é contestado que a Sotacarbo tem fins lucrativos.

32     Contrariamente ao que alega o Governo italiano, esta apreciação não é posta em causa pelo facto de a Sotacarbo ter sido constituída por entidades públicas e financiada através de recursos provenientes do Estado italiano para exercer determinadas actividades de investigação.

33     Com efeito, por um lado, resulta de jurisprudência assente que o modo de financiamento não é pertinente para determinar se uma entidade exerce uma actividade económica (v. n.° 28 do presente acórdão).

34     Por outro lado, o Tribunal de Justiça já decidiu que o facto de serem confiadas a uma entidade determinadas missões de interesse geral não impede que as actividades em causa sejam consideradas actividades económicas (v., neste sentido, acórdão de 25 de Outubro de 2001, Ambulanz Glöckner, C‑475/99, Colect., p. I‑8089, n.° 21).

35     Daí resulta que o facto de a Sotacarbo ter sido criada com o objectivo de exercer determinadas actividades de investigação não é determinante a esse respeito, contrariamente ao que alega esta última.

36     Nestas condições, não se pode excluir que a Sotacarbo exerce uma actividade económica e, portanto, pode ser qualificada de empresa na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

37     Em segundo lugar, há que analisar os diferentes elementos constitutivos do conceito de auxílio de Estado objecto da referida disposição.

38     Com efeito, o Tribunal de Justiça decidiu iterativamente que a qualificação de auxílio exige que todos os requisitos previstos no artigo 87.°, n.° 1, CE estejam preenchidos (v. acórdãos de 21 de Março de 1990, Bélgica/Comissão, dito «Tubemeuse», C‑142/87, Colect., p. I‑959, n.° 25; de 14 de Setembro de 1994, Espanha/Comissão, C‑278/92 a C‑280/92, Colect., p. I‑4103, n.° 20; de 16 de Maio de 2002, França/Comissão, C‑482/99, Colect., p. I‑4397, n.° 68; e de 24 de Julho de 2003, Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg, C‑280/00, Colect., p. I‑7747, n.° 74).

39     Por conseguinte, em primeiro lugar, deve tratar‑se de uma intervenção do Estado ou proveniente de recursos estatais. Em segundo lugar, essa intervenção deve ser susceptível de afectar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros. Em terceiro lugar, deve conceder uma vantagem ao seu beneficiário. Em quarto lugar, deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência (v. acórdãos Altmark Trans e Regierungspräsidium Magdeburg, já referido, n.° 75, e de 3 de Março de 2005, Heiser, C‑172/03, Colect., p. I‑1627, n.° 27).

40     Uma vez que as observações das partes no caso vertente visam principalmente a terceira condição, há que analisá‑la em primeiro lugar.

41     Assim, enquanto a recorrida no processo principal alega que o artigo 33.° da legge n. 273/2002 constitui uma vantagem para a Sotacarbo, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, esta última, apoiada pela Comissão, considera que tal não se verifica.

42     A este respeito, há que recordar que resulta de jurisprudência assente que o conceito de auxílio abrange não só prestações positivas mas também intervenções que, sob diversas formas, atenuam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e que, por isso, não sendo subvenções na acepção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos (v., designadamente, acórdãos de 8 de Novembro de 2001, Adria‑Wien Pipeline e Wietersdorfer & Peggauer Zementwerke, C‑143/99, Colect., p. I‑8365, n.° 38, e Heiser, já referido, n.° 36).

43     No caso vertente, há que referir que as leggi nn. 140/1999 e 273/2002 que, tal como recordou o advogado‑geral no n.° 32 das suas conclusões, não podem ser consideradas isoladamente, instituem um regime derrogatório às disposições de direito comum que regulam o direito de exoneração dos accionistas das sociedades anónimas que decorre, designadamente, do artigo 2437.° do Código Civil. Com efeito, este último só concede um direito de exoneração aos accionistas que se opuseram às decisões relativas à alteração de objecto ou do tipo de sociedade ou à transferência da sede para o estrangeiro.

44     Por conseguinte, a legge n. 140/1999 oferece aos accionistas da Sotacarbo uma faculdade excepcional de exoneração, através da liquidação das partes ainda não liberadas, de que não beneficiariam se esta lei não tivesse sido adoptada, uma vez que os requisitos de aplicação do artigo 2437.° do Código Civil não estavam preenchidos no caso concreto do processo principal.

45     Além disso, o artigo 33.° da legge n. 273/2002 só exclui o reembolso dos accionistas na medida em que estes utilizem essa faculdade que derroga o regime do direito comum.

46     Ora, a referida faculdade não pode ser considerada uma vantagem para a Sotacarbo, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

47     Com efeito, tal como referiu com razão a Comissão, a legislação nacional em causa no processo principal não concede uma vantagem aos accionistas, que se podem exonerar excepcionalmente da Sotacarbo sem obter o reembolso das suas acções, nem à referida sociedade, uma vez que os accionistas são autorizados mas não obrigados a retirar‑se da sociedade quando as condições previstas para esse efeito pelo direito comum não estiverem reunidas.

48     Daqui resulta que a legge n. 273/2002 se limita a evitar que o orçamento da Sotacarbo seja onerado por uma despesa que, numa situação normal, não existiria. Por conseguinte, esta lei limita‑se a enquadrar a faculdade de exoneração excepcional concedida aos accionistas da referida sociedade pela legge n. 140/1999 sem ter por objectivo diminuir um encargo que esta mesma sociedade tem normalmente que suportar.

49     A este respeito, há que acrescentar que se o artigo 33.° da legge n. 273/2002 excluísse também o direito ao reembolso no caso de uma exoneração exercida nas condições do artigo 2437.° do Código Civil, a referida disposição poderia constituir uma vantagem na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE. Ora, não resulta do processo apresentado ao Tribunal de Justiça que seja essa a situação.

50     Uma vez que os requisitos previstos no artigo 87.°, n.° 1, CE são cumulativos (v. n.° 38 do presente acórdão), já não é necessário analisar se os outros elementos do conceito de auxílio de Estado estão reunidos no caso vertente.

51     Por conseguinte, há que responder à primeira questão que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que concede aos sócios de uma empresa controlada pelo Estado a faculdade, que derroga o direito comum, de se exonerarem desta sociedade na condição de renunciarem aos seus direitos sobre o património da referida sociedade, não é susceptível de ser qualificada de auxílio de Estado na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

 Quanto às despesas

52     Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

Uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que concede aos sócios de uma empresa controlada pelo Estado a faculdade, que derroga o direito comum, de se exonerarem desta sociedade, na condição de renunciarem aos seus direitos sobre o património da referida sociedade, não é susceptível de ser qualificada de auxílio de Estado na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.

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