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Document 62015CJ0484

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 9 de março de 2017.
Ibrica Zulfikarpašić contra Slaven Gajer.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Općinski sud u Novom Zagrebu – Stalna služba u Samoboru.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 805/2004 — Título executivo europeu para créditos não contestados — Requisitos da certificação como título executivo europeu — Conceito de “órgão jurisdicional” — Notário que emitiu um mandado de execução com base num “documento autêntico” — Instrumento autêntico.
Processo C-484/15.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2017:199

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

9 de março de 2017 ( *1 )*

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 805/2004 — Título executivo europeu para créditos não contestados — Requisitos da certificação como título executivo europeu — Conceito de ‘órgão jurisdicional’ — Notário que emitiu um mandado de execução com base num ‘documento autêntico’ — Instrumento autêntico»

No processo C‑484/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Općinski sud u Novom Zagrebu — Stalna služba u Samoboru (Tribunal Municipal de Novi Zagreb — Serviço Permanente de Samobor, Croácia), por decisão de 7 de setembro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de setembro de 2015, no processo

Ibrica Zulfikarpašić

contra

Slaven Gajer,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, A. Prechal, A. Rosas, C. Toader (relatora) e E. Jarašiūnas, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de julho de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo croata, por A. Metelko‑Zgombić, na qualidade de agente,

em representação do Governo espanhol, por V. Ester Casas, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por C. Cattabriga, S. Ječmenica e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 8 de setembro de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE) n.o 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados (JO 2004, L 143, p. 15).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Ibrica Zulfikarpašić a Slaven Gajer, a propósito de um pedido de emissão de uma certidão de título executivo europeu para um mandado de execução adotado por um notário, na Croácia, com base num «documento autêntico».

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos dos considerandos 3, 5, 7, 10, 12 e 18 do Regulamento n.o 805/2004:

«(3)

O Conselho Europeu aprovou, na sua sessão de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999, o princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais, que deveria tornar‑se a pedra angular da criação de um verdadeiro espaço judiciário.

[…]

(5)

O conceito de ‘créditos não contestados’ deverá abranger todas as situações em que o credor, estabelecida a não contestação pelo devedor quanto à natureza ou dimensão de um crédito pecuniário, tenha obtido uma decisão judicial ou título executivo contra o devedor que implique a confissão da dívida por parte deste, quer se trate de transação homologada pelo tribunal, quer de um instrumento autêntico.

[…]

(7)

O presente regulamento deverá ser aplicável às decisões judiciais, títulos ou instrumentos autênticos relativos a créditos não contestados e a decisões pronunciadas na sequência de impugnação de decisões, transações judiciais ou instrumentos autênticos, certificados como título executivo europeu.

[…]

(10)

Sempre que um tribunal de um Estado‑Membro tiver proferido uma decisão num processo sobre um crédito não contestado, na ausência do devedor, a supressão de todos os controlos no Estado‑Membro de execução está indissociavelmente ligada e subordinada à existência de garantia suficiente do respeito pelos direitos da defesa.

[…]

(12)

Deverão ser definidas normas mínimas, a respeitar no processo que conduz à decisão, a fim de garantir que o devedor seja informado acerca da ação judicial contra ele, dos requisitos da sua participação ativa no processo, de forma a fazer valer os seus direitos, e das consequências da sua não participação, em devido tempo e de forma a permitir‑lhe preparar a sua defesa.

[…]

(18)

A confiança mútua na administração da justiça nos Estados‑Membros autoriza que o tribunal de um Estado‑Membro considere que todos os requisitos de certificação como título executivo europeu estão preenchidos, a fim de permitir a execução da decisão em todos os outros Estados‑Membros sem revisão jurisdicional da correta aplicação das normas processuais mínimas no Estado‑Membro onde a decisão deve ser executada.»

4

O artigo 1.o deste regulamento prevê:

«O presente regulamento tem por objetivo criar o título executivo europeu para créditos não contestados, a fim de assegurar, mediante a criação de normas mínimas, a livre circulação de decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos em todos os Estados‑Membros, sem necessidade de efetuar quaisquer procedimentos intermédios no Estado‑Membro de execução previamente ao reconhecimento e à execução.»

5

O artigo 3.o, n.o 1, do referido regulamento tem a seguinte redação:

«O presente regulamento é aplicável às decisões, transações judiciais e instrumentos autênticos sobre créditos não contestados.

Um crédito é considerado ‘não contestado’ se o devedor:

a)

Tiver admitido expressamente a dívida, por meio de confissão ou de transação homologada por um tribunal, ou celebrada perante um tribunal no decurso de um processo; ou

b)

Nunca tiver deduzido oposição, de acordo com os requisitos processuais relevantes, ao abrigo da legislação do Estado‑Membro de origem; ou

c)

Não tiver comparecido nem feito representar na audiência relativa a esse crédito, após lhe ter inicialmente deduzido oposição durante a ação judicial, desde que esse comportamento implique uma admissão tácita do crédito ou dos factos alegados pelo credor, em conformidade com a legislação do Estado‑Membro de origem; ou

d)

Tiver expressamente reconhecido a dívida por meio de instrumento autêntico.»

6

O artigo 4.o do mesmo regulamento prevê:

«Para efeitos do presente regulamento, aplicam‑se as seguintes definições:

1.   ‘Decisão’: qualquer decisão, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação, pelo secretário do tribunal, do montante das custas ou despesas do processo.

2.   ‘Crédito’: a reclamação do pagamento de um montante específico de dinheiro que se tenha tornado exigível ou para o qual a data em que é exigível seja indicada na decisão, transação judicial ou Instrumento autêntico.

3.   ‘Instrumento autêntico’:

a)

Um documento que tenha sido formalmente redigido ou registado como autêntico e cuja autenticidade:

i)

esteja associada à assinatura e ao conteúdo do instrumento; e

ii)

tenha sido estabelecido por uma autoridade pública ou outra autoridade competente para o efeito no Estado‑Membro em que tiver origem;

ou

b)

Uma convenção em matéria de obrigações alimentares celebrada perante autoridades administrativas ou por elas autenticada.

[…]

6.   ‘Tribunal de origem’: o órgão jurisdicional ou tribunal perante o qual o processo judicial foi invocado, no momento em que as condições enunciadas nas alíneas a), b) e c) do n.o 1 do artigo 3.o se encontravam preenchidas.

7.   Na Suécia, nos processos sumários de injunção de pagamento (betalningsföreläggande), a expressão ‘tribunal’ inclui o ‘Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada’ (kronofogdemyndighet).»

7

O artigo 5.o do Regulamento n.o 805/2004, sob a epígrafe «Supressão do exequatur», prevê:

«Uma decisão que tenha sido certificada como título executivo europeu no Estado‑Membro de origem será reconhecida e executada nos outros Estados‑Membros sem necessidade de declaração da executoriedade ou contestação do seu reconhecimento.»

8

O capítulo III do referido regulamento, que inclui os artigos 12.° a 19.°, define as normas mínimas aplicáveis aos processos relativos a créditos não contestados, nomeadamente as normas mínimas relativas à citação ou à notificação da petição inicial ou de ato equivalente e à informação ao devedor.

9

O artigo 12.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação das normas mínimas», prevê:

«1.   Uma decisão relativa a um crédito não contestado, na aceção das alíneas b) ou c) do n.o 1 do artigo 3.o, só poderá ser certificada como título executivo europeu se o processo judicial no Estado‑Membro de origem obedecer aos requisitos processuais constantes do presente capítulo.

2.   Aplicar‑se‑ão os mesmos requisitos à emissão de uma certidão de título executivo europeu ou de uma certidão de substituição, na aceção do n.o 3 do artigo 6.o, relativamente a uma decisão proferida na sequência da impugnação de outra decisão quando, no momento em que é proferida aquela decisão, estejam preenchidas as condições previstas nas alíneas b) ou c) do n.o 1 do artigo 3.o»

10

O artigo 16.o do Regulamento n.o 805/2004, sob a epígrafe «Informação adequada do devedor sobre o crédito», dispõe:

«A fim de assegurar que o devedor foi devidamente informado sobre o crédito, o documento que der início à instância, ou ato equivalente, deve incluir:

a)

Os nomes e endereços das partes;

b)

O montante do crédito;

c)

Se forem exigidos juros sobre o crédito, a taxa de juro e o período em relação ao qual são exigidos, salvo se ao capital forem aditados automaticamente juros legais por força da legislação do Estado‑Membro de origem;

d)

Uma declaração sobre a causa de pedir.»

11

O artigo 25.o, n.o 1, do referido regulamento, relativo à certificação dos instrumentos autênticos, enuncia:

«Um instrumento autêntico relativo a um crédito, na aceção do ponto 2 do artigo 4.o, que seja executório num Estado‑Membro, será, mediante pedido apresentado à autoridade designada pelo Estado‑Membro de origem, certificado como título executivo europeu, utilizando o formulário‑tipo constante do [A]nexo III.»

12

O artigo 30.o, n.o 1, alínea c), do mesmo regulamento, estabelece que os Estados‑Membros têm a obrigação de notificar à Comissão Europeia «[a]s listas das autoridades referidas no artigo 25.o, bem como quaisquer alterações posteriores destas informações».

13

De acordo com o disposto no artigo 30.o, n.o 1, ponto c), a República da Croácia notificou a seguinte lista:

«Os órgãos jurisdicionais competentes, as autoridades administrativas, os notários e as pessoas singulares ou coletivas de direito público autorizados a emitir certidões ou títulos executivos sobre créditos não contestados ao abrigo da legislação nacional aplicável.»

Direito croata

14

O artigo 31.o da Ovršni zakon (Lei sobre a Execução Forçada, Narodne novine, br. 112/12, 25/13 e 93/14) prevê:

«1)   Para efeitos da presente lei, consideram‑se documentos autênticos as faturas, […] os extratos de livros de contabilidade, os documentos particulares autenticados e quaisquer outros documentos que possam ser considerados como constituindo um documento oficial ao abrigo de regulamentação específica. O cálculo de juros é igualmente considerado uma fatura.

2)   Um documento autêntico é executório se nele figurarem a identidade do credor e do devedor, bem como o objeto, a natureza, o âmbito e a data de exigibilidade da obrigação pecuniária.

3)   Além das informações previstas no n.o 2 do presente artigo, uma fatura entregue a uma pessoa singular que não exerça nenhuma atividade registada deve indicar ao devedor que, em caso de incumprimento da obrigação pecuniária devida, o credor poderá solicitar a execução forçada com base num documento autêntico.

[…]»

15

O artigo 278.o desta lei está redigido nos seguintes termos:

«Os notários decidem sobre os pedidos de execução baseados em documentos autênticos em conformidade com o disposto na presente lei».

16

O artigo 281.o, n.o 1, da referida lei enuncia as condições em que os notários podem adotar mandados de execução com base num «documento autêntico», ao passo que os n.os 2 a 8 deste artigo tratam do procedimento seguido quando o notário não adote tal mandado.

17

O artigo 282.o da mesma lei prevê a possibilidade de deduzir oposição contra o mandado de execução do notário e define o procedimento de exame da oposição.

18

O artigo 283.o, n.o 1, da Lei sobre a Execução Forçada dispõe que o notário apõe, a pedido do requerente, a fórmula executória numa cópia do mandado de execução que emita se, no prazo de oito dias sobre o termo do prazo para dedução da oposição, a oposição não tiver sido deduzida.

19

O artigo 356.o desta lei enuncia:

«As disposições do presente título regem o procedimento para a emissão da certidão de título executivo europeu para créditos não contestados em conformidade com o Regulamento [n.o 805/2004] e instituem um procedimento de execução com base no título executivo europeu.»

20

O artigo 357.o da referida lei prevê:

«Na República da Croácia, são competentes para a emissão:

[…]

de certidões que conferem força executória a outros documentos oficiais executórios na República da Croácia, em conformidade com o disposto no artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento [n.o 805/2004],

[…]

os órgãos jurisdicionais, as autoridades administrativas, os notários e as pessoas singulares ou coletivas de direito público autorizados a emitir certidões executivas de um título executivo europeu emitido por um órgão jurisdicional nacional sobre um crédito não contestado».

21

Nos termos do artigo 358.o da mesma lei:

«1)   As certidões referidas nos artigos 9.°, n.o 1, 24.°, n.o 1, 25.°, n.o 1, e 6.°, n.o 3, do regulamento, são emitidas sem audição prévia do devedor.

2)   A autoridade ou a pessoa que emite a certidão deve entregar oficiosamente uma certidão autêntica ao devedor.

[[…]]

4)   Caso considere que não estão cumpridos os requisitos para a emissão das certidões referidas no n.o 1 do presente artigo, o notário remeterá o pedido de emissão de certidão, acompanhado de uma cópia dos correspondentes atos ou documentos, ao tribunal municipal territorialmente competente, a fim de que decida sobre o pedido. O notário deve explicar as razões por que considera que os requisitos necessários ao deferimento do pedido não estão cumpridos.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

22

I. Zulfikarpašić, advogado de profissão, celebrou um contrato de assistência e de representação com S. Gajer, seu cliente, que não pagou a fatura emitida.

23

I. Zulfikarpašić apresentou a um notário um pedido de execução forçada contra S. Gajer, com base nessa fatura, qualificada de «documento autêntico» ao abrigo da Lei sobre a Execução Forçada. Em 12 de fevereiro de 2014, o notário emitiu um mandado de execução com base no referido documento, que se tornou definitivo por falta de oposição do devedor.

24

Em 13 de novembro de 2014, I. Zulfikarpašić apresentou a um notário um pedido de certificação desse mandado de execução como título executivo europeu.

25

Contudo, o referido notário considerou que não estavam cumpridos os requisitos para a emissão da certidão solicitada. O notário salientou que, de acordo com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 805/2004, o crédito deve ser considerado não contestado. Ora, apenas devem ser considerados não contestados, por um lado, por força do mencionado artigo 3.o, n.o 1, alíneas a) a c), os créditos que tiverem sido objeto de um processo judicial e, por outro, por força do mesmo artigo 3.o, n.o 1, alínea d), os créditos expressamente reconhecidos por meio de instrumento autêntico, conceito que, na aceção das disposições deste regulamento, deve cobrir um ato notarial como o mandado de execução emitido com base num «documento autêntico». Todavia, esse mandado não cumpre o requisito do reconhecimento expresso do crédito pelo devedor.

26

O referido notário também assinalou que, embora no artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 805/2004 esteja especificamente previsto que, na Suécia, nos processos sumários de injunção de pagamento, a expressão «tribunal» inclui o Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada, nem esta, nem qualquer outra disposição deste regulamento, nem quaisquer disposições de outros instrumentos do direito da União relativos aos processos executivos equiparam o notário, na Croácia, a um «órgão jurisdicional».

27

Assim, o referido notário remeteu, ao abrigo do artigo 358.o, n.o 4, da Lei sobre a Execução Forçada, o processo principal ao Općinski sud u Novom Zagrebu, Stalna služba u Samoboru (Tribunal Municipal de Novi Zagreb — Serviço Permanente de Samobor, Croácia) para decisão sobre o pedido de certidão apresentado por I. Zulfikarpašić.

28

Nestas condições, o Općinski sud u Novom Zagrebu, Stalna služba u Samoboru (Tribunal Municipal de Novi Zagreb — Serviço Permanente de Samobor, Croácia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As disposições da Lei sobre a Execução Forçada relativas ao título executivo europeu são conformes ao Regulamento [n.o 805/2004], isto é, na República da Croácia, relativamente à emissão de um mandado de execução com base num instrumento autêntico no âmbito de um processo de execução, o termo ‘órgão jurisdicional’ inclui os notários [podendo estes] emitir certidões de título executivo europeu para mandados de execução definitivos e executórios com base em instrumentos autênticos, quando os referidos mandados não tiverem sido contestados e, em caso de resposta negativa, os órgãos jurisdicionais podem emitir certidões de título executivo europeu relativas a mandados de execução baseados num instrumento autêntico e elaborados por um notário, quando o conteúdo desses mandados respeita a créditos não contestados e, nesse caso, que formulário deve ser utilizado?»

Quanto à questão prejudicial

29

A questão submetida divide‑se em três partes.

Quanto à primeira parte da questão

30

Com a primeira parte da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.o 805/2004 deve ser interpretado no sentido de que, na Croácia, os notários, quando atuam no âmbito das competências que lhes são conferidas pelo direito nacional nos processos executivos fundados em «documentos autênticos», integram o conceito de «órgão jurisdicional» na aceção deste regulamento.

31

Os Governos croata e espanhol consideram que convém responder a esta questão pela afirmativa. Os termos «órgão jurisdicional» e «processo judicial» previstos neste regulamento cobrem não só os órgãos jurisdicionais stricto sensu mas também, de forma geral, qualquer autoridade que exerça funções essencialmente jurisdicionais, como é aqui o caso. Por sua vez, a Comissão considera que se deve dar uma resposta negativa à questão submetida.

32

A título preliminar, cumpre recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União, que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance, devem normalmente ser interpretados em toda a União de modo autónomo e uniforme, tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa (v. acórdão de 13 de outubro de 2016, Mikołajczyk, C‑294/15, EU:C:2016:772, n.o 44 e jurisprudência referida).

33

Quanto à sistemática do Regulamento n.o 805/2004, há que observar que, embora, por várias vezes, se refira aos conceitos de «órgão jurisdicional» e «processo judicial», este regulamento não especifica os respetivos elementos constitutivos. Assim, o artigo 4.o, ponto 6, do regulamento define o conceito de «tribunal de origem» como «órgão jurisdicional ou tribunal perante o qual o processo judicial foi invocado, no momento em que as condições enunciadas nas alíneas a), b) e c) do n.o 1 do artigo 3.o se encontravam preenchidas». O artigo 4.o, ponto 1, do referido regulamento define o conceito de «decisão» como «qualquer decisão[…] proferida por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro».

34

O artigo 4.o, ponto 7, deste mesmo regulamento prevê que, na Suécia, nos processos sumários de injunção de pagamento (betalningsföreläggande), a expressão «tribunal» inclui o «Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada» (kronofogdemyndighet). Este artigo diz especificamente respeito à autoridade nele mencionada, pelo que não abrange os notários na Croácia.

35

Cabe ainda notar que, diferentemente, por exemplo, do Regulamento (UE) n.o 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu (JO 2012, L 201, p. 107), cujo artigo 3.o, n.o 2, precisa que a noção «órgão jurisdicional», na aceção do referido regulamento, engloba não só os tribunais mas também outras autoridades competentes nesse domínio que exerçam funções jurisdicionais e que cumpram certos requisitos enumerados nesta disposição, o Regulamento n.o 805/2004 não inclui nenhuma disposição geral com o mesmo efeito.

36

Esta observação encontra apoio na jurisprudência relativa ao Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1), segundo a qual o artigo 3.o do mesmo regulamento, que prevê que o termo «tribunal» compreende o Serviço Público Sueco de Cobrança Forçada e os notários na Hungria, não compreende os notários na Croácia (v., neste sentido, acórdão de hoje, Pula Parking, C‑551/15, n.o 46).

37

Assim, como foi recordado no n.o 32 do presente acórdão, importa analisar os conceitos de «órgão jurisdicional» e «processo judicial» à luz dos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 805/2004, cuja interpretação é solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

38

A este respeito, observe‑se que decorre da letra do artigo 1.o deste regulamento que, relativamente aos créditos não contestados, este último visa assegurar a livre circulação de decisões em todos os Estados‑Membros, sem necessidade de efetuar quaisquer procedimentos intermédios no Estado‑Membro de execução previamente ao reconhecimento e à execução.

39

Segundo o considerando 10 do regulamento em apreço, este objetivo não pode, todavia, ser alcançado à custa de um enfraquecimento, seja qual for a forma que assuma, dos direitos de defesa (v., por analogia, acórdão de 14 de dezembro de 2006, ASML, C‑283/05, EU:C:2006:787, n.o 24 e jurisprudência referida).

40

Por outro lado, decorre do considerando 3 do Regulamento n.o 805/2004 que o princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais constitui a pedra angular da criação de um verdadeiro espaço judiciário europeu. Este princípio assenta nomeadamente na confiança mútua na administração da justiça nos Estados‑Membros a que o considerando 18 deste regulamento faz referência.

41

Com efeito, o princípio da confiança mútua entre Estados‑Membros tem, no direito da União, uma importância fundamental, dado que permite a criação e a manutenção de um espaço sem fronteiras internas, baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre Estados‑Membros (acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 78).

42

Este princípio traduz‑se, de acordo com o artigo 5.o do Regulamento n.o 805/2004, no reconhecimento e na execução, nos outros Estados‑Membros, das decisões que tenham sido certificadas como título executivo europeu no Estado‑Membro de origem.

43

Num contexto de livre circulação das decisões como o recordado nos n.os 38 e 39 do presente acórdão, a preservação do princípio da confiança requer uma apreciação estrita dos elementos definidores do conceito de «órgão jurisdicional», na aceção deste regulamento, para que as autoridades nacionais possam identificar as decisões dos órgãos jurisdicionais de outros Estados‑Membros. Com efeito, o respeito pelo princípio da confiança mútua na administração da justiça nos Estados‑Membros da União, subjacente à aplicação deste regulamento, pressupõe, nomeadamente, que as decisões cuja execução é requerida num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de origem tenham sido proferidas num processo judicial que garanta independência e imparcialidade, bem como o respeito pelo princípio do contraditório.

44

Neste caso, importa recordar que, de acordo com as disposições da Lei sobre a Execução Forçada, na Croácia, os notários são competentes para decidir por mandado sobre os pedidos de abertura de processos executivos baseados em documentos autênticos. Depois de o mandado lhe ser notificado, o requerido pode deduzir oposição. O notário a quem seja apresentada uma oposição admissível, fundamentada e tempestiva contra o mandado que emitiu transmite o processo, para efeitos do processo de oposição, ao órgão jurisdicional competente, que decidirá sobre a oposição.

45

Resulta dessas disposições que o mandado de execução baseado num «documento autêntico», emitido pelo notário, só é notificado ao devedor após a sua adoção, sem que o pedido apresentado ao notário tenha sido comunicado a esse devedor.

46

Embora o devedor tenha a possibilidade de deduzir oposição contra o mandado de execução emitido pelo notário e se afigure que o notário exerce as atribuições que lhe são conferidas no âmbito do processo executivo baseado num «documento autêntico» sob a fiscalização do juiz, a quem o notário tem de remeter eventuais contestações, também é certo que o exame, pelo notário, na Croácia, do pedido de emissão de um mandado de execução fundado em tal documento não é contraditório.

47

Ora, segundo o artigo 12.o do Regulamento n.o 805/2004, uma decisão relativa a um crédito não contestado, na aceção das alíneas b) e c) do n.o 1 do artigo 3.o deste regulamento, só poderá ser certificada como título executivo europeu se o processo judicial no Estado‑Membro de origem obedecer às normas mínimas constantes do capítulo III do mesmo.

48

O artigo 16.o do referido regulamento, lido à luz do seu considerando 12, prevê que a informação prestada ao devedor seja «adequada», de forma a permitir‑lhe preparar a sua defesa e garantir assim a natureza contraditória do processo de emissão do título executivo suscetível de dar lugar à emissão de uma certidão. Estas normas mínimas refletem a vontade de o legislador da União zelar por que os processos que levam à adoção das decisões relativas a um crédito não contestado ofereçam as garantias suficientes do respeito dos direitos de defesa (v., neste sentido, acórdão de 16 de junho de 2016, Pebros Servizi, C‑511/14, EU:C:2016:448, n.o 44).

49

Ora, um processo nacional de adoção de um mandado de execução sem notificação ou citação do documento que dá início ao processo ou de ato equivalente e sem que, nesse ato, o devedor seja informado desse crédito, que leva a que o devedor só tome conhecimento do crédito reclamado no momento em que o mandado lhe é notificado, não pode ser qualificado de contraditório.

50

Atendendo às considerações expostas, há que responder à primeira parte da questão que o Regulamento n.o 805/2004 deve ser interpretado no sentido de que, na Croácia, os notários, quando atuam no âmbito das competências que lhes são conferidas pelo direito nacional nos processos executivos fundados em «documentos autênticos», não integram o conceito de «órgão jurisdicional» na aceção deste regulamento.

Quanto à segunda e terceira partes da questão

51

Com a segunda e terceira parte da sua questão, que importa analisar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, por um lado, se o Regulamento n.o 805/2004 deve ser interpretado no sentido de que um mandado de execução adotado por um notário, na Croácia, com base num «documento autêntico», e que não foi objeto de oposição pode ser certificado como título executivo europeu e, por outro, se este regulamento deve ser interpretado no sentido de que a competência para a emissão dessa certidão pertence aos notários ou no sentido de que essa competência pertence aos órgãos jurisdicionais nacionais.

52

O artigo 3.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Títulos executivos a certificar como título executivo europeu», define os requisitos a que deve obedecer um crédito para ser considerado não contestado, distinguindo as hipóteses previstas no seu n.o 1, alíneas a) a c), que trata dos créditos cuja existência tenha sido declarada num processo judicial, das hipóteses previstas neste n.o 1, alínea d), relativo aos créditos expressamente reconhecidos pelo devedor num instrumento autêntico.

53

Embora resulte da resposta dada à primeira parte da questão que o mandado de execução adotado por um notário, na Croácia, com base num «documento autêntico» não pode ser qualificado de decisão judicial, por essa autoridade nacional não assumir a qualidade de órgão jurisdicional, pelo que não se pode considerar que esse mandado é emitido no âmbito de um processo judicial, resta analisar se tal mandado pode ser qualificado de instrumento autêntico relativo a um crédito não contestado na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea d), do Regulamento n.o 805/2004.

54

A este respeito, o artigo 4.o, n.o 3, deste regulamento define o instrumento autêntico quer como um documento que tenha sido formalmente redigido ou registado como autêntico e cuja autenticidade, associada à assinatura e ao conteúdo, tenha sido estabelecida por uma autoridade competente para o efeito, quer como uma convenção em matéria de obrigações alimentares celebrada perante autoridades administrativas ou por elas autenticada.

55

Há que reconhecer que, apesar de, na ordem jurídica croata, os notários serem competentes para emitir instrumentos autênticos, falta a natureza não contestada do crédito cuja existência é declarada num mandado de execução adotado com base num «documento autêntico».

56

Com efeito, em conformidade com o disposto no considerando 5 do Regulamento n.o 805/2004, o artigo 3.o, n.o 1, alínea d), do mesmo prevê que um instrumento autêntico só pode ser certificado como título executivo europeu se o devedor tiver expressamente reconhecido a dívida nesse instrumento.

57

Ora, no processo principal, o notário emitiu um mandado de execução com base num «documento autêntico», a saber, a fatura emitida por I. Zulfikarpašić ao abrigo de um contrato de assistência e de representação, que foi emitida unilateralmente pelo advogado. Não resulta do conteúdo desse mandado que o devedor tenha expressamente reconhecido a dívida.

58

Por outro lado, a falta de oposição por parte do devedor não pode ser equiparada a um reconhecimento expresso da dívida, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea d), do Regulamento n.o 805/2004, uma vez que o reconhecimento tem de constar do instrumento autêntico objeto da certidão.

59

Atendendo às considerações expostas, há que responder à segunda e terceira partes da questão que o Regulamento n.o 805/2004 deve ser interpretado no sentido de que um mandado de execução adotado por um notário, na Croácia, com base num «documento autêntico», e que não foi objeto de oposição não pode ser certificado como título executivo europeu, visto que não incide sobre um crédito não contestado na aceção do artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento.

Quanto às despesas

60

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

1)

O Regulamento (CE) n.o 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados, deve ser interpretado no sentido de que, na Croácia, os notários, quando atuam no âmbito das competências que lhes são conferidas pelo direito nacional nos processos executivos fundados em «documentos autênticos», não integram o conceito de «órgão jurisdicional» na aceção deste regulamento.

 

2)

O Regulamento n.o 805/2004 deve ser interpretado no sentido de que um mandado de execução adotado por um notário, na Croácia, com base num «documento autêntico», e que não foi objeto de oposição não pode ser certificado como título executivo europeu, visto que não incide sobre um crédito não contestado na aceção do artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: croata.

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