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Documento 61999CJ0483

Acórdão do Tribunal de 4 de Junho de 2002.
Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa.
Incumprimento de Estado - Artigos 52.º do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.º CE) e 73.º-B do Tratado CE (actual artigo 56.º CE) - Direitos relativos à acção específica da República Francesa na Société nationale Elf-Aquitaine.
Processo C-483/99.

Colectânea de Jurisprudência 2002 I-04781

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2002:327

61999J0483

Acórdão do Tribunal de 4 de Junho de 2002. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa. - Incumprimento de Estado - Artigos 52.º do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.º CE) e 73.º-B do Tratado CE (actual artigo 56.º CE) - Direitos relativos à acção específica da República Francesa na Société nationale Elf-Aquitaine. - Processo C-483/99.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-04781


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


1. Livre circulação de capitais Restrições Entraves resultantes de privilégios mantidos pelos Estados-Membros na gestão de empresas privatizadas Justificação Regimes de propriedade Inexistência

(Artigos 56.° CE e 295.° CE)

2. Livre circulação de capitais Restrições Regulamentação nacional que institui a favor do Estado uma acção específica numa sociedade Poder de autorização prévia para qualquer superação de determinados limites de detenção de títulos e direito de oposição às decisões de cessão e de constituição de garantia sobre o capital da sociedade Inadmissibilidade Justificação assente em razões de segurança pública Inexistência

[Artigos 56.° CE e 58.° , n.° 1, alínea b), CE]

Sumário


1. As preocupações que podem, consoante as circunstâncias, justificar que os Estados-Membros conservem uma determinada influência nas empresas inicialmente públicas e posteriormente privatizadas, quando essas empresas actuam nos domínios dos serviços de interesse geral ou estratégicos não podem, porém, permitir aos Estados-Membros invocar os seus regimes de propriedade, tal como referidos no artigo 295.° CE , para justificar entraves às liberdades previstas no Tratado, como a livre circulação de capitais entre os Estados-Membros, resultantes de privilégios de que fazem acompanhar a sua posição de accionistas numa empresa privada. Com efeito, o referido artigo não tem por efeito eximir os regimes de propriedade existentes nos Estados-Membros às regras fundamentais do Tratado.

( cf. n.os 43,44 )

2. Não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.° CE um Estado-Membro que mantém em vigor uma regulamentação nacional que institui uma acção específica deste Estado numa sociedade petrolífera, por força da qual esta acção específica é acompanhada dos seguintes direitos:

uma autorização prévia do Estado para qualquer superação de determinados limites de detenção de títulos ou de direitos de voto;

um direito de oposição às decisões de cessão e de constituição de garantia sobre a maioria do capital de várias filiais da referida sociedade.

Com efeito, essa regulamentação constitui uma restrição aos movimentos de capitais na acepção da referida disposição e para a qual não se pode admitir uma justificação. Embora, a este respeito, o objectivo de garantir a segurança do aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise releve das razões de segurança pública que podem justificar um entrave à livre circulação de capitais, conforme o artigo 58.° , n.° 1, alínea b), CE, a regulamentação em causa vai além do necessário para se atingir esse objectivo dado que a estrutura do regime instituído carece de critérios objectivos e precisos.

( cf. n.os 42, 47, 53, disp. 1 )

Partes


No processo C-483/99,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por M. Patakia, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Francesa, representada inicialmente por K. Rispal-Bellanger e S. Seam e em seguida por G. de Bergues e S. Seam, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

apoiada por

Reino de Espanha, representado por N. Díaz Abad, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

e por

Reino Unido de Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por R. Magrill, na qualidade de agente, assistida por J. Crow, barrister, e D. Wyatt, QC, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

intervenientes,

"que tem por objecto obter a declaração de que, ao manter em vigor o artigo 2._, n.os 1 e 3, do Decreto n._ 93-1298, de 13 de Dezembro de 1993, que institui uma acção específica do Estado na Société nationale Elf-Aquitaine (JORF de 14 de Dezembro de 1993, p. 17354), segundo o qual a acção específica da República Francesa na referida sociedade comporta os direitos seguintes:

a) qualquer superação dos níveis máximos de posse directa ou indirecta de títulos que representam um décimo, um quinto ou um terço do capital ou dos direitos de voto da sociedade por uma pessoa singular ou colectiva, que actue isoladamente ou em colaboração com outras, deverá ser aprovada previamente pelo Ministro da Economia (artigo 2._, n._ 1, do referido decreto);

b) podem ser impedidas as decisões de cessão ou de constituição de garantia sobre os activos que constam de anexo ao referido decreto, isto é, a maioria do capital das quatro filiais da sociedade-mãe, que são a Elf-Aquitaine Production, a Elf-Antar France, a Elf-Gabon SA e a Elf-Congo SA (artigo 2._, n._ 3, do referido decreto),

e ao não ter previsto critérios suficientemente precisos e objectivos relativos à aprovação das operações acima referidas ou de oposição às mesmas, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 52._ do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43._ CE) a 58._ do Tratado CE (actual artigo 48._ CE) e 73._-B do Tratado CE (actual artigo 56._ CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, P. Jann (relator), N. Colneric e S. von Bahr, presidentes de secção, C. Gulmann, D. A. O. Edward, A. La Pergola, J.-P. Puissochet, R. Schintgen, V. Skouris e J. N. Cunha Rodrigues, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: H. A. Rühl, administrador principal,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes na audiência de 2 de Maio de 2001, na qual a Comissão esteve representada por M. Patakia e por F. de Sousa Fialho, na qualidade de agente, a República Francesa por S. Seam e por F. Alabrune, na qualidade de agente, o Reino de Espanha por S. Ortiz Vaamonde, na qualidade de agente, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte por R. Magrill, assistida por D. Wyatt,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 3 de Julho de 2001,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 21 de Dezembro de 1999, a Comissão das Comunidades Europeias propôs, nos termos do artigo 226._ CE, uma acção em que pede que seja declarado que, ao manter em vigor o artigo 2._, n.os 1 e 3, do Decreto n._ 93-1298, de 13 de Dezembro de 1993, que institui uma acção específica do Estado na Société nationale Elf-Aquitaine (JORF de 14 de Dezembro de 1993, p. 17354, a seguir «Decreto n._ 93-1298»), segundo o qual a acção específica da República Francesa na referida sociedade comporta os direitos seguintes:

a) qualquer superação dos níveis máximos de posse directa ou indirecta de títulos que representam um décimo, um quinto ou um terço do capital ou dos direitos de voto da sociedade por uma pessoa singular ou colectiva, que actue isoladamente ou em colaboração com outras, deverá ser aprovada previamente pelo Ministro da Economia (artigo 2._, n._ 1, do referido decreto);

b) podem ser impedidas as decisões de cessão ou de constituição de garantia sobre os activos que constam de anexo ao referido decreto, isto é, a maioria do capital das quatro filiais da sociedade-mãe, que são a Elf-Aquitaine Production, a Elf-Antar France, a Elf-Gabon SA e a Elf-Congo SA (artigo 2._, n._ 3, do referido decreto),

e ao não ter previsto critérios suficientemente precisos e objectivos relativos à aprovação das operações acima referidas ou de oposição às mesmas, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 52._ do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43._ CE) a 58._ do Tratado CE (actual artigo 48._ CE) e 73._-B do Tratado CE (actual artigo 56._ CE).

2 Por requerimentos apresentados na Secretaria do Tribunal de Justiça em 13, 22 e 27 de Junho de 2000, respectivamente, o Reino de Espanha, o Reino da Dinamarca e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte pediram para intervir no processo em apoio dos pedidos da República Francesa. Por despachos do presidente do Tribunal de Justiça de 4, 7 e 12 de Julho de 2000, respectivamente, foi admitida a intervenção destes Estados-Membros. Por carta de 6 de Abril de 2001, o Reino da Dinamarca desistiu da sua intervenção.

Enquadramento jurídico do litígio

Direito comunitário

3 O artigo 73._-B, n._ 1, do Tratado tem a seguinte redacção:

«No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.»

4 Nos termos do artigo 73._-D, n._ 1, alínea b), do Tratado CE [actual artigo 58._, n._ 1, alínea b), CE]:

«O disposto no artigo 73._-B não prejudica o direito de os Estados-Membros:

[...]

b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.»

5 O anexo I da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67._ do Tratado (JO L 178, p. 5), contém uma nomenclatura dos movimentos de capitais referidos no artigo 1._ desta directiva. Enumera, designadamente, os seguintes movimentos:

«I. Investimentos directos [...]

1) Criação e extensão de sucursais ou de empresas novas pertencentes exclusivamente ao investidor e aquisição integral de empresas existentes.

2) Participação em empresas novas ou existentes com vista a criar ou manter laços económicos duradouros.

[...]»

6 De acordo com as notas explicativas que constam da parte final do anexo I da Directiva 88/361, considera-se «investimentos directos»:

«Os investimentos de qualquer natureza efectuados por pessoas singulares, empresas comerciais, industriais ou financeiras e que servem para criar ou manter relações duradouras e directas entre o investidor e o empresário ou a empresa a que se destinam esses fundos com vista ao exercício de uma actividade económica. Esta noção deve pois ser considerada na sua acepção mais lata.

[...]

No que se refere às empresas mencionadas no ponto I 2 da nomenclatura e que têm o estatuto de sociedades por acções, existe participação com carácter de investimentos directos, quando o lote de acções que se encontra na posse de uma pessoa singular, de uma outra empresa ou de qualquer outro detentor, dá a esses accionistas, quer por força [d]o disposto na legislação nacional sobre as sociedades por acções, quer por qualquer outro modo, a possibilidade de participarem efectivamente na gestão dessa sociedade ou no seu controlo.

[...]»

7 A nomenclatura que consta do anexo I da Directiva 88/361 refere igualmente os seguintes movimentos:

«III. Operações sobre títulos normalmente transaccionados no mercado de capitais [...]

[...]

A. Transacções sobre títulos do mercado de capitais

1) Aquisição, por não-residentes, de títulos nacionais negociados na bolsa [...]

[...]

3) Aquisição, por não-residentes, de títulos nacionais não negociados na bolsa [...]

[...]»

8 O artigo 222._ do Tratado CE (actual artigo 295._ CE) dispõe:

«O presente Tratado em nada prejudica o regime da propriedade nos Estados-Membros.»

Direito nacional

9 O Decreto n._ 93-1298 dispõe nos seus artigos 1._ e 2._:

«Artigo 1._

A fim de proteger os interesses nacionais, uma participação privilegiada normal do Estado na Société nationale Elf-Aquitaine é transformada em participação privilegiada com os direitos a seguir enunciados no artigo 2._

Artigo 2._

I. Qualquer superação dos limites de detenção directa ou indirecta de títulos, independentemente da sua natureza ou forma jurídica, de um décimo, de um quinto ou de um terço do capital social ou dos direitos de voto da sociedade por uma pessoa singular ou colectiva, actuando em nome individual ou em concerto com outras, deverá ser previamente aprovada pelo ministro com a pasta da economia. Esta aprovação deverá ser renovada se o beneficiário vier a agir concertadamente, se for sujeito a uma alteração do controlo ou se a identidade de um dos membros da concertação vier a mudar. Do mesmo modo, qualquer limite ultrapassado a título individual por um membro da concertação deverá ser submetido a autorização prévia. [...]

II. No conselho de administração da sociedade terão lugar dois representantes do Estado nomeados por decreto sem direito a voto. Um dos representantes será nomeado sob proposta do ministro com a pasta da economia e o outro sob proposta do ministro com a pasta da energia.

III. Nas condições fixadas pelo Decreto n._ 93-1296 acima referido, poderão ser impedidas as decisões de cessão ou constituição de garantia sobre os activos constantes da lista em anexo ao presente decreto.»

10 A lista que consta do anexo ao Decreto n._ 93-1298 refere a maioria do capital da Elf-Aquitaine Production, da Elf-Antar France, da Elf-Gabon SA e da Elf-Congo

SA.

O processo pré-contencioso

11 Por carta de 15 de Maio de 1998, a Comissão dirigiu ao Governo francês uma notificação para cumprimento relativa a determinadas disposições da legislação francesa sobre a aquisição de acções nas empresas privatizadas, que seriam incompatíveis com o direito comunitário.

12 O Ministro da Economia, das Finanças e da Indústria respondeu, por carta de 31 de Julho de 1998, que, na sua opinião, as disposições do Tratado não se opõem a que os Estados-Membros garantam a segurança do seu aprovisionamento energético. Contudo, manifestava-se disposto a alterar certos pontos da legislação em causa, em concertação com a Comissão.

13 Considerando que os argumentos e as propostas de alteração apresentados pelo Governo francês não eram satisfatórios, a Comissão, em 18 de Janeiro de 1999, dirigiu à República Francesa um parecer fundamentado convidando-a a dar-lhe cumprimento no prazo de dois meses.

14 O Governo francês respondeu ao parecer fundamentado por carta de 11 de Fevereiro de 1999, acompanhada de um projecto de decreto de alteração do Decreto n._ 93-1298, que referia que, de futuro, a autorização do Ministro da Economia, prevista no n._ 1 do artigo 2._ desse decreto, apenas seria exigida no caso de a superação dos limites em questão «ser susceptível de pôr em causa a continuidade do aprovisionamento da França em produtos petrolíferos».

15 Numa nota dirigida à Comissão em 19 de Abril de 1999, as autoridades francesas salientaram a importância da manutenção de um centro de decisão em França, o receio de uma tomada de controlo da Société nationale Elf-Aquitaine por uma sociedade não comunitária bem como a importância das reservas de petróleo desta sociedade para a segurança do aprovisionamento da França e da economia francesa, em geral, em energia.

16 Considerando insuficientes as alterações propostas pelo Governo francês, a Comissão decidiu intentar a presente acção no Tribunal de Justiça.

Fundamentos e argumentos das partes

17 A Comissão refere, a título preliminar, que a dimensão considerável dos investimentos intracomunitários levou certos Estados-Membros a tomar medidas para controlar a situação. Essas medidas, adoptadas em grande parte no âmbito de privatizações, poderiam ser incompatíveis, em certas condições, com o direito comunitário. Foi por isso que adoptou, em 19 de Julho de 1997, a comunicação relativa a certos aspectos jurídicos dos investimentos intracomunitários (JO C 220, p. 15, a seguir «comunicação de 1997»).

18 Nesta comunicação, a Comissão interpretou, nessa matéria, as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento, nomeadamente no âmbito dos processos de autorização geral ou do direito de veto por parte das autoridades públicas.

19 O ponto 9 da comunicação de 1997 está redigido da seguinte forma:

«Conclui-se desta análise das medidas que revestem um carácter restritivo para os investimentos intracomunitários, que as medidas discriminatórias (isto é, as que se aplicam exclusivamente aos investidores nacionais de um outro Estado-Membro da União Europeia) serão consideradas incompatíveis com os artigos 73._-B e 52._ do Tratado relativos à livre circulação de capitais e ao direito de estabelecimento, salvo se forem abrangidas por uma das derrogações previstas pelo Tratado. No que se refere às medidas não discriminatórias (isto é, as que se aplicam indistintamente aos nacionais desse Estado e aos nacionais de um outro Estado-Membro da União Europeia) são aceites na medida em que se baseiem numa série de critérios objectivos, estáveis e públicos e se justifiquem por razões imperativas de interesse geral. De qualquer modo, o princípio da proporcionalidade deverá ser sempre respeitado.»

20 De acordo com a Comissão, a regulamentação que institui uma acção específica a favor da República Francesa na Société nationale Elf-Aquitaine, na qual se prevê uma autorização prévia a prestar por esse Estado-Membro relativamente a qualquer superação de determinados limites de detenção de títulos ou de direitos de voto bem como o direito de oposição às decisões de cessão e de dar em garantia a maioria do capital de quatro filiais da referida sociedade, não respeita as condições previstas na comunicação de 1997, assim violando os artigos 52._ a 58._ e 73._-B do Tratado.

21 Com efeito, essas disposições nacionais, embora indistintamente aplicáveis, criam obstáculos ao direito de estabelecimento de cidadãos de outros Estados-Membros bem como à livre circulação de capitais na Comunidade, na medida em que são susceptíveis de perturbar ou de tornar menos atraente o exercício dessas liberdades.

22 Segundo a Comissão, os processos de autorização ou de oposição só podem ser considerados compatíveis com as referidas liberdades se estiverem abrangidos pelas excepções referidas nos artigos 55._ do Tratado CE (actual artigo 45._ CE), 56._ do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 46._ CE) e 73._-D do Tratado ou se se justificarem por razões imperiosas de interesse geral e forem acompanhadas por critérios objectivos, estáveis e públicos, de forma a limitar ao mínimo o poder discricionário das autoridades nacionais.

23 Ora, as disposições em causa não preenchem nenhum destes critérios. Por conseguinte, podem, por falta de transparência, introduzir indirectamente um elemento de discriminação e incerteza jurídica. Por outro lado, o artigo 222._ do Tratado não pode ser invocado com pertinência, uma vez que não se trata, no caso presente, de uma detenção de uma participação de controlo da propriedade das sociedades por parte do Estado, mas do controlo, por parte deste, da repartição da propriedade entre privados.

24 Embora a continuidade do aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise possa ser abrangido, em princípio, pelas razões imperiosas de interesse geral, ainda há que determinar o carácter necessário e proporcionado das medidas em causa relativamente ao objectivo a atingir.

25 Com efeito, o objectivo visado poderia ser mais eficazmente atingido através de medidas sectoriais, a entrar em vigor em alturas de crise, acompanhadas de critérios técnicos bem definidos, e relativas à utilização das existências e não ao capital das sociedades em causa.

26 Por outro lado, o objectivo do aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise é já suficientemente assegurado por medidas previstas nos quadros jurídicos comunitários e internacionais. Assim, existe um quadro comunitário que institui uma política que visa garantir a segurança nos aprovisionamentos dos Estados-Membros em produtos petrolíferos, no respeito das regras do mercado interno, ou seja, determinadas directivas e decisões do Conselho. Do mesmo modo, no plano internacional, existe um mecanismo criado pela Agência Internacional da Energia, constituído pelo Acordo relativo a um Programa Internacional de Energia, ao qual a França aderiu. Este acordo contém disposições destinadas a assegurar uma repartição equitativa do petróleo em caso de escassez. Completa, assim, as directivas comunitárias, que apenas dizem respeito à constituição de reservas e à restrição da procura.

27 A República Francesa contesta o alegado incumprimento. No seu entender, as eventuais restrições à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais resultantes da regulamentação controvertida são, de qualquer modo, justificadas, por um lado, pela excepção da segurança pública prevista nos artigos 56._ e 73._-D, n._ 1, alínea b), do Tratado e, por outro, por razões imperiosas de interesse geral. Além disso, são proporcionadas e adequadas ao objectivo prosseguido.

28 Em primeiro lugar, o Governo francês alega que o aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise, garantido, por um lado, pelo direito à requisição das reservas de petróleo bruto da Société nationale Elf-Aquitaine no estrangeiro e, por outro, pelos processos de autorização que têm por fim manter em França o centro de decisão dessa sociedade, é do âmbito da segurança pública. No acórdão de 10 de Julho de 1984, Campus Oil e o. (72/83, Recueil, p. 2727, n._ 34), o Tribunal de Justiça integrou a segurança no aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise no conceito de segurança interna. Este entendimento encontra plena aplicação no caso presente.

29 Em segundo lugar, o regime objecto da presente acção não é discriminatório. A exigência da Comissão de critérios precisos, objectivos e estáveis, de forma a limitar ao mínimo o poder discricionário das autoridades nacionais, não tem suporte na jurisprudência do Tribunal de Justiça, não podendo, assim, ser aplicado.

30 Em terceiro lugar, as medidas em causa preenchem os critérios da necessidade e proporcionalidade. Os produtos petrolíferos são fundamentais para a existência de um Estado, uma vez que, como no caso da França, deles dependem não só o funcionamento da sua economia mas sobretudo o das suas instituições e serviços públicos essenciais e mesmo a própria sobrevivência da sua população. Uma interrupção do aprovisionamento em produtos petrolíferos e os riscos daí resultantes para a existência do Estado poderiam, assim, afectar gravemente a sua segurança pública, tanto mais que, nesse sector, a França depende em larga medida das importações.

31 Com efeito, em caso de crise grave, a França só poderia garantir adequadamente a segurança do seu aprovisionamento em produtos petrolíferos requisitando as reservas de petróleo bruto da Société nationale Elf-Aquitaine no estrangeiro. Contudo, isso só é possível se o centro de decisão dessa sociedade se mantiver em França.

32 O Governo francês alega que não existem medidas sectoriais nacionais que permitam garantir mais eficazmente a segurança do aprovisionamento da França em produtos petrolíferos em caso de crise grave, em especial se não se tratar da utilização das reservas. Nenhuma medida sectorial relativa ao aprovisionamento de petróleo bruto poderia ser tomada na falta de reservas petrolíferas significativas.

33 Segundo o Governo francês, a regulamentação comunitária referida pela Comissão bem como as medidas tomadas no âmbito da Agência Internacional da Energia não são suficientes para garantir a segurança do aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise grave, o que o Tribunal de Justiça reconheceu nos n.os 28 a 31 do acórdão Campus Oil e o., já referido. Assim, a Comissão não demonstrou, como lhe cabia, que as medidas em causa não respeitam o princípio da proporcionalidade. Os direitos especiais objecto da presente acção constituem, de qualquer forma, um complemento necessário às medidas internacionais.

34 No essencial, os Estados-Membros intervenientes compartilham do ponto de vista da República Francesa.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Quanto ao artigo 73._-B do Tratado

35 A título preliminar, há que lembrar que o artigo 73._-B, n._ 1, do Tratado institui a livre circulação de capitais entre os Estados-Membros e entre os Estados-Membros e países terceiros. Para o efeito, determina, no âmbito das disposições do capítulo do Tratado intitulado «Os capitais e os pagamentos», que são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

36 Embora o Tratado não defina os conceitos de movimentos de capitais e de pagamentos, está assente que a Directiva 88/361, conjuntamente com a nomenclatura que lhe está anexa, tem um valor indicativo para a definição do conceito de movimentos de capitais (v. acórdão de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C-222/97, Colect., p. I-1661, n.os 20 e 21).

37 Com efeito, os pontos I e III da nomenclatura que consta do anexo I da Directiva 88/361, bem como as notas explicativas que aí se encontram, indicam que o investimento directo sob forma de participação numa empresa por meio da detenção de acções bem como a aquisição de títulos no mercado de capitais constituem movimentos de capitais na acepção do artigo 73._-B do Tratado. De acordo com essas notas explicativas, o investimento directo, em particular, caracteriza-se pela possibilidade de participar efectivamente na gestão de uma sociedade ou no seu controlo.

38 À luz destas considerações, há que analisar se a regulamentação que institui uma acção específica a favor da República Francesa na Société nationale Elf-Aquitaine, que prevê uma autorização prévia a prestar por esse Estado-Membro relativamente a qualquer superação de determinados limites de detenção de títulos ou de direitos de voto bem como o direito de oposição às decisões de cessão e de constituição de garantia sobre a maioria do capital social de quatro filiais da referida sociedade, constitui uma restrição aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros.

39 O Governo francês, embora admitindo em princípio que as restrições resultantes da regulamentação em causa caem no âmbito de aplicação da livre circulação de capitais, alega que essa regulamentação se aplica sem distinção aos accionistas nacionais e aos accionistas de outros Estados-Membros. Considera, assim, que não se trata de um tratamento discriminatório ou particularmente restritivo no que respeita aos cidadãos de outros Estados-Membros.

40 Este argumento não colhe. Com efeito, o artigo 73._-B do Tratado proíbe de forma geral as restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros. Essa proibição vai além da eliminação de um tratamento desigual dos operadores nos mercados financeiros em razão da nacionalidade.

41 A regulamentação em causa, mesmo que não crie uma desigualdade de tratamento, pode impedir a aquisição de acções nas empresas em causa e dissuadir os investidores de outros Estados-Membros de procederem às suas aplicações no capital dessas empresas. É, por esse facto, susceptível de tornar ilusória a livre circulação de capitais (v., a esse respeito, acórdãos de 14 de Dezembro de 1995, Sanz de Lera e o., C-163/94, C-165/94 e C-250/94, Colect., p. I-4821, n._ 25, e de

1 de Junho de 1999, Konle, C-302/97, Colect., p. I-3099, n._ 44).

42 Nestas condições, é de considerar que a regulamentação em causa constitui uma restrição aos movimentos de capitais na acepção do artigo 73._-B do Tratado. Assim, há que analisar se e em que condições se pode admitir uma justificação dessa restrição.

43 Tal como resulta também da comunicação de 1997, não se podem negar as preocupações que podem, consoante as circunstâncias, justificar que os Estados-Membros conservem uma determinada influência nas empresas inicialmente públicas e posteriormente privatizadas, quando essas empresas actuam nos domínios dos serviços de interesse geral ou estratégicos (v. acórdãos desta mesma data, Comissão/Portugal, C-367/98, ainda não publicado na Colectânea, n._ 47, e Comissão/Bélgica, C-503/99, ainda não publicado na Colectânea, n._ 43).

44 Estas preocupações não podem, porém, permitir aos Estados-Membros invocar os seus regimes de propriedade, tal como referidos no artigo 222._ do Tratado, para justificar entraves às liberdades previstas no Tratado, resultantes de privilégios de que fazem acompanhar a sua posição de accionistas numa empresa privada. Com efeito, tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão Konle, já referido, n._ 38), o referido artigo não tem por efeito eximir os regimes de propriedade existentes nos Estados-Membros às regras fundamentais do Tratado.

45 A livre circulação de capitais, enquanto princípio fundamental do Tratado, só pode ser limitada por uma regulamentação nacional se esta se justificar pelas razões referidas no artigo 73._-D, n._ 1, do Tratado ou por razões imperiosas de interesse geral e que se apliquem a qualquer pessoa ou empresa que exerça uma actividade no território do Estado-Membro de acolhimento. Além disso, para ser desse modo justificada, a regulamentação nacional deve ser adequada a garantir a realização do objectivo que prossegue e não ultrapassar o necessário para o atingir, a fim de respeitar o princípio da proporcionalidade (v., neste sentido, acórdãos Sanz de Lera e o., já referido, n._ 23, e de 14 de Março de 2000, Église de scientologie, C-54/99, Colect., p. I-1335, n._ 18).

46 Quanto a um regime de autorização administrativa prévia como o que é objecto de reparo da Comissão nas suas conclusões, alínea a), relativo ao artigo 2._, n._ 1, do Decreto n._ 93-1298, o Tribunal de Justiça já declarou que o mesmo deve ser proporcionado ao objectivo prosseguido, de modo tal que o mesmo objectivo não pode ser alcançado por medidas menos restritivas, nomeadamente por um sistema de declarações a posteriori (v., neste sentido, acórdãos Sanz de Lera e o., já referido, n.os 23 a 28; Konle, já referido, n._ 44, e de 20 de Fevereiro de 2001, Analir e o., C-205/99, Colect., p. I-1271, n._ 35). Tal regime deve ser fundamentado em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente pelas empresas em causa, e qualquer pessoa lesada por uma medida restritiva desse género deve poder dispor de uma via de recurso (acórdão Analir e o., já referido, n._ 38).

47 No caso presente, não se pode negar que o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa, isto é, garantir a segurança do aprovisionamento em produtos petrolíferos em caso de crise, faz parte de um interesse público legítimo. Com efeito, o Tribunal de Justiça já admitiu, entre as razões de segurança pública que podem justificar um entrave à livre circulação de mercadorias, o objectivo de assegurar, em qualquer momento, um aprovisionamento mínimo em produtos petrolíferos (acórdão Campus Oil e o., já referido, n.os 34 e 35). O mesmo entendimento vale para os entraves à livre circulação de capitais, na medida em que a segurança pública figura igualmente entre as razões justificativas enunciadas no artigo 73._-D, n._ 1, alínea b), do Tratado.

48 Contudo, o Tribunal de Justiça considerou também que as exigências de segurança pública devem, nomeadamente, enquanto derrogações ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, ser entendidas estritamente, de modo que o seu alcance não pode ser determinado unilateralmente por cada um dos Estados-Membros, sem controlo das instituições da Comunidade. Assim, a segurança pública só pode ser invocada em caso de ameaça real e suficientemente grave que afecte um interesse fundamental da sociedade (v., entre outros, acórdão Église de scientologie, já referido, n._ 17).

49 Importa, pois, verificar se os entraves resultantes da regulamentação em causa permitem assegurar, em caso de ameaça real e grave, um aprovisionamento mínimo de produtos petrolíferos nesse Estado-Membro e se não vão além do necessário para esse fim.

50 Quanto a esse ponto, no que respeita à principal alegação da Comissão relativa ao artigo 2._, n._ 1, do Decreto n._ 93-1298, há que lembrar que o regime instituído por essa disposição prevê que qualquer superação de determinados limites de detenção directa ou indirecta de títulos, independentemente da sua natureza ou forma jurídica, deve ser previamente aprovada pelo Ministro da Economia relativamente a cada uma das pessoas que nela participam. O exercício desse direito, de acordo com os textos aplicáveis, não está sujeito a qualquer condição, com excepção de uma referência à protecção dos interesses nacionais, formulada em termos gerais no artigo 1._ do referido decreto. Em lado algum se indica aos investidores interessados quais as circunstâncias específicas e objectivas em que será concedida ou recusada uma autorização prévia. Tal indeterminação não permite aos particulares conhecerem o alcance dos seus direitos e das suas obrigações resultantes do artigo 73._-B do Tratado, pelo que é de considerar tal regime contrário ao princípio da segurança jurídica (v. acórdão Église de scientologie, já referido, n.os 21 e 22).

51 Um poder discricionário tão amplo constitui um desrespeito grave da livre circulação de capitais que pode levar à sua exclusão. Desse modo, o regime em causa vai além do necessário para se atingir o objectivo invocado pelo Governo francês, isto é, a prevenção de um prejuízo para o aprovisionamento mínimo em produtos petrolíferos em caso de ameaça efectiva.

52 As mesmas considerações se aplicam no que respeita à segunda crítica da Comissão, relativa ao artigo 2._, n._ 3, do Decreto n._ 93-1298, que prevê um direito de oposição a qualquer decisão de cessão ou de constituição de garantia sobre activos de quatro filiais da Société nationale ELF-Aquitaine no estrangeiro. Com efeito, embora não se trate aí de um regime de autorização prévia mas sim de um regime de oposição a posteriori, é ponto assente que o exercício desse direito também não está sujeito a qualquer condição que limite o amplo poder discricionário do ministro seu titular quanto ao controlo da identidade dos detentores de activos das sociedades filiais. Este regime vai manifestamente além do necessário para se atingir o objectivo invocado pelo Governo francês, isto é, a prevenção de um prejuízo para o aprovisionamento mínimo em produtos petrolíferos em caso de ameaça efectiva. De resto, as disposições legislativas francesas em causa não reflectem tal limitação.

53 Em face da inexistência de critérios objectivos e precisos na estrutura do regime instituído, a regulamentação em causa vai além do necessário para se atingir o objectivo indicado.

54 Há que declarar, pois, que, ao manter em vigor a regulamentação em causa, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 73._-B do Tratado.

Quanto aos artigos 52._ a 58._ do Tratado

55 A Comissão pede ainda a declaração de um incumprimento dos artigos 52._ a 58._ do Tratado, isto é, das regras relativas à liberdade de estabelecimento, na medida em que respeitem a empresas.

56 A esse respeito, há que dizer que, na medida em que a regulamentação em causa contenha restrições à liberdade de estabelecimento, essas restrições são consequência directa dos obstáculos à livre circulação de capitais, acima analisados, dos quais são indissociáveis. Assim, sendo declarada uma violação do artigo 73._-B do Tratado, não é necessário analisar separadamente as medidas em causa à luz das regras do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

57 Nos termos do artigo 69._, n._ 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Francesa nas despesas e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas. Nos termos do artigo 69._, n._ 4, do mesmo regulamento, o Reino de Espanha e o Reino Unido, que se constituíram intervenientes no processo, suportarão as suas próprias despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA

decide:

1) Ao manter em vigor o artigo 2._, n.os 1 e 3, do Decreto n._ 93-1298, de 13 de Dezembro de 1993, que institui uma acção específica do Estado na Société nationale Elf-Aquitaine, segundo o qual a acção específica da República Francesa na referida sociedade comporta os direitos seguintes:

a) qualquer superação dos níveis máximos de posse directa ou indirecta de títulos que representam um décimo, um quinto ou um terço do capital ou dos direitos de voto da sociedade por uma pessoa singular ou colectiva, que actue isoladamente ou em colaboração com outras, deverá ser aprovada previamente pelo Ministro da Economia;

b) podem ser impedidas as decisões de cessão ou de constituição de garantia sobre os activos que constam de anexo ao referido decreto, isto é, a maioria do capital das quatro filiais da referida sociedade, que são a Elf-Aquitaine Production, a Elf-Antar France, a Elf-Gabon SA e a Elf-Congo SA,

a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 73._-B do Tratado CE (actual artigo 56._ CE).

2) A República Francesa é condenada nas despesas.

3) O Reino de Espanha e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte suportarão as respectivas despesas.

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