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Documento 62001CJ0006

    Acórdão do Tribunal (Terceira Secção) de 11 de Setembro de 2003.
    Associação Nacional de Operadores de Máquinas Recreativas (Anomar) e outros contra Estado português.
    Pedido de decisão prejudicial: Tribunal Cível da Comarca de Lisboa - Portugal.
    Livre prestação de serviços - Exploração dos jogos de fortuna ou azar - Máquinas de jogo.
    Processo C-6/01.

    Colectânea de Jurisprudência 2003 I-08621

    Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2003:446

    62001J0006

    Acórdão do Tribunal (Terceira Secção) de 11 de Setembro de 2003. - Associação Nacional de Operadores de Máquinas Recreativas (Anomar) e outros contra Estado português. - Pedido de decisão prejudicial: Tribunal Cível da Comarca de Lisboa - Portugal. - Livre prestação de serviços - Exploração dos jogos de fortuna ou azar - Máquinas de jogo. - Processo C-6/01.

    Colectânea da Jurisprudência 2003 página I-08621


    Sumário
    Partes
    Fundamentação jurídica do acórdão
    Decisão sobre as despesas
    Parte decisória

    Palavras-chave


    1. Livre prestação de serviços - Disposições do Tratado - Âmbito de aplicação - Actividade de exploração de máquinas de jogos de fortuna ou azar - Inclusão - Monopólio de exploração dos referidos jogos - Inaplicabilidade do artigo 31.° CE

    (Artigos 2.° CE, 28.° CE, 29.° CE, 31.° CE e 49.° CE)

    2. Livre prestação de serviços - Restrições - Legislação nacional que limita o direito de exploração dos jogos de fortuna ou azar às salas de casinos - Justificação - Protecção da ordem social e prevenção da fraude - Existência de condições menos estritas noutros Estados-Membros - Não incidência - Modalidades de organização e de controlo - Poder de apreciação das autoridades nacionais

    (Artigo 49.° CE)

    Sumário


    1. Os jogos de fortuna ou azar constituem actividades económicas na acepção do artigo 2.° CE. Em especial, a actividade de exploração de máquinas de jogos de fortuna ou azar, quer seja ou não dissociável das actividades relativas à produção, à importação e à distribuição dessas máquinas, deve receber a qualificação de actividade de serviços, na acepção do Tratado, e não pode, portanto, ser abrangida pelos artigos 28.° CE e 29.° CE, relativos à livre circulação de mercadorias. Além disso, uma vez que constituem uma actividade de serviços, um monopólio de exploração desses jogos não se enquadra no âmbito de aplicação do artigo 31.° CE, que visa as trocas comerciais de mercadorias.

    ( cf. n.os 48, 56, 59-61, disp. 1-3 )

    2. Uma legislação nacional que limita a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar a certos locais como as salas de casinos e se aplica indistintamente a cidadãos nacionais e de outros Estados-Membros constitui um entrave à livre prestação de serviços. No entanto, os artigos 49.° CE e seguintes não se opõem a uma tal legislação quando a mesma assenta em preocupações de política social e de prevenção da fraude.

    Por outro lado, a eventual existência, noutros Estados-Membros, de legislações que estabelecem condições de exploração e de prática dos jogos de fortuna ou azar menos restritivas do que as previstas pela legislação em causa não tem efeitos sobre a compatibilidade desta última com o direito comunitário. Com efeito, compete às autoridades nacionais apreciar se, no contexto da finalidade prosseguida, é necessário proibir total ou parcialmente as actividades desta natureza ou se basta restringi-las e prever, para este efeito, modalidades de controlo mais ou menos estritas.

    Cabe igualmente às autoridades nacionais, no âmbito do seu poder de apreciação, escolherem as modalidades de organização e de controlo das actividades de exploração e de prática dos jogos de fortuna ou azar, como a celebração com o Estado de um contrato administrativo de concessão ou a limitação da exploração e da prática de certos jogos aos locais devidamente autorizados para o efeito.

    ( cf. n.os 75, 79, 81, 87, 88, disp. 4-6 )

    Partes


    No processo C-6/01,

    que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pelo Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (Portugal), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

    Associação Nacional de Operadores de Máquinas Recreativas (Anomar) e o.

    e

    Estado português,

    uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 2.° CE, 28.° CE, 29.° CE, 31.° CE e 49.° CE,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    composto por: J.-P. Puissochet (relator), presidente de secção, C. Gulmann e F. Macken, juízes,

    advogado-geral: A. Tizzano,

    secretário: L. Hewlett, administradora pincipal,

    vistas as observações escritas apresentadas:

    - em representação da Associação Nacional de Operadores de Máquinas Recreativas (Anomar) e o., por R. Francês, advogado,

    - em representação do Governo português, por L. Fernandes, J. Ramos Alexandre e por M. L. Duarte, na qualidade de agentes,

    - em representação do Governo belga, por F. Van de Craen, na qualidade de agente, assistido por P. Vlaemminck, avocat,

    - em representação do Governo alemão, por W.-D. Plessing e B. Muttelsee-Schön, na qualidade de agentes,

    - em representação do Governo espanhol, por M. López-Monís Gallego, na qualidade de agente,

    - em representação do Governo finlandês, por E. Bygglin, na qualidade de agente,

    - em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por A. Caeiros e M. Patakia, na qualidade de agentes,

    visto o relatório para audiência,

    ouvidas as alegações da Associação Nacional de Operadores de Máquinas Recreativas (Anomar) e o., representadas por R. Francês, do Governo português, representado por M. L. Duarte, do Governo belga, representado por P. De Wael e P. Vlaemminck, na qualidade de agentes, do Governo espanhol, representado por L. Fraguas Gadea, na qualidade de agente, do Governo francês, representado por P. Boussaroque, na qualidade de agente, e da Comissão, representada por A. Caeiros e M. Patakia, na audiência de 26 de Setembro de 2002,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 11 de Fevereiro de 2003,

    profere o presente

    Acórdão

    Fundamentação jurídica do acórdão


    1 Por despacho de 25 de Maio de 2000, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 8 de Janeiro de 2001, o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa submeteu, nos termos do artigo 234.° CE, treze questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 2.° CE, 28.° CE, 29.° CE, 31.° CE e 49.° CE.

    2 Essas questões foram suscitadas no âmbito de um processo que opõe a Associação Nacional de Operadores de Máquinas Recreativas (a seguir «Anomar»), com sede em Lisboa, bem como oito sociedades comerciais portuguesas ligadas ao comércio e à exploração de máquinas de jogo (a seguir, conjuntamente, «autoras no processo principal») ao Estado português. As questões dizem respeito à legislação portuguesa relativa à exploração e à prática de jogos de fortuna ou azar, resultante do Decreto-Lei n.° 422/89, de 2 de Dezembro (Diário da República, I série, n.° 2777, de 2 de Dezembro de 1989), conforme alterado pelo Decreto-Lei n.° 10/95, de 19 de Janeiro (Diário da República, I série-A, n.° 16, de 19 de Janeiro de 1995, a seguir «Decreto-Lei n.° 422/89»), e à sua conformidade com o direito comunitário.

    Regulamentação comunitária

    3 O artigo 2.° CE prevê que «[a] Comunidade tem como missão, através da criação de um mercado comum e de uma união económica e monetária e da aplicação das políticas ou acções comuns [...] promover, em toda a Comunidade, o desenvolvimento harmonioso, equilibrado e sustentável das actividades económicas».

    4 Por força do disposto nos artigos 28.° CE e 29.° CE, são proibidas, entre os Estados-Membros, as restrições quantitativas à importação e à exportação, bem como todas as medidas de efeito equivalente.

    5 Nos termos do artigo 31.° CE:

    «1. Os Estados-Membros adaptarão os monopólios nacionais de natureza comercial, de modo a que esteja assegurada a exclusão de toda e qualquer discriminação entre nacionais dos Estados-Membros, quanto às condições de abastecimento e de comercialização.

    O disposto no presente artigo é aplicável a qualquer organismo através do qual um Estado-Membro, de jure ou de facto, controle, dirija ou influencie sensivelmente, directa ou indirectamente, as importações ou as exportações entre os Estados-Membros. Estas disposições são igualmente aplicáveis aos monopólios delegados pelo Estado.

    2. Os Estados-Membros abster-se-ão de tomar qualquer nova medida, que seja contrária aos princípios enunciados no n.° 1, ou que restrinja o âmbito da aplicação dos artigos relativos à proibição dos direitos aduaneiros e das restrições quantitativas entre os Estados-Membros.

    3. No caso de um monopólio de natureza comercial comportar regulamentação destinada a facilitar o escoamento ou a valorização de produtos agrícolas, devem ser tomadas medidas para assegurar, na aplicação do disposto no presente artigo, garantias equivalentes para o emprego e nível de vida dos produtores interessados.»

    6 O artigo 49.° CE dispõe:

    «[...] as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.

    O Conselho, deliberando por maioria qualificada, sob proposta da Comissão, pode determinar que as disposições do presente capítulo são extensivas aos prestadores de serviços nacionais de um Estado terceiro e estabelecidos na Comunidade.»

    Regulamentação nacional

    7 O Decreto-Lei n.° 422/89 regulamenta, designadamente, a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar, das modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogos, prevendo que a exploração e a prática de tais jogos fora das zonas devidamente autorizadas constituem uma infracção passível de pena privativa de liberdade. O princípio geral em que assenta o regime legal encontra-se no artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 422/89, que dispõe que «[o] direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado». Se o Estado é o único titular desse direito, o seu exercício, quando não é assegurado pelo Estado ou por um organismo público, está sujeito a autorização, mediante a conclusão de um contrato de concessão.

    8 O Decreto-Lei n.° 422/89, que se inscreve na continuidade de uma política legislativa de concessão nas zonas de jogo que remonta ao Decreto-Lei n.° 14643, de 3 de Dezembro de 1937, prevê que a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar estão confinados às salas de jogos dos casinos nas zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei.

    9 A legislação portuguesa distingue entre diferentes modalidades de jogo repartidas em quatro categorias, segundo os critérios enunciados pelas disposições aplicáveis do Decreto-Lei n.° 422/89 e às quais se aplicam regimes jurídicos diferentes.

    10 A primeira categoria engloba os jogos de fortuna ou azar. Nos termos do disposto no artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 422/89, «[j]ogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte».

    11 Nesta categoria, estão previstos dois tipos de jogos que implicam a utilização de máquinas. Por um lado, os «[j]ogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas», por outro, os «[j]ogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte» [artigo 4.° , n.° 1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.° 422/89].

    12 O direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado e só pode ser exercido por empresas constituídas sob a forma de sociedades anónimas a quem o governo adjudicar a respectiva concessão mediante contrato administrativo (artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 422/89). A concessão da exploração é feita por concurso público (artigo 10.° do Decreto-Lei n.° 422/89), excluindo qualquer critério discriminatório baseado na nacionalidade.

    13 A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei, bem como, em casos excepcionais e mediante autorização ministerial, em navios, aeronaves, salas reservadas ao jogo do bingo e por ocasião de manifestações de relevante interesse turístico (artigos 3.° , n.° 1, 6.° , 7.° e 8.° do Decreto-Lei n.° 422/89).

    14 A segunda categoria corresponde às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogos, que a lei define como «operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico» (artigo 159.° , n.° 1, do Decreto-Lei n.° 422/89). Trata-se, designadamente, de rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos (artigo 159.° , n.° 2, do Decreto-Lei n.° 422/89).

    15 A exploração destas modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo depende de autorização do membro do governo responsável pela administração interna, que fixará, em cada caso, as condições que tiver por convenientes e determinará o respectivo regime de fiscalização (artigo 160.° , n.° 1, do Decreto-Lei n.° 422/89). Por outro lado, não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos (artigo 161.° , n.° 3, do Decreto-Lei n.° 422/89).

    16 A terceira categoria enquadra os chamados «jogos de perícia» que atribuem prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico (artigo 162.° , n.° 1, do Decreto-Lei n.° 422/89).

    17 Não é permitida a exploração de máquinas cujos resultados dependam exclusiva ou fundamentalmente da perícia do jogador e que atribuam prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, mesmo que diminuto, salvo o prolongamento gratuito da utilização da máquina face à pontuação obtida (artigo 162.° , n.° 2, do Decreto-Lei n.° 422/89).

    18 A quarta categoria, a das máquinas de diversão, está sujeita a um regime específico, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 316/95, de 28 de Novembro (Diário da República, I série-A, n.° 275, de 28 de Novembro de 1995, a seguir «Decreto-Lei n.° 316/95»).

    19 São consideradas máquinas de diversão:

    - «[a]quelas que, não pagando prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, desenvolvem jogos cujos resultados dependem exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador, sendo permitido que ao utilizador seja concedido o prolongamento da utilização gratuita da máquina face à pontuação obtida» [artigo 16.° , n.° 1, alínea a), do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95];

    - «[a]quelas que, tendo as características definidas na alínea anterior, permitem a preensão de objectos cujo valor económico não exceda três vezes a importância despendida pelo utilizador» [artigo 16.° , n.° 1, alínea b), do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95].

    20 A importação, fabrico, montagem e venda de máquinas de diversão obrigam à classificação dos respectivos temas de jogo, competência reconhecida à Inspecção-Geral de Jogos (artigo 19.° do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    21 A exploração de máquinas desta categoria - automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas -, sejam elas importadas, produzidas ou montadas no país, está sujeita a um regime de registo e licenciamento (artigo 17.° , n.° 1, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    22 O registo da máquina é requerido pelo respectivo proprietário ao governador civil do distrito onde aquela se encontra ou em que se presume irá ser colocada em exploração (artigo 17.° , n.° 2, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    23 Para que a máquina possa ser colocada em exploração, exige-se, ainda, a emissão de licença de exploração por períodos anuais ou semestrais, pelo governador civil do distrito onde aquela se encontra ou em que se presume irá ser colocada em exploração (artigo 20.° , n.os 1 e 2, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    24 A licença pode se recusada, em despacho fundamentado, sempre que tal medida de polícia se justifique para a protecção à infância e juventude, prevenção da criminalidade e manutenção ou reposição da segurança, da ordem ou da tranquilidade públicas (artigo 20.° , n.° 3, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    25 As máquinas de diversão podem ser exploradas no interior de recinto ou estabelecimento previamente licenciado para a prática de jogos lícitos com máquinas de diversão, não podendo este situar-se nas proximidades de estabelecimentos de ensino (artigo 21.° , n.° 2, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95). Para que possam ser exploradas mais de três máquinas simultaneamente, o estabelecimento em causa terá de estar licenciado para a exploração exclusiva de jogos (artigo 21.° , n.° 1, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    26 Não são consideradas máquinas de diversão aquelas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. Este tipo de máquinas entra na categoria de jogos de fortuna ou azar [artigo 4.° , n.° 1, alínea g), do Decreto-Lei n.° 422/89] e é regulado pelo Decreto-Lei n.° 422/89 (artigo 16.° , n.° 2, do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95).

    27 As normas relativas à exploração e prática do jogo são, por força do artigo 95.° , n.° 2, do Decreto-Lei n.° 422/89, de interesse e ordem pública.

    O litígio no processo principal e as questões prejudiciais

    28 As autoras no processo principal intentaram contra o Estado português uma acção declarativa de simples apreciação positiva, nos termos do artigo 4.° , n.os 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil português, a fim de obter a declaração de que certas disposições do direito português em matéria de jogo não estão em conformidade com o direito comunitário, formulando os seguintes pedidos:

    - que seja reconhecido o direito à exploração e prática de jogos de fortuna e azar, fora das áreas circunscritas de jogo, extinguindo-se a situação monopólica dos casinos, com a consequente derrogação dos artigos 1.° , 3.° , n.os 1 e 2, e 4.° , n.° 1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.° 422/89, dada a prevalência das regras e princípios de direito comunitário enunciados na presente acção;

    - que, com a derrogação daquelas normas, seja considerado derrogado o direito delas derivado, designadamente as normas penais incriminadoras constantes dos artigos 108.° , 110.° , 111.° e 115.° do mesmo diploma, bem como todas as normas proibitivas e restritivas daquelas actividades, quer substantivas quer processuais, estabelecidas em quaisquer diplomas legais.

    29 Os pedidos formulados pelas autoras no processo principal fundamentam-se, por um lado, na desconformidade das citadas disposições legais do direito interno português com o direito comunitário e, por outro lado, na prevalência do direito comunitário sobre o direito ordinário interno, em aplicação do artigo 8.° , n.° 2, da Constituição da República Portuguesa.

    30 Em sede de defesa por excepção, o Estado português arguiu a inadmissibilidade do pedido, invocando, nomeadamente, a ilegitimidade de todas as autoras no processo principal por falta de um interesse directo e interligado com o pedido e a ilegitimidade da Anomar, por a procedência da acção lhe não trazer qualquer utilidade.

    31 Defendendo-se por impugnação, o Estado português sustentou que as normas e princípios de direito comunitário invocadas pelas autoras no processo principal são inaplicáveis à situação puramente interna em apreço e que a actividade de exploração das máquinas de jogo de fortuna ou azar não pode sequer ser enquadrada no regime da livre circulação de mercadorias.

    32 Em primeira instância, foram julgadas procedentes a excepção de ilegitimidade activa da Anomar e a excepção consistente na falta de interesse processual das restantes sociedades autoras.

    33 Todavia, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a decisão da primeira instância, reconhecendo a legitimidade da Anomar e que todas as autoras no processo principal tinham interesse em agir.

    34 Considerando que, tendo em conta a argumentação das partes, a interpretação do direito comunitário lhe era indispensável para a decisão da controvérsia jurídica que constitui objecto da acção declarativa de simples apreciação que lhe é presente, o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

    «1) Os jogos de fortuna ou azar constituem ou não uma actividade económica, na acepção do artigo 2.° CE?

    2) Os jogos de fortuna ou azar constituem ou não uma actividade relativa a mercadorias e que está abrangida, como tal, pelo artigo 28.° CE?

    3) As actividades relacionadas com a produção, a importação e a distribuição de máquinas de jogos têm ou não autonomia relativamente à actividade da exploração destas máquinas e, portanto, é ou não aplicável àquelas actividades o princípio da livre circulação de mercadorias instituído nos artigos 28.° CE e 29.° CE?

    4) A actividade de exploração e prática dos jogos de fortuna ou azar está ou não excluída do âmbito de aplicação do artigo 31.° CE, visto esta disposição não abranger os monopólios de prestação de serviços?

    5) A exploração de máquinas de jogo de fortuna ou azar constitui uma actividade de prestação de serviços e, como tal, está abrangida pelos artigos 49.° CE e seguintes?

    6) Um regime legal (como é o instituído nos artigos 3.° , n.° 1, e 4.° , n.° 1, do Decreto-Lei n.° 422/89, de 2 de Dezembro) segundo o qual a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar (definidos pelo artigo 1.° daquele diploma como aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte) - entre os quais estão incluídos [ex vi do citado artigo 4.° , n.° 1, alíneas f) e g), do Decreto-Lei n.° 422/89] os jogos em máquinas que paguem directamente prémios em fichas ou moedas e os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte - apenas é permitida nas salas dos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei - constitui ou não um entrave à livre prestação de serviços, na acepção do artigo 49.° CE?

    7) Constituindo, embora, um entrave à livre prestação de serviços, na acepção do artigo 49.° CE, o regime restritivo supra descrito na questão 6, na medida em que é indistintamente aplicável a cidadãos ou empresas nacionais e a cidadãos ou empresas de outros Estados-Membros e, por outro lado, se funda em razões imperativas de interesse geral (protecção dos consumidores, prevenção da delinquência, protecção da moral pública, limitação da procura dos jogos a dinheiro, financiamento de actividades de interesse geral), é, ainda assim, compatível com o ordenamento jurídico comunitário?

    8) A actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar rege-se pelos princípios da liberdade de acesso e exercício duma qualquer actividade económica e, por isso, a eventual existência de legislações de outros Estados-Membros que estabeleçam condições menos restritivas de exploração das máquinas de jogo inquina, por si só, a validade do regime jurídico português descrito na questão 6?

    9) As restrições estabelecidas na legislação portuguesa à actividade de exploração de jogos de fortuna ou azar respeitam o critério da proporcionalidade?

    10) O regime legal português de autorização sob condição jurídica (celebração com o Estado de um contrato administrativo de concessão, mediante concurso público: artigo 9.° do citado Decreto-Lei n.° 422/89) e logística (limitação da exploração e prática dos jogos de fortuna ou azar aos casinos das zonas de jogo: artigo 3.° do mesmo diploma) constitui uma exigência adequada e necessária ao objectivo prosseguido?

    11) A utilização, pela legislação portuguesa [artigos 1.° , 4.° , n.° 1, alínea g), e [162.° ] do citado Decreto-Lei n.° 422/89 e artigo 16.° , n.° 1, alínea a), do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95, de 28 de Novembro], do vocábulo fundamentalmente, a par do termo exclusivamente, para definir os jogos de fortuna ou azar e para traçar a distinção legal entre máquinas de fortuna ou azar e máquinas de diversão, não põe em causa a determinabilidade do conceito segundo os métodos próprios da interpretação jurídica?

    12) Os conceitos jurídicos indeterminados de que se socorre a definição legal portuguesa do que sejam jogos de fortuna ou azar (citados artigos 1.° e 162.° do Decreto-Lei n.° 422/89) e máquinas de diversão (citado artigo 16.° do anexo ao Decreto-Lei n.° 316/95) demandam uma interpretação, para efeitos de qualificação das diversas máquinas de jogo, que integra ainda a margem de livre apreciação reconhecida às autoridades nacionais?

    13) Ainda mesmo que se considerasse não estabelecer a referida legislação portuguesa critérios objectivos de distinção entre os temas das máquinas de fortuna ou azar e os temas das máquinas de diversão, a atribuição à Inspecção-Geral de Jogos de uma competência discricionária para a classificação dos temas dos jogos não violaria qualquer princípio ou regra de direito comunitário?»

    Quanto à admissibilidade

    35 O Governo português sustenta, por um lado, que as questões prejudiciais colocadas são inadmissíveis na medida em que não respeitam à interpretação do Tratado, mas à interpretação ou à apreciação da validade das disposições da legislação portuguesa que regula a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar, que é da exclusiva competência do órgão jurisdicional nacional.

    36 Por outro lado, considera que o litígio no processo principal, que apenas respeita às condições de exploração dos jogos de fortuna ou azar em Portugal por sociedades portuguesas, em aplicação da legislação portuguesa, não tem qualquer ligação com o direito comunitário e resulta de uma situação puramente interna.

    37 Quanto à primeira excepção, embora o Tribunal de Justiça não tenha competência, nos termos do artigo 234.° CE, para aplicar a norma comunitária a um caso determinado e, em consequência, para qualificar uma disposição de direito nacional face a essa norma, pode, no entanto, no âmbito da cooperação judiciária estabelecida por esse artigo, fornecer a um órgão jurisdicional nacional, a partir dos elementos do processo, os elementos de interpretação do direito comunitário que lhe possam ser úteis na apreciação dos efeitos dessa disposição (acórdãos de 8 de Dezembro de 1987, Gauchard, 20/87, Colect., p. 4879, n.° 5, e de 5 de Março de 2002, Reisch e o., C-515/99, C-519/99 a C-524/99 e C-526/99 a C-540/99, Colect., p. I-2157, n.° 22).

    38 Ora, no litígio no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio solicita a interpretação pelo Tribunal de Justiça das disposições do Tratado apenas com o objectivo de apreciar se estas podem ter incidência sobre a aplicação das normas nacionais pertinentes no referido litígio. Portanto, não pode ser sustentado que as questões prejudiciais suscitadas no litígio no processo principal têm um objecto diferente da interpretação das disposições do Tratado.

    39 No que respeita à segunda excepção, há que admitir que todos os elementos do litígio no processo principal estão situados no interior de um único Estado-Membro. Ora, uma regulamentação nacional como o Decreto-Lei n.° 422/89, que é indistintamente aplicável aos cidadãos portugueses e aos cidadãos dos Estados-Membros das Comunidades Europeias, regra geral, só é susceptível de ser abrangida pelas disposições relativas às liberdades fundamentais previstas pelo Tratado na medida em que seja aplicável a situações que tenham uma ligação com as trocas comerciais intracomunitárias (acórdãos de 15 de Dezembro de 1982, Oosthoek's Uitgeversmaatschappij, 286/81, Recueil, p. 4575, n.° 9; de 18 de Fevereiro de 1987, Mathot, 98/86, Colect., p. 809, n.os 8 e 9, e Reisch e o., já referido, n.° 24).

    40 Todavia, esta consideração não implica que não haja que responder às questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça no presente processo. Com efeito, em princípio, compete unicamente aos órgãos jurisdicionais nacionais apreciar, face às particularidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para estar em condições de proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submetem ao Tribunal de Justiça (acórdão de 5 de Dezembro de 2000, Guimont, C-448/98, Colect., p. I-10663, n.° 22). A recusa por este último de um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional só é possível se se verificar de modo manifesto que a interpretação solicitada do direito comunitário não tem qualquer relação com a realidade ou o objecto do litígio no processo principal (acórdãos de 6 de Junho de 2000, Angonese, C-281/98, Colect., p. I-4139, n.° 18, e Reisch e o., já referido, n.° 25).

    41 No presente caso, não é manifesto que a interpretação solicitada do direito comunitário não seja necessária para o órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, essa resposta pode ser-lhe útil no caso de o seu direito nacional impor que sejam atribuídos a um cidadão português os mesmos direitos que resultariam do direito comunitário para um nacional de outro Estado-Membro na mesma situação (acórdãos, já referidos, Guimont, n.° 23, e Reisch e o., n.° 26).

    42 Assim, há que examinar se as disposições do Tratado, cuja interpretação é solicitada, se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal na medida em que fosse aplicada a pessoas residentes noutros Estados-Membros.

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    43 Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se os jogos de fortuna ou azar constituem uma actividade económica na acepção do artigo 2.° CE.

    44 As autoras no processo principal, os governos que apresentaram observações e a Comissão estão de acordo em reconhecer aos jogos de fortuna ou azar a qualidade de actividade económica na acepção do artigo 2.° CE, ou seja, uma actividade que tem como objectivo a obtenção de um lucro que dá lugar a uma remuneração específica e enquadrada pelas liberdades económicas consagradas pelo Tratado.

    45 O Governo alemão sublinha que nem o carácter aleatório da remuneração nem a afectação dos lucros resultantes dos jogos de fortuna ou azar impedem que estes últimos constituam uma actividade económica.

    46 Como sublinha, designadamente, o Governo português, o Tribunal de Justiça já decidiu que as actividades de lotaria (sorteios) constituem actividades económicas, na acepção do Tratado, desde que consistam numa importação de mercadorias ou numa prestação de serviços remunerada (acórdão de 24 de Março de 1994, Schindler, C-275/92, Colect., p. I-1039, n.° 19). No que respeita, mais concretamente, às actividades em causa no processo principal, o Tribunal de Justiça decidiu que os jogos que consistem na utilização, mediante remuneração, de máquinas de jogo devem ser considerados jogos a dinheiro comparáveis com as lotarias (sorteios) objecto do acórdão Schindler, já referido (acórdão de 21 de Setembro de 1999, Läärä e o., C-124/97, Colect., p. I-6067, n.° 18).

    47 Há que confirmar esta apreciação e qualificar o conjunto dos jogos de fortuna ou azar como actividades económicas na acepção do artigo 2.° CE, uma vez que preenchem os dois critérios, sublinhados pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência anterior, que são o fornecimento de um serviço determinado mediante remuneração e a perspectiva de um lucro em dinheiro.

    48 Assim, há que responder à primeira questão que os jogos de fortuna ou azar constituem actividades económicas na acepção do artigo 2.° CE.

    Quanto às segunda, terceira e quinta questões

    49 Através das suas segunda, terceira e quinta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os jogos de fortuna ou azar constituem uma actividade relativa a mercadorias ou, pelo contrário, uma actividade de serviços, na acepção do Tratado, e se, nesse caso, as actividades relativas à produção, à importação e à distribuição de máquinas de jogos de fortuna ou azar, por um lado, e a actividade de exploração dessas máquinas, por outro, são ou não separáveis, a fim de determinar se o princípio da livre circulação de mercadorias definido pelos artigos 28.° CE e 29.° CE pode ser aplicado ao conjunto dessas actividades, que seriam indissociáveis.

    50 Contrariamente às autoras no processo principal, os governos que apresentaram observações e a Comissão consideram que as actividades de jogo não são abrangidas pelas disposições aplicáveis às mercadorias.

    51 Com efeito, distinguem as máquinas de jogo das actividades de jogo, como o próprio Tribunal de Justiça fez no n.° 20 do acórdão Läärä e o., já referido, sublinhando expressamente que as máquinas de jogo constituem, em si mesmas, bens susceptíveis de cair no âmbito do artigo 30.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 28.° CE). No que respeita às actividades de jogo, ou seja, à exploração de máquinas de jogo, esses governos e a Comissão, baseando-se na jurisprudência Schindler, já referida, consideram que as actividades de jogo não são relativas a mercadorias mas a serviços.

    52 Além disso, nos n.os 24 e 25 do acórdão Schindler, já referido, o Tribunal de Justiça decidiu que as actividades de lotaria (sorteios) não são actividades relativas a mercadorias abrangidas, como tais, pelo artigo 30.° do Tratado, devendo ser consideradas actividades de serviços na acepção do Tratado.

    53 No que respeita à separação entre, por um lado, as actividades relativas à produção, à importação e à distribuição de máquinas de jogo, que são abrangidas pela livre circulação de mercadorias, e, por outro lado, a actividade de exploração de máquinas de jogo, que se enquadra na livre prestação de serviços, os Governos português, belga e alemão consideram que estas diferentes actividades não são independentes umas das outras. Dado que o fabrico e a distribuição de máquinas de jogo não podem ser encarados separadamente do funcionamento dessas mesmas máquinas - uma vez que estas últimas, fabricadas para efeitos da organização de jogos de fortuna ou azar, não podem ter outra utilização -, todos os governos que apresentaram observações defendem que seja aplicado o princípio jurídico segundo o qual o acessório segue o principal.

    54 Na hipótese próxima dos jogos de lotaria (sorteios), o Tribunal de Justiça considerou que certas actividades de fabrico e de difusão de documentos publicitários e de formulários de adesão, ou mesmo de bilhetes, que são modalidades concretas de organização ou de funcionamento de um sorteio, não podem, face ao Tratado, ser consideradas independentemente da actividade de lotaria em que se inserem. Essas actividades não constituem fins em si mesmos, destinando-se apenas a permitir que os habitantes dos Estados-Membros, onde esses objectos são importados e difundidos, participem no sorteio (acórdão Schindler, já referido, n.° 22).

    55 Todavia, sem que haja necessidade, por uma analogia aproximativa, de analisar a importação de máquinas de jogo como o acessório da actividade de exploração dessas máquinas, basta assinalar, como o Tribunal de Justiça já fez nos n.os 20 a 29 do acórdão Läärä e o., já referido, que, mesmo que a actividade de exploração de máquinas de jogo estivesse ligada à operação que consiste na sua importação, a primeira dessas actividades enquadrar-se-ia nas disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços e a segunda nas disposições relativas à livre circulação de mercadorias.

    56 Assim, há que responder às segunda, terceira e quinta questões que a actividade de exploração de máquinas de jogos de fortuna ou azar, quer seja ou não dissociável das actividades relativas à produção, à importação e à distribuição dessas máquinas, deve receber a qualificação de actividade de serviços, na acepção do Tratado, e que não pode, portanto, ser abrangida pelos artigos 28.° CE e 29.° CE, relativos à livre circulação de mercadorias.

    Quanto à quarta questão

    57 Através da sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se um monopólio de exploração de jogos de fortuna ou azar se enquadra ou não no âmbito de aplicação do artigo 31.° CE.

    58 O artigo 31.° CE obriga os Estados-Membros a adaptar os monopólios nacionais de natureza comercial, de modo a assegurar a exclusão de toda e qualquer discriminação entre nacionais dos Estados-Membros.

    59 Resulta da inserção desta disposição no capítulo relativo à proibição das restrições quantitativas e da utilização dos termos «importações» e «exportações» no seu n.° 1, segundo parágrafo, e do termo «produtos» no seu n.° 3 que a referida disposição se refere às trocas comerciais e não pode aplicar-se a um monopólio de serviços (v. acórdão de 30 de Abril de 1974, Sacchi, 155/73, Colect. p. 233, n.° 10).

    60 Dado que os jogos de fortuna ou azar constituem uma actividade de serviços, na acepção do Tratado, como se concluiu no n.° 56 do presente acórdão, um eventual monopólio de exploração de jogos de fortuna ou azar está excluído do âmbito de aplicação do artigo 31.° CE.

    61 Assim, há que responder à quarta questão prejudicial que um monopólio de exploração de jogos de fortuna ou azar não se enquadra no âmbito de aplicação do artigo 31.° CE.

    Quanto às sexta, sétima, nona e décima questões

    62 Através das suas sexta, sétima, nona e décima questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, por um lado, se uma legislação nacional, como a legislação portuguesa sobre os jogos de fortuna ou azar, que limita a exploração e a prática desses jogos a certos locais e se aplica indistintamente a cidadãos nacionais e de outros Estados-Membros, constitui um entrave à livre prestação de serviços e, por outro lado, se essa legislação é susceptível de se justificar por razões imperativas de interesse geral relativas, nomeadamente, à protecção dos consumidores e às preocupações de moral pública e de prevenção da delinquência, nas quais se baseia.

    63 No que respeita à questão de saber se uma legislação nacional como a legislação portuguesa em causa no processo principal constitui um entrave à livre prestação de serviços, tanto as autoras no processo principal como os governos que apresentaram observações e a Comissão consideram que tal legislação pode constituir um entrave à livre prestação de serviços, mesmo que as restrições que comporta se apliquem sem discriminação em razão da nacionalidade, sendo, portanto, indistintamente aplicáveis aos cidadãos nacionais e aos de outros Estados-Membros.

    64 As autoras no processo principal consideram, nomeadamente, que, em Portugal, o sector do jogo representa uma realidade monopolizada por parte dos casinos, em clara violação dos princípios e das liberdades económicas consagrados pelo Tratado. O Governo finlandês considera, por seu turno, que o regime jurídico em causa no processo principal impede, pelo menos indirectamente, os operadores estabelecidos noutro Estado-Membro de proporem em Portugal os serviços em questão.

    65 É pacífico que uma legislação nacional pode cair na alçada do artigo 49.° CE, ainda que seja indistintamente aplicável, quando for susceptível de impedir ou entravar de alguma forma as actividades do prestador estabelecido noutro Estado-Membro, onde preste, legalmente, serviços análogos (acórdão Schindler, já referido, n.° 43).

    66 É o que acontece com uma legislação nacional como a legislação portuguesa, que limita o direito de explorar jogos de fortuna ou azar às salas de casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei.

    67 A eventual justificação da legislação portuguesa apoia-se em dois elementos. O primeiro resulta do facto de o regime jurídico que institui ser aplicável indistintamente aos cidadãos nacionais e aos cidadãos de outros Estados-Membros, o segundo da circunstância de esse regime se justificar por razões imperativas de interesse geral que constituem o respectivo fundamento.

    68 Como afirma o órgão jurisdicional de reenvio no seu despacho, a legislação portuguesa não estabelece qualquer discriminação entre os nacionais dos diferentes Estados-Membros. Por conseguinte, deve considerar-se que essa legislação é indistintamente aplicável.

    69 Assim, há que determinar se o artigo 49.° CE não se opõe a uma legislação como a que está em causa no processo principal, que, embora não comporte nenhuma discriminação baseada na nacionalidade, restringe a livre prestação de serviços.

    70 Todos os governos que apresentaram observações defendem que tal legislação é compatível com o disposto no artigo 49.° CE. Consideram que tal legislação deve ser considerada justificada pelas razões imperativas de interesse geral que são a protecção dos consumidores, a prevenção da fraude e da delinquência, a protecção da moral pública e o financiamento de actividades de interesse geral.

    71 As autoras no processo principal consideram, pelo contrário, que as restrições excepcionalmente admitidas, mencionadas no artigo 30.° CE, têm um alcance manifestamente derrogatório e não podem aplicar-se de forma generalizada, sem nenhum critério. Alegam igualmente que o Estado português, embora esteja obrigado a precisar os domínios e os motivos que o levam a invocar o artigo 30.° CE, não justificou suficientemente o recurso a um regime jurídico como o que adoptou. As autoras no processo principal consideram que este Estado não invoca nenhuma reserva de carácter moral ou de ordem pública susceptível de justificar tal regime jurídico.

    72 Segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, as disposições de direito português relativas à regulamentação dos jogos de fortuna ou azar recebem a qualificação jurídica de normas de interesse geral e de ordem pública. Este regime jurídico reveste carácter imperativo e tem um elevado valor simbólico, destinando-se a alcançar os objectivos de interesse geral e as finalidades sociais legítimas que são a «honestidade do jogo» e a possibilidade de «trazer alguns benefícios para o sector público».

    73 Os diferentes motivos que levaram à adopção de tal regulamentação dos jogos de fortuna ou azar devem ser considerados no seu conjunto, como indicou o Tribunal de Justiça no n.° 58 do acórdão Schindler, já referido. No caso vertente, esses motivos prendem-se com a protecção dos consumidores, destinatários do serviço, e com a protecção da ordem social. Ora, o Tribunal de Justiça já considerou tais objectivos susceptíveis de justificar restrições à livre prestação de serviços (acórdãos de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/França, 220/83, Colect., p. 3663, n.° 20; Schindler, já referido, n.° 58, e Läärä e o., já referido, n.° 33).

    74 Além disso, como sublinha a Comissão, a legislação portuguesa em causa no processo principal é, em substância, idêntica à legislação finlandesa sobre máquinas de jogo, em causa no processo Läärä e o., já referido, que o Tribunal de Justiça considerou não ser desproporcionada relativamente aos objectivos que prosseguia (acórdão Läärä e o., já referido, n.° 42). O Tribunal de Justiça considerou igualmente que uma autorização limitada dos jogos a dinheiro no quadro de direitos especiais ou exclusivos conferidos ou concedidos a determinados organismos se insere na prossecução de tais objectivos de interesse geral (acórdão de 21 de Outubro de 1999, Zenatti, C-67/98, Colect., p. I-7289, n.° 35).

    75 Consequentemente, há que responder às sexta, sétima, nona e décima questões que uma legislação nacional, como a legislação portuguesa, que limita a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar às salas de casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei, e se aplica indistintamente a cidadãos nacionais e de outros Estados-Membros, constitui um entrave à livre prestação de serviços. No entanto, os artigos 49.° CE e seguintes não se opõem a uma tal legislação nacional, tendo em conta as preocupações de política social e de prevenção da fraude nas quais se baseia.

    Quanto à oitava questão

    76 Através da sua oitava questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o simples facto de a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar ser objecto, noutros Estados-Membros, de legislações menos restritivas do que a legislação portuguesa em causa no processo principal basta para tornar esta última incompatível com o Tratado.

    77 As autoras no processo principal, que sublinham que as legislações de outros Estados-Membros são menos restritivas do que a legislação portuguesa, consideram que não existem razões socioeconómicas nem reservas de carácter moral ou de ordem pública que justifiquem que a legislação portuguesa seja mais restritiva.

    78 Pelo contrário, todos os governos que apresentaram observações sublinham que o nível de protecção que um Estado-Membro pretende garantir no seu território em matéria de jogos de fortuna ou azar faz parte do poder de apreciação reconhecido às autoridades nacionais. Assim, compete a cada Estado-Membro organizar a regulamentação jurídica adequada em matéria de jogos, nomeadamente em função de factores socioculturais próprios de cada Estado e segundo os princípios considerados mais bem adaptados à sociedade em causa. O Governo português sublinha que a especificidade do jogo reclama e fundamenta um enquadramento jurídico compatível com a representação que prevalece, em cada Estado-Membro, sobre a escala de valores societários fundamentais.

    79 É ponto assente que compete às autoridades nacionais apreciar se, no contexto da finalidade prosseguida, é necessário proibir total ou parcialmente as actividades desta natureza ou se basta restringi-las e prever, para este efeito, modalidades de controlo mais ou menos estritas (acórdãos, já referidos, Läärä e o., n.° 35, e Zenatti, n.° 33).

    80 Por conseguinte, a simples circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por outro Estado-Membro não pode ter incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições adoptadas na matéria. Estas devem ser apreciadas apenas face aos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e face ao nível de protecção que pretendem garantir (acórdãos, já referidos, Läärä e o., n.° 36, e Zenatti, n.° 34).

    81 Assim, há que responder à oitava questão prejudicial que a eventual existência, noutros Estados-Membros, de legislações que estabelecem condições de exploração e de prática dos jogos de fortuna ou azar menos restritivas do que as previstas pela legislação portuguesa não tem efeitos sobre a compatibilidade desta última com o direito comunitário.

    Quanto às décima primeira, décima segunda e décima terceira questões

    82 Através das suas décima primeira, décima segunda e décima terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se uma legislação que sujeita a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar a condições jurídicas e logísticas como a celebração com o Estado de um contrato administrativo de concessão e a limitação das zonas de jogo exclusivamente aos casinos, que utiliza conceitos jurídicos indeterminados para qualificar as diferentes modalidades de jogos e que atribui à Inspecção-Geral de Jogos uma competência discricionária para a classificação dos temas dos jogos é compatível com as disposições do Tratado, designadamente com o artigo 49.° CE.

    83 Os Governos português, belga, espanhol e finlandês são unânimes em considerar que o Tratado não se opõe às disposições do Decreto-Lei n.° 422/89 que regulamentam a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar, uma vez que preenchem os requisitos de proporcionalidade e de necessidade.

    84 As autoras no processo principal consideram, por seu turno, que as restrições à exploração dos jogos instituídas pela legislação portuguesa não respeitam o princípio da proporcionalidade devido à falta de precisão quanto aos motivos e aos objectivos destes, não sendo avançada qualquer justificação relativa à ordem pública ou à protecção social. Contestam igualmente a atribuição à Inspecção-Geral de Jogos de uma competência discricionária em matéria de classificação dos tipos de jogos, de máquinas de jogo e de temas de jogos. Tal competência, desprovida de regras objectivas e transparentes, é arbitrária e contrária ao Tratado.

    85 A Comissão, recordando que as medidas que limitam a exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar devem ser proporcionadas e adequadas a garantir a realização dos objectivos prosseguidos, sugere ao Tribunal de Justiça que declare estas questões inadmissíveis. Considera, com efeito, que, na ausência de definição a nível comunitário das diferentes modalidades de jogos e dos diferentes tipos de máquinas que permitem a sua prática, compete ao órgão jurisdicional de reenvio pronunciar-se sobre a interpretação das disposições nacionais em causa no processo principal. Alega igualmente que o órgão jurisdicional de reenvio é o único competente para determinar se a atribuição à Inspecção-Geral de Jogos, pela legislação portuguesa, de uma competência discricionária de qualificação e de classificação é susceptível de entravar a livre prestação de serviços.

    86 Como sublinha o Governo português, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que medidas nacionais que restrinjam a livre prestação de serviços, indistintamente aplicáveis e justificadas por razões imperativas de interesse geral - como acontece no caso vertente, como resulta dos n.os 68 e 72 a 75 do presente acórdão -, devem igualmente ser adequadas a garantir a realização do objectivo que prosseguem e não devem exceder o que é necessário para o atingir (acórdãos de 25 de Julho de 1991, Collectieve Antennevoorziening Gouda, C-288/89, Colect., p. I-4007, n.os 13 a 15, e Läärä e o., já referido, n.° 31).

    87 No entanto, compete exclusivamente às autoridades nacionais, no quadro do respectivo poder de apreciação, definir os objectivos que pretendem salvaguardar, determinar os meios que se lhes afiguram mais adequados para os concretizar e prever as modalidades de exploração e de prática dos jogos mais ou menos restritivas (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Schindler, n.° 61; Läärä e o., n.° 35, e Zenatti, n.° 33) e que tenham sido julgadas compatíveis com o Tratado.

    88 Assim, há que responder às décima primeira, décima segunda e décima terceira questões que, no âmbito de uma legislação compatível com o Tratado CE, a escolha das modalidades de organização e de controlo das actividades de exploração e de prática dos jogos de fortuna ou azar, como a celebração com o Estado de um contrato administrativo de concessão ou a limitação da exploração e da prática de certos jogos aos locais devidamente autorizados para o efeito, incumbe às autoridades nacionais no quadro do seu poder de apreciação.

    Decisão sobre as despesas


    Quanto às despesas

    89 As despesas efectuadas pelos Governos português, belga, alemão, espanhol, francês e finlandês, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

    Parte decisória


    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, por despacho de 25 de Maio de 2000, declara:

    1) Os jogos de fortuna ou azar constituem actividades económicas na acepção do artigo 2.° CE.

    2) A actividade de exploração de máquinas de jogos de fortuna ou azar, quer seja ou não dissociável das actividades relativas à produção, à importação e à distribuição dessas máquinas, deve receber a qualificação de actividade de serviços, na acepção do Tratado, e não pode, portanto, ser abrangida pelos artigos 28.° CE e 29.° CE, relativos à livre circulação de mercadorias.

    3) Um monopólio de exploração de jogos de fortuna ou azar não se enquadra no âmbito de aplicação do artigo 31.° CE.

    4) Uma legislação nacional, como a legislação portuguesa, que limita a exploração e a prática de jogos de fortuna ou azar às salas de casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei, e se aplica indistintamente a cidadãos nacionais e de outros Estados-Membros, constitui um entrave à livre prestação de serviços. No entanto, os artigos 49.° CE e seguintes não se opõem a uma tal legislação nacional, tendo em conta as preocupações de política social e de prevenção da fraude nas quais se baseia.

    5) A eventual existência, noutros Estados-Membros, de legislações que estabelecem condições de exploração e de prática dos jogos de fortuna ou azar menos restritivas do que as previstas pela legislação portuguesa não tem efeitos sobre a compatibilidade desta última com o direito comunitário.

    6) No âmbito de uma legislação compatível com o Tratado CE, a escolha das modalidades de organização e de controlo das actividades de exploração e de prática dos jogos de fortuna ou azar, como a celebração com o Estado de um contrato administrativo de concessão ou a limitação da exploração e da prática de certos jogos aos locais devidamente autorizados para o efeito, incumbe às autoridades nacionais no quadro do seu poder de apreciação.

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