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Document 61998CC0038

Conclusões do advogado-geral Alber apresentadas em 22 de Junho de 1999.
Régie nationale des usines Renault SA contra Maxicar SpA e Orazio Formento.
Pedido de decisão prejudicial: Corte d'appello di Torino - Itália.
Convenção de Bruxelas - Execução de decisões - Direitos de propriedade intelectual relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis - Ordem pública.
Processo C-38/98.

European Court Reports 2000 I-02973

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1999:325

61998C0038

Conclusões do advogado-geral Alber apresentadas em 22 de Junho de 1999. - Régie nationale des usines Renault SA contra Maxicar SpA e Orazio Formento. - Pedido de decisão prejudicial: Corte d'appello di Torino - Itália. - Convenção de Bruxelas - Execução de decisões - Direitos de propriedade intelectual relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis - Ordem pública. - Processo C-38/98.

Colectânea da Jurisprudência 2000 página I-02973


Conclusões do Advogado-Geral


A - Introdução

1 No presente processo, a Corte d'appello di Torino (Itália), submeteu ao Tribunal de Justiça um certo número de questões referentes à interpretação da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (1) - dita «Convenção de Bruxelas» - (a seguir «convenção»), bem como dos artigos 30._ e 36._ do Tratado CE (que passaram, após alteração, a artigos 28._ CE e 30._ CE) e do artigo 86._ do Tratado CE (actual artigo 82._ CE). O órgão jurisdicional de reenvio pergunta se um acórdão proferido em França, e que, em seu entender, contraria os princípios da livre concorrência e da livre circulação de mercadorias, deve ser executado na Itália em virtude da convenção.

2 A propósito do processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio menciona simplesmente que a sociedade francesa Régie nationale des usines Renault (actualmente Renault SA, a seguir «recorrente») accionou a sociedade Maxicar e O. Formento (a seguir «recorridos») para fazer com que um acórdão proferido pela cour d'appel de Dijon em 1990 seja declarado executório em conformidade com o artigo 31._ da convenção, por aposição da fórmula executória. Este último acórdão condenou O. Formento no pagamento de uma multa de 20 000 FRF por delito de contrafacção ao mesmo tempo que condenou solidariamente os recorridos e uma outra empresa no pagamento de 100 000 FRF, a título de reparação do prejuízo causado. Segundo as indicações da Comissão, designadamente, os recorridos são condenados por terem fabricado na Itália e importado para a França peças sobresselentes não originais para automóveis da marca Renault, sem autorização da recorrente, que é titular dos direitos de propriedade industrial correspondentes.

3 A Corte d'appello di Torino negou provimento - em 25 de Fevereiro de 1997, segundo a Comissão - ao pedido de exequatur deste acórdão, que tinha sido confirmado na França pela cour de cassation; a recorrente interpôs - em 28 de Março de 1997, segundo os recorridos - recurso desta decisão para o mesmo órgão jurisdicional. Foi no âmbito deste último processo que a Corte d'appello de Torino submeteu ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial.

4 Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os recorridos contestaram o recurso interposto da decisão inicial, alegando que a decisão francesa não podia ser declarada executória na Itália, por ser contrária à ordem pública em matéria de direito económico e incompatível com uma decisão análoga proferida entre as mesmas partes na Itália. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os recorridos alegaram a este propósito que a cour d'appel de Dijon os tinha condenado pelo facto de a estética industrial no sector da construção automóvel requerer uma protecção particularmente rigorosa, pois constitui um elemento determinante do sucesso de um modelo junto da clientela, ao mesmo tempo que contribui para o prestígio da empresa. O órgão jurisdicional francês salientou ainda que todo e qualquer elemento da carroçaria exprime uma parte do pensamento do criador do conjunto desta e que a protecção legal devida ao conjunto se aplica também a cada um dos seus elementos essenciais, sem o que esta protecção seria ilusória. A licitude desta actividade na Itália não pode ser invocada em benefício dos fabricantes independentes de peças sobresselentes. Segundo os recorridos, os considerandos com base nos quais o órgão jurisdicional francês atribui pertinência jurídica à estética automóvel e transfere a protecção do conjunto para os seus componentes não são aceitáveis e infringem a ordem pública económica em Itália, na acepção do artigo 27._, ponto 1, da convenção. O reconhecimento do acórdão da cour d'appel de Dijon significaria - sempre de acordo com os recorridos - que a decisão se tornaria executória no estrangeiro, o que multiplicaria o impacto da violação do princípio da livre circulação de mercadorias.

5 Por outro lado, a decisão francesa está, segundo os recorridos, em contradição manifesta com uma decisão do tribunale di Milano, proferida em Maio de 1995 entre a sociedade Maxicar e a Renault, que tinha por objecto a licitude da reprodução de painéis de carroçaria por fabricantes independentes de peças sobresselentes. Esta decisão obteve força de caso julgado e foi proferida entre as mesmas partes, na acepção do artigo 27._, ponto 3, da convenção.

6 Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a jurisprudência do Tribunal tende, aparentemente, a fixar à exploração da propriedade intelectual industrial limites precisos em relação à livre circulação de mercadorias e à livre concorrência. Esta jurisprudência suscita ainda certas dúvidas quanto ao verdadeiro alcance destes princípios, que devem, além disso, ser considerados como princípios de ordem pública na acepção da convenção. Uma vez que o órgão jurisdicional nacional considera ter direito de reenvio para o Tribunal de Justiça ao abrigo do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção (a seguir «protocolo»), formulou as questões prejudiciais seguintes:

«1) Os artigos 30._ a 36._ do Tratado CEE devem ou não ser interpretados no sentido de que impedem que o titular de um direito de propriedade industrial ou intelectual num Estado-Membro possa invocar o correspondente direito absoluto para proibir a terceiros o fabrico e a venda, assim como a exportação para um outro Estado-Membro, de peças destacadas que integram no seu conjunto a carroçaria de um automóvel já existente no mercado, isto é, de peças destacadas destinadas à venda como peças de substituição do mesmo automóvel?

2) O artigo 86._ do Tratado CEE é ou não aplicável para proibir o abuso da posição dominante que cada empresa do ramo automóvel detém no mercado das substituições de automóveis de seu fabrico, que consiste em prosseguir, mediante o exercício dos direitos de propriedade industrial e intelectual e da correspondente repressão judicial, o objectivo da eliminação total da concorrência das empresas independentes de comércio de peças de substituição?

3) Em consequência, deve considerar-se que está em conflito com a ordem pública, na acepção do artigo 27._ da Convenção de Bruxelas, uma decisão proferida por um tribunal de um Estado-Membro que reconheça um direito de propriedade industrial ou intelectual sobre as referidas partes destacadas que integram no seu conjunto a carroçaria de um automóvel e confira protecção ao titular desse pretenso direito de exclusividade, proibindo a terceiros, operadores económicos num outro Estado-Membro, o fabrico, a venda, o trânsito, a importação ou a exportação nesse Estado-Membro das referidas partes destacadas que integram no seu conjunto a carroçaria de um automóvel já lançado no comércio e, desta forma, aprovando tal comportamento?»

B - As disposições pertinentes da convenção e do protocolo

7 Nos termos do artigo 26._, primeiro parágrafo, da convenção, as decisões proferidas num Estado contratante são reconhecidas nos outros Estados contratantes, sem que seja necessário recorrer a qualquer processo.

8 O artigo 27._ fixa excepções a este reconhecimento. Assim, uma decisão não é reconhecida:

«1) se o reconhecimento for contrário à ordem pública do Estado requerido;

...

3) se a decisão for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado requerido;

...»

9 A execução é regulada pelo artigo 31._, que prevê que as decisões proferidas num Estado contratante e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado contratante, depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada. Nos termos do artigo 32._, este requerimento deve ser apresentado, na Itália, à Corte d'appello.

10 Se a execução for autorizada, o devedor pode, nos termos do artigo 36._, interpor recurso da decisão. Segundo o artigo 37._, o órgão jurisdicional competente para esse efeito na Itália é a Corte d'appello. Se o pedido for indeferido, o requerente pode, nos termos do artigo 40._, interpor recurso para o qual o órgão jurisdicional competente na Itália é a Corte d'appello.

11 Nos termos do artigo 1._ do protocolo, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias é competente para decidir «sobre a interpretação da convenção... bem como do presente protocolo.» No entanto, apenas alguns órgãos jurisdicionais podem submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça. O artigo 2._, ponto 1, do protocolo enumera, num primeiro tempo, certos órgãos jurisdicionais que têm o direito de submissão em relação a cada um dos Estados contratantes. Para a Itália, trata-se da Corte suprema di cassazione. Nos termos do artigo 3._, pontos 2 e 3, questões prejudiciais de interpretação podem igualmente ser submetidas por:

«2) os órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes quando decidam o recurso;

3) nos casos previstos no artigo 37._ da convenção, os órgãos jurisdicionais mencionados no referido artigo».

Observemos, desde já, que o artigo 40._ - recurso do indeferimento de um pedido de exequatur - não é expressamente mencionado no artigo 2._ do protocolo.

C - O acórdão de 5 de Outubro de 1988, CICRA e Maxicar (2)

12 Neste processo, foram submetidas ao Tribunal de Justiça questões relativas à mesma problemática que as duas primeiras questões submetidas no presente caso; estas questões estavam, de resto, formuladas de modo análogo. As recorrentes neste processo eram a CICRA, uma associação profissional de diversas empresas italianas que fabricam e comercializam peças sobresselentes de carroçaria para veículos automóveis e a sociedade Maxicar, membro desta associação. Por conseguinte, as partes no processo eram as mesmas que no presente caso. Como este acórdão e a sua redacção são de grande importância para responder às duas primeiras questões, é conveniente, a título preliminar, examiná-lo detalhadamente.

13 O Tribunal de Justiça declarou, em primeiro lugar, que, «no presente estado do direito comunitário e na falta de uma unificação no âmbito da Comunidade ou de uma aproximação das legislações, a fixação das condições e modalidades dessa protecção compete à lei interna. Compete ao legislador nacional determinar os produtos que podem beneficiar da protecção, mesmo quando façam parte de um conjunto já protegido enquanto tal» (3).

14 O Tribunal de Justiça acrescenta:

«Seguidamente, importa observar que a faculdade, para o titular do modelo ornamental depositado, de se opor à fabricação por terceiros, para venda no mercado interno ou para exportação, de produtos que incorporem o modelo ou de impedir a importação de produtos semelhantes que tenham sido fabricados sem o seu consentimento nos outros Estados-Membros constitui a substância do seu direito exclusivo. Impedir a aplicação da legislação nacional, em semelhantes condições, traduzir-se-ia, pois, em pôr em causa a própria existência desse direito.

Há ainda que recordar que, por força do artigo 36._, as restrições à importação ou à exportação que se justifiquem por razões de protecção da propriedade industrial e comercial são admissíveis na medida em que não constituam nem uma forma de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-Membros. A este propósito, basta ter presente, face aos documentos que constam dos autos... essa legislação não visa favorecer os produtos nacionais face aos produtos provenientes de outros Estados-Membros» (4).

15 Quanto ao artigo 86._ do Tratado, o simples facto de obter o benefício do direito exclusivo concedido pela lei, direito cuja substância consiste em poder impedir a fabricação e a venda dos produtos protegidos por terceiros não autorizados, não pode ser visto como uma forma abusiva de eliminação da concorrência (5).

16 Quanto à diferença de preços entre as peças vendidas pelo construtor e as vendidas pelos fabricantes independentes, o Tribunal observa que, «segundo a jurisprudência... o preço mais elevado das primeiras face às segundas não constitui necessariamente um abuso, dado que o titular de um modelo ornamental depositado pode legitimamente aspirar a uma remuneração das despesas que efectuou para desenvolver o modelo protegido» (6).

17 Foi por isso que o Tribunal de Justiça respondeu às questões prejudiciais da forma seguinte:

«1) As normas relativas à livre circulação de mercadorias não se opõem à aplicação de uma regulamentação nacional nos termos da qual um fabricante de veículos automóveis, titular de um modelo ornamental depositado relativo a peças sobresselentes destinadas aos veículos por ele fabricados, pode proibir a fabricação por terceiros, para venda no mercado interno ou para exportação, de peças protegidas ou impedir a importação de outros Estados-Membros das peças protegidas que aí tenham sido fabricadas sem o seu consentimento.

2) O simples facto de obter o depósito de modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis não constitui um abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86._ do Tratado; o exercício do direito exclusivo que corresponde a esses modelos pode ser proibido pelo artigo 86._ do Tratado, caso dê origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a determinados comportamentos abusivos, tais como a recusa injustificada de venda de peças sobresselentes a oficinas de reparação independentes, a fixação do preço das peças sobresselentes a um nível iníquo ou à decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para determinado modelo quando ainda circulam muitos veículos desse mesmo modelo, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre os Estados-Membros.»

D - Quanto à terceira questão

18 No presente caso, trata-se, antes de mais - e o órgão jurisdicional de reenvio confirma-o -, de determinar se a noção de ordem pública referida no artigo 27._, ponto 1, da convenção engloba o direito comunitário. Uma resposta negativa tornará supérflua a análise das duas primeiras questões relativas à interpretação do direito comunitário. É por isso que parece oportuno abordar a terceira questão em primeiro lugar, como o fizeram, de resto, pelo menos na audiência pública, a maior parte das partes que intervieram no processo.

Admissibilidade

19 No âmbito da terceira questão do reenvio, é conveniente, em primeiro lugar, clarificar se o órgão jurisdicional nacional podia reenviar ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação da convenção.

Argumentos das partes

20 Segundo a recorrente, assim não sucede. A recorrente remete para o artigo 2._ do protocolo. Como o órgão jurisdicional de reenvio decidiu em primeira instância e foi chamado a decidir ao abrigo do artigo 40._ da convenção e não ao abrigo do artigo 37._, o direito de reenviar para o Tribunal de Justiça deve ser excluído nos termos do artigo 2._ do protocolo. Para confirmação, a recorrente remete para a jurisprudência do Tribunal de Justiça (7). No processo Von Gallera, o Tribunal de Justiça declarou inadmissível uma questão prejudicial do órgão jurisdicional a quem tinha sido pedido um exequatur. Esta regra é de interpretação estrita e nenhuma extensão de competência pode ser encarada por analogia com o artigo 37._, que define, a este respeito, uma situação excepcional.

21 Os recorridos, o Governo francês e a Comissão consideram, pelo contrário, que a questão prejudicial é admissível. Segundo os recorridos, o órgão jurisdicional de reenvio profere decisão no presente caso em recurso nos termos do artigo 2._, pontos 2 e 3, do protocolo. A decisão que é chamado a tomar sobre o recurso só pode ser objecto, nos termos do artigo 41._, de um recurso de cassação. O relatório Jenard (8) confirma que o órgão jurisdicional de reenvio deve ser considerado como um órgão jurisdicional decidindo em recurso. O despacho invocado pela recorrente não é pertinente, pois tinha por objecto uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional chamado a decidir em primeira instância.

22 O Governo francês considera, de resto, que o órgão jurisdicional de reenvio decide no âmbito do artigo 40._, como órgão jurisdicional de recurso, o que confirma a jurisprudência do Tribunal de Justiça (9).

23 A Comissão observa, em primeiro lugar, que, nas diversas versões linguísticas da convenção, o processo do artigo 40._ é qualificado como processo de recurso. O relatório Jenard confirma-o, de resto, sem ambiguidade, pelo que a Comissão conclui que o órgão jurisdicional de reenvio está efectivamente habilitado a submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 2._, n._ 2, do protocolo. Salienta, além disso, a semelhança dos processos referidos no artigo 37._ e no artigo 40._ da convenção, nomeadamente no que concerne, por exemplo, ao respeito das regras de processo contraditório. Não se pode, por conseguinte, excluir que o artigo 2._, ponto 3, do protocolo retome implicitamente o caso referido no artigo 40._ da convenção. Apesar das possibilidades restritas de reenvio prejudicial no âmbito da convenção, tal extensão é admissível no interesse do equilíbrio das construções processuais da convenção e da igualdade de tratamento das partes no processo referido no artigo 40._ em relação às partes no processo referido no artigo 37._

A nossa posição

24 Se considerarmos a redacção da convenção e a do protocolo, verificamos que os processos referidos nos artigos 37._ e 40._ estão organizados, e mesmo denominados, de modos diversos nas diferentes versões linguísticas. Assim, na versão alemã, o artigo 37._ e o artigo 40._ empregam o termo «Rechtsbehelf» e o artigo 2._, ponto 2, do protocolo exige que a jurisdição decida «als Rechtsmittelinstanz».

25 O texto francês qualifica os processos referidos nos artigos 37._ e 40._ da convenção como «recours» e exige, no artigo 2._, ponto 2, do protocolo, que os órgãos jurisdicionais «statuent en appel».

26 Em contrapartida, o texto inglês fala nos artigos 37._ e 40._ de «appeal» e exige no artigo 2._, ponto 2, do protocolo que os órgãos jurisdicionais decidam «in an appellate capacity».

27 A redacção não permite, pois, concluir de modo seguro que o órgão jurisdicional de reenvio decide como instância de recurso no âmbito do artigo 40._ da convenção. Face à estrutura do artigo 2._ do protocolo, poder-se-ia dizer que isso não tem importância. O facto de o ponto 2 mencionar os órgãos jurisdicionais decidindo em recurso quando o ponto 3 se refere expressamente ao artigo 37._ poderia justificar a conclusão de que os órgãos jurisdicionais visados no artigo 37._ não são justamente órgãos jurisdicionais de recurso. Ora, uma vez que - como a Comissão observa correctamente - o processo do artigo 37._ e o do artigo 40._ são muito semelhantes - nos dois casos, trata-se de contestar uma decisão tomada pelo órgão jurisdicional a quem é pedido o exequatur - e que eles estão organizados do mesmo modo nas diversas versões linguísticas que examinámos, podemos concluir que o órgão jurisdicional visado no processo do artigo 40._ também não pode ser considerado como órgão jurisdicional de recurso.

28 A jurisprudência do Tribunal de Justiça vai, no entanto, num sentido diferente. No processo Firma P. (10), a que se refere igualmente o Governo francês, um órgão jurisdicional para o qual tinha sido interposto recurso ao abrigo do artigo 40._ da convenção tinha submetido uma questão relativa à interpretação deste artigo. Esta questão não foi declarada inadmissível. Muito pelo contrário, o Tribunal de Justiça interpretou o artigo 40._ e, portanto, respondeu à questão. Nesta interpretação, observou: «não deixa de ser verdade que a convenção exige formalmente que o processo seja contraditório ao nível do recurso, sem distinguir consoante o alcance da decisão tomada na primeira instância» (11). Daqui podemos deduzir que o órgão jurisdicional de reenvio decide em segunda instância. Um órgão jurisdicional que decide no âmbito do artigo 40._ da convenção está, por conseguinte, habilitado a submeter ao Tribunal de Justiça uma questão relativa à interpretação desta convenção. O despacho invocado pela recorrente no processo Von Gallera não contradiz esta conclusão, pois tratava-se, neste processo, do pedido apresentado por um órgão jurisdicional a quem tinha sido feito um pedido de exequatur e que, por conseguinte, decidiu em primeira instância. Esta questão foi julgada inadmissível (12).

29 Resta acrescentar que, tal como a Comissão salientou, nada justifica uma diferença de tratamento entre o processo do artigo 37._ e o do artigo 40._ da convenção. Trata-se, nos dois casos, de contestar a decisão tomada pelo órgão jurisdicional de conceder ou não conceder o exequatur. Apenas a parte em causa é diferente. Por conseguinte, não se vê por que razão é que só poderia ser submetida uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça num destes processos. Portanto, se o Tribunal de Justiça considerar que o órgão jurisdicional de reenvio não é um órgão jurisdicional decidindo em recurso na acepção do artigo 2._, ponto 2, do protocolo, as questões prejudiciais continuarão, apesar de tudo, a ser admissíveis ao abrigo do artigo 2._, ponto 3, do protocolo, por analogia com o processo do artigo 37._ da convenção.

Quanto ao conteúdo da terceira questão

Da noção de ordem pública

Argumentos das partes

30 A recorrente afirma que esta terceira questão se destina a saber se um erro de interpretação numa decisão estrangeira pode ser considerado como uma violação da ordem pública internacional. No que concerne à noção de «ordem pública», a recorrente refere-se, antes de mais, ao relatório Jenard. Daí resulta que a cláusula de ordem pública só se pode aplicar raramente e em casos excepcionais e que o exequatur só pode ser recusado a uma decisão estrangeira se o reconhecimento dessa decisão, quer dizer, os efeitos que ela pode ter no Estado-Membro, forem contrários à ordem pública.

31 Segundo a recorrente, o Tribunal de Justiça decidiu também que a noção de «ordem pública» só pode aplicar-se excepcionalmente em relação com o direito comunitário (13).

32 Referindo-se às conclusões no processo Van den Boogaard (14), a recorrente observa que a noção de «ordem pública» só pode aplicar-se em situações susceptíveis de terem um forte impacto na sensibilidade comunitária dum Estado-Membro. Ora, a única questão suscitada no presente caso é a de saber se um erro de interpretação é susceptível de atentar contra a ordem pública. Isso não sucede.

33 Com efeito, um tal alargamento da noção de «ordem pública» permitiria ao juiz alterar a decisão de mérito, sob pretexto de um erro de interpretação cometido pelo juiz estrangeiro. Ora, é precisamente o que a convenção proíbe em dois lugares, a saber, nos artigos 29._ e 34._, e o relatório Jenard, de resto, confirma-o.

34 Admitir, apesar de tudo, tal possibilidade significaria ignorar totalmente o objectivo que a convenção fixa a si própria de garantir uma execução rápida das decisões noutros Estados-Membros e, além disso, criaria uma nova via de recurso.

35 Segundo uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a protecção de desenhos e modelos constitui, além do mais, objecto das regulamentações nacionais e não pode ser determinada pelo órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro. Se, no caso em apreço, o juiz italiano se recusasse a reconhecer uma decisão francesa que castiga infracções cometidas no território francês, violaria a soberania francesa.

36 Segundo os recorridos, não se trata aqui de examinar o processo quanto ao mérito, mas - bem pelo contrário - de levar o Tribunal de Justiça a definir a noção de «ordem pública económica», que constitui um dos limites fixados pela convenção à possibilidade de exequatur de uma decisão. A noção deve, a este respeito, ser considerada como referindo-se a uma ordem pública internacional, que engloba a ordem pública comunitária e, portanto, os princípios da livre circulação de mercadorias e da liberdade de concorrência.

37 A cláusula do artigo 27._, ponto 1, é uma cláusula de salvaguarda que permite aos Estados partes na convenção oporem-se à execução da decisão, quando ela afectar princípios fundamentais relativos à ordem pública. O facto de esta cláusula só poder ser aplicada excepcionalmente não significa que ela não seja aplicável no caso em apreço.

38 A noção de «ordem pública» não pode restringir-se às questões morais e religiosas. Os recorridos referem-se também, a este respeito, às conclusões apresentadas no processo Van den Boogaard (15), em que o advogado-geral Jacobs declarou que mesmo as questões económicas são susceptíveis de afectar os interesses fundamentais da ordem pública.

39 O reconhecimento da decisão francesa e, portanto, da regulamentação francesa aplicável às peças sobresselentes levaria a sacrificar a livre concorrência à execução das decisões em todo o território comunitário. O problema suscitado no caso em apreço é não o de duas decisões que se opõem, mas antes o da contradição sistemática entre duas jurisprudências.

40 É, de resto, incontestável que a ordem social de um Estado-Membro é posta em causa se uma parte puder apoiar-se em duas decisões contraditórias. Os recorridos referem-se, a este respeito, ao acórdão Hoffmann (16).

41 Portanto, não considerar a decisão francesa como violação do direito comunitário, pelo facto da protecção das peças sobresselentes constituir problema dos Estados-Membros, implicaria necessariamente a impossibilidade de conceder o exequatur por razões de ordem pública económica.

42 É por isso que os recorridos concluem ser possível, por razões de ordem pública, recusar, noutro Estado-Membro parte na convenção, o reconhecimento e a execução de uma decisão incompatível com princípios fundamentais da livre circulação de mercadorias. Isto vale igualmente para uma decisão que constitui a expressão de uma orientação jurídica incompatível com a jurisprudência constante no Estado requerido.

43 Como o artigo 27._, ponto 1, se refere à «ordem pública do Estado requerido», o Governo francês suscita, em primeiro lugar, a questão de saber se o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre o teor desta noção ou se o órgão jurisdicional nacional é o único competente para esse efeito. Acrescenta que, mesmo que a noção de «ordem pública» não seja comunitária, o controlo da conformidade com a ordem pública visado na convenção não se relaciona com a verificação de uma simples contradição entre o direito aplicado pelo Estado de origem e o direito do Estado requerido. Se assim não fosse, raras seriam as decisões susceptíveis de exequatur e os objectivos da convenção seriam impossíveis de atingir. O artigo 27._, ponto 1, refere-se à ordem pública internacional do Estado correspondente. Para o reconhecimento de decisões estrangeiras, esta noção apenas produz um efeito atenuado, no sentido de que a única questão determinante é a de saber se o reconhecimento da decisão é contrário à ordem pública. A decisão não pode, em caso algum, ser alterada quanto ao mérito.

44 Do mesmo modo, a finalidade da convenção, que é de tornar possível a execução de decisões em toda a Comunidade, implica que o artigo 27._, ponto 1, seja interpretado restritivamente. Segundo o relatório Jenard, a noção deve ser interpretada de modo análogo à contida nas convenções mais recentes. O Governo francês refere-se, a este respeito, à convenção da Haia de 1 de Fevereiro de 1971, que prevê, nomeadamente, que o reconhecimento pode ser recusado quando seja manifestamente incompatível com a ordem pública. A utilização do advérbio «manifestamente» confirma que a ordem pública só muito excepcionalmente pode ser oposta ao exequatur.

45 Quanto ao conteúdo da noção de «ordem pública», o Governo francês observa ainda que a execução de decisões em toda a Comunidade só pode ser restringida se valores éticos, religiosos ou morais estiverem em causa. Assim sucede, por exemplo, com a protecção da integridade física das pessoas, mas não pode, sem dúvida, aplicar-se a noções de direito económico comunitário.

46 Para o Governo neerlandês, a noção de «ordem pública» não deve ser definida por cada Estado individualmente, antes deve ser erigida em conceito autónomo, interpretado de modo uniforme em todos os Estados contratantes, de modo a reforçar a protecção jurídica do indivíduo e a garantir uma aplicação uniforme da convenção.

47 No que concerne ao próprio conceito, o Governo neerlandês sustenta, referindo-se ao relatório Jenard e ao acórdão Hoffmann (17), que o seu âmbito se deve limitar aos princípios fundamentais. Estes últimos podem, de resto, incluir princípios fundamentais da ordem jurídica comunitária.

48 Quanto a saber se o Tribunal de Justiça se pode pronunciar sobre o teor da noção de «ordem pública», a Comissão considera não ser possível, num domínio como o da convenção, deixar apenas às autoridades nacionais o cuidado de interpretar o âmbito de aplicação de uma noção susceptível de ter um impacto notável na realização do objectivo fundamental da convenção. É precisamente para evitar litígios de interpretação entre os diferentes órgãos jurisdicionais nacionais que foi adoptado o protocolo, que prevê que o Tribunal de Justiça assegure a uniformidade de aplicação, graças ao mecanismo da questão prejudicial. Por isso foi julgado indispensável que as regras da convenção e a jurisprudência do Tribunal de Justiça a elas relativo sejam objecto de uma aplicação uniforme em todos os Estados contratantes (18).

49 Para responder à questão, a Comissão afirma, em primeiro lugar e num plano geral, que o problema no caso em apreço é de saber se uma decisão eventualmente viciada por erro de interpretação pode ser contrária à ordem pública. Refere-se, a este respeito, ao objectivo fundamental da convenção, que é assegurar a execução das decisões judiciárias em toda a Comunidade. Para este efeito, a convenção parte do princípio da confiança que os Estados contratantes concedem mutuamente aos seus sistemas jurídicos e às suas instituições judiciárias. É, de resto, por isso que é proibido alterar quanto ao mérito as decisões estrangeiras. Esta proibição resulta dos artigos 29._ e 34._ da convenção bem como do relatório Jenard.

50 Uma vez que prevê uma excepção a este princípio, o artigo 27._ é de interpretação restritiva. Em relação às outras possibilidades previstas no artigo 27._, o ponto 1 deste artigo tem um carácter residual, quer dizer, constitui a possibilidade mais restritiva entre as excepções. A Comissão remete, a este respeito, para a jurisprudência do Tribunal de Justiça (19). Uma outra restrição resulta do facto de não ser a decisão em si, mas o seu reconhecimento que deve conduzir a uma violação da ordem pública.

51 Quanto ao conteúdo da noção de «ordem pública», a Comissão observa que o facto de uma decisão estrangeira se apoiar numa lei que não existe, ou não existe sob a mesma forma, num outro Estado-Membro não permite, por si só, pelo simples facto desta diferença, que o juiz não reconheça a decisão alegando violação da ordem pública. Tal recusa só será possível se a diferença entre as duas regulamentações for tal que a execução da decisão ameace gravemente os princípios fundamentais, a que não se pode renunciar, e os valores que constituem o próprio fundamento das regulamentações jurídicas. No entanto, um juiz deve declarar executórias mesmo as decisões que ele próprio não podia ter proferido, com base na sua própria ordem jurídica. Outra coisa não sucederia, por exemplo, entre diferentes órgãos jurisdicionais no interior da Itália. Também aí, uma decisão tornada definitiva deve ser reconhecida. Isto vale igualmente quando a decisão tenha sido proferida noutro Estado.

52 É difícil dar uma definição positiva da noção de «ordem pública». Referindo-se às conclusões apresentadas no processo Van den Boogaard (20), a Comissão menciona, a título indicativo, as atitudes morais e religiosas em cada Estado contratante. A ordem pública internacional a que se refere o artigo 27._, ponto 1, é constituída pelo nó central e fundamental dos princípios jurídicos que constituem a ordem pública no interior desse Estado. Trata-se de uma noção dinâmica.

53 Segundo a Comissão, não é necessário nem útil responder à questão in abstracto e ela limita-se, portanto, à análise do caso em apreço. Neste caso, a circunstância extraordinária que levou o juiz a pensar numa violação da ordem pública é constituída por um alegado erro de interpretação de certas regras de direito comunitário. Portanto, o problema não é que a decisão estrangeira se baseie em princípios susceptíveis de ferir a sensibilidade e os interesses fundamentais do Estado requerido. Um (alegado) erro de interpretação não pode justificar a recusa de reconhecimento e de execução da decisão.

54 Quando a decisão estrangeira esteja verdadeiramente viciada de erro, é sempre possível - prossegue a Comissão - usar as vias de recurso existentes no Estado correspondente. O artigo 27._, ponto 1, não pode constituir essa via. Admitir o contrário significaria permitir ao juiz alterar a decisão quanto ao mérito, no âmbito da convenção, e criar, através da mesma, obstáculos ao objectivo fundamental desta última.

55 A Comissão interroga-se seguidamente sobre a questão de saber se assim não sucede quando - como no caso em apreço - se trate de regras de direito comunitário. Responde pela negativa, pois o direito comunitário não apresenta qualquer especificidade em relação ao direito nacional nesta matéria, na medida em que o juiz deve, em conformidade com uma jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, assegurar com a mesma eficácia a protecção jurídica dos direitos estabelecidos pelas regras da ordem jurídica nacional e dos direitos resultantes da ordem comunitária. Nos dois domínios, os eventuais erros de interpretação podem ser objecto de recurso para a instância superior.

56 No decurso da audiência, a Comissão suscitou mesmo a questão de saber se considerações desenvolvidas no âmbito da ordem económica podem ser integradas no conceito de «ordem pública». Respondeu pela negativa. O direito comunitário rege, influencia, entra mesmo em todos os aspectos da vida económica dos Estados-Membros. Os princípios que baseiam as legislações nacionais e constituem, na prática, a constituição económica europeia não podem deixar de ser comuns a todos os Estados-Membros. É, portanto, impossível alegar, entre os valores e os princípios dos Estados-Membros, diferenças que justifiquem a falta de reconhecimento de uma decisão judiciária.

A nossa posição

57 Para responder à terceira questão reenviada, é preciso, em primeiro lugar, examinar se o Tribunal de Justiça pode ser competente no caso em apreço para interpretar a noção de «ordem pública» na acepção do artigo 27._, ponto 1, da convenção. A redacção do artigo 27._, ponto 1, que se refere «à ordem pública do Estado requerido» pode justificar certas dúvidas. Pode, pois, tratar-se de uma noção puramente interna, a ser interpretada pelo órgão jurisdicional nacional em causa.

58 No entanto, o protocolo prevê, no seu artigo 1._, que o Tribunal de Justiça está encarregado da interpretação da convenção. Esta competência refere-se, por conseguinte, a toda a convenção, pois nenhuma disposição é dela expressamente excluída. A interpretação pelo Tribunal de Justiça tem como sentido e por finalidade evitar que a convenção seja objecto de interpretações divergentes (21). Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é necessariamente competente para interpretar também a noção de «ordem pública» referida no artigo 27._, ponto 1. Para além do facto de que deixar a definição deste conceito exclusivamente aos órgãos jurisdicionais nacionais podia levar a divergências na aplicação da convenção, uma interpretação excessivamente ampla do conceito poderia mesmo pôr em causa toda a finalidade desta última. É por isso que é preciso confirmar, no caso em apreço, a competência do Tribunal de Justiça para interpretar a noção de ordem pública, tanto mais que esta noção engloba igualmente princípios do direito comunitário.

59 Quanto à questão propriamente dita, o órgão jurisdicional de reenvio quer saber se a decisão a que se refere é contrária à ordem pública; dito por outras palavras, quer saber de que modo a noção de «ordem pública» deve ser interpretada neste contexto. O artigo 27._ enumera, num plano geral, razões pelas quais uma decisão não pode ser reconhecida. Constitui uma disposição derrogatória, pois, segundo o preâmbulo da convenção, esta última tem por objectivo facilitar o reconhecimento das decisões e introduzir um processo acelerado para garantir a sua execução. A finalidade é garantir, assim, a execução e o reconhecimento mútuos das decisões judiciárias e reforçar a protecção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade.

60 É por isso que o artigo 29._ da convenção prevê que a decisão estrangeira não possa, em caso algum, ser objecto de uma revisão quanto ao mérito. Esta regra é reiterada no artigo 34._, terceiro parágrafo, o que sublinha a sua importância. Segundo o relatório Jenard, ela significa que o juiz ao qual é pedido o reconhecimento de uma decisão estrangeira não pode substituir a vontade do juiz estrangeiro pela sua própria nem recusar o reconhecimento, mesmo se considerar que um ponto qualquer de facto ou de direito foi mal decidido (22). A execução só pode ser excluída se o reconhecimento em si próprio for susceptível de violar a ordem pública.

61 A convenção assegura, por conseguinte, o reconhecimento das decisões estrangeiras através de um sistema baseado na confiança na ordem jurídica do outro Estado, a fim de garantir a livre circulação das decisões na Comunidade Europeia (23). Recusar o reconhecimento de uma decisão estrangeira só é, portanto, possível em casos excepcionais (24). É um facto de que é necessário ter conta no momento da sua interpretação. Se a ordem pública englobasse todo o direito do Estado-Membro requerido, a execução das decisões em toda a Comunidade seria, na prática, inexistente. O reconhecimento podia ser negado a toda e qualquer decisão cuja execução fosse contrária a uma das leis do Estado requerido. A noção de «ordem pública» só pode, portanto, englobar princípios fundamentais. O facto do julgamento ter sido proferido com base numa ordem jurídica diferente não basta, por si só, para infringir a ordem pública.

62 Como já observámos, uma interpretação errada do direito pelo primeiro órgão jurisdicional não basta para recusar o reconhecimento. O mesmo vale para a interpretação errada do direito comunitário, pois, tal como a Comissão justamente salienta, o direito comunitário não pode derrogar a norma neste domínio. Os órgãos jurisdicionais nacionais devem, em virtude de uma jurisprudência constante, garantir a protecção que resulta para os sujeitos de direito do efeito directo do direito comunitário (25).

63 Em resumo, a ordem pública não pode ser considerada como violada pelo simples facto de uma decisão estrangeira ter sido tomada com base numa ordem jurídica diferente ou por o direito ter sido mal interpretado. Todos estes «vícios» das decisões devem ser aceites e a execução deve ser autorizada. A noção de «ordem pública» deve, portanto, integrar os princípios fundamentais e o reconhecimento só pode ser recusado a este título nos casos em que a execução seja absolutamente incompatível com esses princípios.

64 A Comissão observa, neste contexto, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o órgão jurisdicional francês fez uma interpretação errada do direito comunitário, que se aplica de modo idêntico nos dois Estados-Membros. Não se trata aqui de um caso extraordinário, susceptível de ameaçar gravemente interesses fundamentais da comunidade nacional. Em tal caso, seria sempre possível usar as vias de recurso existentes no Estado de origem.

65 A Comissão observa justamente que não tomar em conta uma decisão por causa de um erro de interpretação não é, sem dúvida, o caso típico de não reconhecimento de uma decisão por violação da ordem pública. O caso que se afigura normal é antes o de uma decisão proferida de acordo com o direito estrangeiro não poder ser executada no Estado requerido devido a diferenças insuperáveis nas condições de fundo. Ora, no presente caso, estamos simplesmente perante uma decisão de justiça à qual se reprova ter feito uma má interpretação do direito. Decisões como esta já podem ser objecto de recursos internos no Estado de origem, sem que isso provoque necessariamente a sua anulação. Assim, neste caso, a decisão francesa foi confirmada em cassação. As decisões confirmadas pelas instâncias superiores ou que não são objecto de qualquer recurso adquirem força de caso julgado e devem ser reconhecidas apesar do «erro» de que estão viciadas. A força de caso julgado só muito dificilmente pode ser retirada a uma decisão. Ora, recusar a execução dessa decisão no âmbito da ordem pública do Estado requerido significaria precisamente negar a essa decisão a sua força de caso julgado.

66 Mesmo no Estado requerido podem ser proferidas decisões erradas e aí adquirirem força de caso julgado. Dito de outro modo, devem ser aí aplicadas apesar dos erros de que estejam viciadas. O reconhecimento de decisões estrangeiras equivalentes não pode, portanto, por si só, violar a ordem pública do Estado requerido.

67 Esta problemática é ainda acentuada pelo facto de se tratar aqui de uma interpretação alegadamente errada do direito comunitário. Este direito é aplicável nos dois Estados, onde se sobrepõe a eventuais disposições nacionais que lhe sejam contrárias. Não pode haver diferenças fundamentais nas concepções jurídicas nesta matéria. Ninguém pode, no entanto, excluir em absoluto que, na sequência de um tal erro de interpretação, a execução da decisão viole princípios fundamentais, incluindo princípios de direito comunitário. No presente caso de figura, isso é, no entanto, concebível apenas num pequeno número de casos excepcionais. Seria necessária uma violação clara de princípios fundamentais. Ora, já não é certo, no caso em apreço, que a livre concorrência e a livre circulação de mercadorias possam constituir esses princípios fundamentais. Quanto à livre circulação de mercadorias, por exemplo, o próprio direito comunitário prevê restrições baseadas na ordem pública interna, que é mais ampla que a ordem pública na acepção da convenção. Além disso, a violação, no presente caso, não é manifestamente de uma gravidade extrema, pois os próprios recorridos alegam que a situação jurídica se modificou na Itália. Salientam que, no despacho de reenvio proferido no processo CICRA e Maxicar, o órgão jurisdicional italiano observava ainda que a protecção dos modelos de elementos que referia de veículos automóveis era compatível com o direito italiano. Acrescentam que, nessa época, todos os Estados-Membros que intervieram no processo e a Comissão confirmaram o princípio da protecção de elementos de carroçaria a título da propriedade industrial e intelectual. Portanto, as concepções jurídicas actuais na Itália, que tornam alegadamente impossível a execução da decisão francesa, não existiram sempre. Estavam, há bem pouco tempo, muito mais próximas da regulamentação francesa. A concepção francesa não pode, por conseguinte, ser considerada como oposta à concepção italiana ao ponto de a execução da decisão correspondente ser contrária a princípios fundamentais. Não podemos, portanto, considerar haver, neste caso, qualquer violação da ordem pública.

Quanto ao artigo 27._, ponto 3, da convenção

Argumentos das partes

68 O Governo francês salienta - a título subsidiário - que o despacho de reenvio menciona brevemente uma decisão do tribunal de Milão, que poderia eventualmente opor-se à execução nos termos do artigo 27._, ponto 3. Mas, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não apresenta questões a este propósito, o Tribunal não tem que se pronunciar.

A nossa posição

69 Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o recurso à cláusula de ordem pública está excluído quando a decisão estrangeira for inconciliável, na acepção do artigo 27._, ponto 3, com uma decisão proferida no Estado requerido (26). Nesta hipótese, o reconhecimento da decisão deve ser recusado, mas nos termos do artigo 27._, ponto 3, e não invocando a ordem pública nos termos do artigo 27._, ponto 1. Isto resulta igualmente do acórdão Hoffmann (27), em que o Tribunal salientou que, no sistema da convenção, o recurso à cláusula de ordem pública está, em todo o caso, excluído quando, como no caso concreto, o problema posto é o da compatibilidade de uma decisão estrangeira com uma decisão nacional.

70 O despacho de reenvio menciona uma decisão italiana contrária ao acórdão francês e, portanto, refere-se efectivamente ao artigo 27._, ponto 3. Mas, uma vez que as questões prejudiciais se referem expressamente ao artigo 27._, ponto 1, apenas esta última disposição deve ser abordada. Há que observar aqui que, em caso de inconciliabilidade com uma decisão italiana na acepção do artigo 27._, ponto 3, a reserva de ordem pública referida no artigo 27._, ponto 1, não se aplicaria.

71 Com o artigo 27._, ponto 3, os Estados contratantes sobrepuseram a autoridade das decisões dos seus órgãos jurisdicionais, no âmbito do processo de execução, à de uma decisão estrangeira que deva ser objecto de exequatur. Para a execução de uma decisão estrangeira, a contradição com uma decisão isolada interna na acepção do artigo 27._, ponto 3, pesará, portanto, mais do que a inconciliabilidade com normas nacionais, que não dependem, como tais, do artigo 27._, ponto 1. Esta clivagem é uma consequência do facto de o processo de execução se destinar a impor um título executório determinado. A aplicação do direito material continua reservada ao processo de mérito e só pode ser revista no âmbito da execução face a eventuais violações da ordem pública nacional. Em contrapartida, as consequências da existência de decisões contraditórias referem-se ao próprio direito de execução e devem, portanto, ser examinadas no âmbito do processo de execução.

72 O certo é que o despacho de reenvio não contém elementos suficientes para dizer se o artigo 27._, ponto 3, da convenção é verdadeiramente aplicável no presente caso.

E - Quanto às duas primeiras questões

73 Face à resposta dada à terceira questão, as duas primeiras questões serão apenas analisadas a título subsidiário.

Admissibilidade

Argumentos das partes

74 Segundo a recorrente, o órgão jurisdicional de reenvio não tem o direito de submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais ao abrigo do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE). De acordo com uma jurisprudência constante, a solução dos problemas de interpretação submetidos ao Tribunal de Justiça deve permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre a questão que lhe é submetida. Ora, no presente caso, o órgão jurisdicional nacional apenas tem que decidir um pedido de exequatur e deve, portanto, limitar-se a verificar se as condições do artigo 27._, ponto 1, da convenção estão preenchidas. Não pode em caso algum alterar a decisão de mérito. Neste contexto, os princípios comunitários seriam irrelevantes.

75 A título subsidiário, a recorrente observa que, no seu acórdão CICRA e Maxicar (28), o Tribunal de Justiça respondeu já às questões prejudiciais. Nessa hipótese, todo e qualquer pedido prejudicial novo está excluído (29). Quando a interpretação não suscita qualquer dúvida, mesmo o órgão jurisdicional de última instância não é obrigado a submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça (30).

76 Os recorridos consideram que as duas primeiras questões do reenvio são admissíveis. Uma decisão estrangeira não pode ser reconhecida quando for contrária a direitos protegidos pelo direito comunitário. É, portanto, necessário que, sem deixar de interpretar o artigo 27._ da convenção, o Tribunal de Justiça forneça simultaneamente uma interpretação das disposições pertinentes do Tratado - trata-se, neste caso, dos artigos 30._ a 36._ (que passaram, após alteração, a artigos 28._, 29._ e 30._ CE; os artigos 31._ a 33._ e 35._ do Tratado CE foram revogados pelo Tratado de Amesterdão) bem como do artigo 86._ do Tratado CE - no âmbito do artigo 177._

77 Além disso, existe um número suficiente de elementos que justificam que o Tribunal de Justiça reexamine o problema. As questões submetidas no presente caso colocam-se num contexto completamente diferente do do acórdão inicial. Assim, as primeiras questões prejudiciais referiam-se a um litígio puramente italiano, ao passo que, no presente caso, se trata de um exequatur com características internacionais e que afecta directamente as trocas comerciais intracomunitárias.

78 Além disso, no momento do primeiro processo prejudicial, o direito italiano admitia, tal como o direito francês, a protecção de elementos isolados da carroçaria. Esta possibilidade foi excluída em 1996 pela Corte suprema di cassazione, que assim se alinhou pelas concepções inglesas, espanhola e alemã. Para além da protecção dos desenhos e modelos, a questão incide no presente caso também nos direitos de autor.

79 De resto, a decisão inicial foi adoptada numa época em que uma harmonização das legislações nacionais era esperada num futuro próximo.

80 Como outra razão maior para reexaminar o problema, os recorridos citam a jurisprudência mais recente do Tribunal de Justiça, que afastou a distinção entre existência e exercício de um direito de exclusividade (31) ou, pelo menos, alargou enormemente a noção de exercício (32).

81 O Governo francês alega que, segundo os termos do protocolo, as duas primeiras questões são inadmissíveis. É conveniente estabelecer uma linha de separação entre o âmbito da convenção e o âmbito das regras do Tratado. Resulta, além disso, do artigo 4._ do protocolo que o reenvio prejudicial previsto na convenção é uma «lex specialis». É certo que o artigo 5._ permitia basear-se no artigo 177._ do Tratado CE e na jurisprudência correspondente para definir os limites e as modalidades do exercício pelo Tribunal de Justiça da sua competência a título prejudicial no que concerne à interpretação da convenção. No entanto, a jurisprudência relativa ao artigo 177._ determina que o Tribunal de Justiça se recuse a responder a questões que não sejam necessárias para a solução do litígio no processo principal (33).

82 Ora, uma vez que ao órgão jurisdicional de reenvio foi, neste caso, apenas submetido um pedido de exequatur no âmbito da convenção, ele apenas pode submeter questões de interpretação dessa convenção.

83 A inadmissibilidade das questões prejudiciais resulta igualmente do facto de o Tribunal lhes ter já dado resposta no acórdão CICRA e Maxicar (34).

84 A Comissão sublinha ainda - tal como o Governo neerlandês - que o despacho de reenvio apenas contém poucos factos e indicações relativas à decisão francesa e ao litígio a que ela se refere. Alega, por exemplo, falta de qualquer indicação quanto à questão de saber se os direitos exclusivos podem também ser opostos a empresas francesas que fabriquem peças sobresselentes em França. O despacho de reenvio também não diz, além disso, se a recorrente se recusa a fornecer peças sobresselentes a certos distribuidores ou se fixa os seus preços a um nível excessivamente elevado. A Comissão pergunta-se, por conseguinte, se é de facto possível dar uma resposta a estas questões prejudiciais.

85 A Comissão afirma igualmente que as duas primeiras questões dizem respeito aos artigos 30._ a 36._ e 86._ do Tratado e deviam, por conseguinte, ser submetidas ao abrigo do artigo 177._ do Tratado CE e não, como sucedeu, com base no artigo 2._ do protocolo. No entanto, julgar estas questões inadmissíveis traduziria um formalismo excessivo e iria contra o espírito de cooperação que deve reinar entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça. O papel desempenhado pelo Tribunal de Justiça nos dois processos - o artigo 177._ do Tratado e artigo 2._ do protocolo - é, de resto, comparável. As exigências de economia processual tornam igualmente desejável que o Tribunal responda às questões que lhe foram submetidas, sob pena de o juiz competente lhas reenviar de novo no âmbito do artigo 177._, o que retardaria o processo e seria contrário ao objectivo da convenção.

A nossa posição

86 Nos termos do artigo 2._ do protocolo, o juiz tem a faculdade de submeter ao Tribunal de Justiça questões relativas à interpretação da convenção. No presente caso, trata-se da noção de «ordem pública» na acepção do artigo 27._, ponto 2, da convenção. Como já vimos, esta noção pode englobar princípios fundamentais do direito comunitário. Portanto, o juiz competente pode, no mínimo, dirigir ao Tribunal de Justiça questões relativas ao seu alcance em direito comunitário, quer dizer, que ele pode interrogar este último para saber que princípios fundamentais do direito comunitário fazem parte da ordem pública de um Estado. Não se segue necessariamente, no entanto, que ele possa também pedir informações sobre a interpretação dos princípios comunitários correspondentes e das disposições do Tratado.

87 Porém, se se considerar o sentido e a finalidade do processo prejudicial, que são permitir ao juiz decidir o litígio que lhe é submetido, a necessidade de interpretação das disposições correspondentes do Tratado torna-se concebível. Uma vez que a noção de «ordem pública» inclui também princípios de direito comunitário, o juiz pode ser obrigado, eventualmente, no âmbito da convenção, a verificar se o reconhecimento de uma decisão estrangeira é inconciliável com estes princípios. Para o fazer, poderá ter necessidade da interpretação pelo Tribunal de Justiça das disposições correspondentes do Tratado. Acresce-se que seria - como diz a Comissão - excessivamente formalista julgar tais questões prejudiciais como inadmissíveis pelo único motivo de não serem submetidas ao abrigo do artigo 177._ do Tratado. Isso seria igualmente inadequado por razões de economia processual.

88 Insistimos que as considerações anteriores são apresentadas a título subsidiário, para o caso de o Tribunal não acolher o ponto de vista que adoptámos quanto à terceira questão.

Quanto à resposta a dar à primeira questão

Argumentos das partes

89 A recorrente remete para o acórdão CICRA e Maxicar de 1988, em que o Tribunal de Justiça declarou que a protecção de desenhos e modelos depende do direito nacional, por falta de unificação no plano comunitário (35). O Tribunal de Justiça concluiu, nessa época, que as disposições em matéria de livre circulação de mercadorias não se opõem à aplicação de uma legislação nacional em virtude da qual um fabricante de automóveis, titular de uma patente de um modelo ornamental com peças sobresselentes, tem o direito de proibir terceiros de fabricarem as peças protegidas (36).

90 Uma vez que as questões no presente caso estão formuladas de modo análogo e que as partes e a problemática são as mesmas que no processo CICRA e Maxicar de 1988, o Tribunal de Justiça deve responder às questões submetidas da mesma maneira que nesse acórdão. A situação jurídica não foi alterada, na medida em que a determinação das condições de concessão da protecção de desenhos e modelos continuam a ser da competência dos Estados-Membros, mesmo após a adopção da Directiva 98/71 (37). A recorrente refere-se a este respeito ao artigo 14._ da directiva, que confirma as regulamentações aplicáveis nos diferentes Estados-Membros por um período transitório de, pelo menos, três anos. O vigésimo considerando da directiva, segundo a qual as disposições do artigo 14._ não devem, em caso algum, ser interpretadas como constituindo um obstáculo à livre circulação de mercadorias, não autoriza qualquer outra conclusão. Recorda simplesmente os artigos 30._ e 36._ do Tratado, que continuam a ser aplicáveis.

91 A recorrente observa ainda que os factos que estão na base do litígio remontam ao ano de 1985. No que diz respeito aos acórdãos a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio (38), eles não autorizam qualquer outra conclusão.

92 Os recorridos observam, em primeiro lugar, que é contrário ao sentido e ao objectivo da protecção dos desenhos e modelos alargar esta protecção a peças sobresselentes da carroçaria. O objectivo é de proteger uma nova ideia ou um novo desenho no seu conjunto, a fim de atiçar a concorrência. Ora, a protecção de peças isoladas, tal como as peças sobresselentes para automóveis, que devem ser uma cópia conforme dos originais, tornaria de facto toda a concorrência impossível. Seria, assim, garantido ao titular do direito um duplo monopólio que faria mais do que compensar os custos de investimento. Os interesses dos consumidores seriam também afectados por isso.

93 A protecção concedida a peças isoladas de carroçaria deve ser, segundo os recorridos, considerada como uma medida de efeito equivalente na acepção do artigo 30._ do Tratado. Não pode ser justificada nos termos do artigo 36._ do Tratado, pois constitui uma restrição disfarçada às trocas comerciais. Em apoio desta afirmação, os recorridos alegam que esta protecção se tornaria abusiva logo que fosse concedida para uma coisa que não é, na realidade, concebida para dela beneficiar. Isto seria tanto mais verdade que o juiz francês não verificou a questão de saber se, no caso concreto, as condições de concessão dessa protecção estavam preenchidas.

94 Mesmo que o Tribunal de Justiça tenha decidido no acórdão CICRA e Maxicar que compete ao legislador nacional decidir que elementos podem ser protegidos, esta liberdade não vai, segundo os recorridos, até ao ponto de conceder uma protecção mesmo a produtos que dela não podem beneficiar face ao sentido e ao objectivo da protecção dos desenhos e modelos e do direito de autor.

95 Quanto à Directiva 98/71, os recorridos referem-se ao seu sentido e à sua finalidade, que é promover a liberalização do mercado. Uma vez que esta directiva também não fez a harmonização no domínio em litígio das peças sobresselentes para automóveis, os recorridos convidam o Tribunal a decidir das questões num sentido que lhe seja favorável e a pôr ordem na situação neste domínio.

96 O Governo neerlandês remete para o acórdão CICRA e Maxicar e examina seguidamente a questão de saber se a jurisprudência relativa do Tribunal de Justiça (39), citada no despacho de reenvio, pode alterar seja o que for nos resultados de então. Conclui que isso não sucede, por a regulamentação francesa em matéria de propriedade industrial e intelectual não ter qualquer carácter discriminatório, face às indicações fornecidas no despacho de reenvio.

97 A Comissão faz, em primeiro lugar, um certo número de observações gerais sobre os artigos 30._ e 36._ do Tratado, antes de declarar, referindo-se ao acórdão CICRA e Maxicar, que o Tribunal de Justiça já decidiu a favor da inexistência de restrição disfarçada às trocas comerciais. Não tendo havido alteração da jurisprudência nem da legislação desde então, este resultado não pode ser alterado. Os acórdãos citados a este propósito no despacho de reenvio carecem, neste caso, de pertinência.

98 Quanto à Directiva 98/71, ela limita-se a manter inalterada a situação anterior, segundo a qual a concessão de direitos exclusivos é da competência dos Estados-Membros.

A nossa posição

99 Uma vez que o texto da primeira questão no processo CICRA e Maxicar coincide quase totalmente com o da primeira questão submetida no presente caso, o Tribunal de Justiça deu-lhe já resposta no seu acórdão CICRA e Maxicar, em que concluiu pela inexistência de incompatibilidade com o direito comunitário. Há porém quem sustente que uma outra tendência resulta da jurisprudência mais recente. O despacho de reenvio refere-se, a este respeito, ao acórdão Comissão/Reino Unido (40). O órgão jurisdicional a quo apoia-se, antes de mais, numa passagem em que se diz que «as normas nomeadamente as do artigo 222._ segundo as quais o Tratado em nada prejudica o regime da propriedade dos Estados-Membros não podem ser interpretadas no sentido de que reservam para o legislador nacional em matéria de propriedade industrial e comercial o poder de adoptar medidas que violem o princípio da livre circulação de mercadorias no mercado comum...» (41).

100 No entanto, isto não quer dizer que a protecção da propriedade industrial seja restringida. O Tribunal de Justiça acrescenta, pelo contrário, que as proibições ou restrições de importação justificadas por razões de protecção da propriedade industrial e comercial só são admitidas pelo artigo 36._ do Tratado sob reserva expressa de não constituírem nem um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição disfarçada no comércio entre os Estados-Membros (42). É precisamente o ponto que o Tribunal de Justiça verificou no acórdão CICRA e Maxicar, em que declarou, face às peças do processo, que o direito exclusivo sobre elementos da carroçaria de viaturas automóveis não se destina a favorecer os produtos nacionais em relação aos produtos originários dos Estados-Membros (43). Deste ponto de vista, o acórdão de 1992 também não vai mais longe que o acórdão CICRA e Maxicar de 1988.

101 É preciso ainda recordar que, no processo Comissão/Reino Unido, a crítica incidia antes de mais sobre a discriminação estabelecida pelas disposições nacionais a favor do fabrico do produto no país e em detrimento da sua importação a partir de outro Estado-Membro (44). Com base nesta discriminação, o Tribunal de Justiça declarou que o Reino Unido não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbiam em virtude do artigo 30._ do Tratado. As indicações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente caso - que, é certo, não são muito detalhadas - não permitem, no entanto, concluir pela existência de tal discriminação de fabricantes estrangeiros de peças sobresselentes.

102 Por outro lado, é feita referência ao acórdão Espanha/Conselho (45). Neste acórdão, tratava-se de saber se o Conselho estava habilitado a adoptar um regulamento relativo à criação de um certificado complementar de protecção para os medicamentos. Quando, segundo um acórdão de 1992 - proferido no processo Comissão/Reino Unido -, competia ao legislador nacional fixar as condições e as modalidades da protecção conferida pela patente. Segundo o Tribunal de Justiça, «nem o artigo 222._ nem o artigo 36._ do Tratado reservam ao legislador nacional um poder de regulamentar o direito substantivo das patentes excluindo qualquer acção comunitária nesta matéria» (46).

103 Porém, no presente caso, não se trata de saber se um legislador comunitário tinha o direito de adoptar uma medida de harmonização determinada. O problema é antes o de que mesmo a adopção da Directiva 98/71 não fez qualquer harmonização em matéria de peças sobresselentes. Este acórdão também vai no sentido de uma modificação da jurisprudência em relação ao acórdão CICRA e Maxicar de 1988.

104 Desde 1988, a legislação também não foi alterada, porque - como já mencionámos - o domínio em litígio no presente caso está expressamente excluído de harmonização nos termos do artigo 14._ da Directiva 98/71. Dito de outra forma, a situação existente continua na mesma.

105 Segundo os recorridos, uma outra diferença em relação à situação de partida no processo CICRA e Maxicar reside no facto de se tratar, neste caso, também da concessão de uma protecção nos termos dos direitos de autor. A este propósito, é, no entanto, necessário remeter para o acórdão de 20 de Janeiro de 1981, Gema (47). Neste acórdão, o Tribunal de Justiça declarou: «o artigo 36._ do Tratado prevê, no entanto, que as disposições dos artigos 30._ a 34._ inclusive não impedem as proibições ou restrições de importação justificadas por razões de protecção da propriedade industrial e comercial. Esta última expressão inclui a protecção que o direito de autor confere...» (48).

106 Não há, portanto, que distinguir, no domínio dos artigos 30._ e 36._ do Tratado, entre a protecção da propriedade industrial e comercial e os direitos de autor. É por isso que não vemos na jurisprudência, na legislação ou nos factos do presente caso qualquer diferença que justifique que nos afastemos da jurisprudência CICRA e Maxicar.

Quanto à resposta a dar à segunda questão

Argumentos das partes

107 Aqui também, a recorrente se refere ao acórdão CICRA e Maxicar de 1988. Embora o Tribunal de Justiça aí afirme que uma posição dominante pode resultar do simples facto de obter os direitos dos modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria, a recorrente considera que assim não sucede necessariamente. Alega a este respeito que o mercado automóvel é totalmente indissociável do das peças sobresselentes. Este mercado global está sujeito a uma concorrência muito forte, mas a posse de um direito de modelo ornamental relativo a elementos de carroçaria não determina automaticamente a aparição de uma posição dominante. Não havendo posição dominante, é necessário excluir também a hipótese de abuso.

108 No seu acórdão CICRA e Maxicar, o Tribunal de Justiça distinguiu, sempre segundo a recorrente, entre a detenção do direito e o seu exercício, citando diversos exemplos de exercício abusivo da posição dominante. Nenhum dos comportamentos correspondentes a estes exemplos foi censurado à recorrente no acórdão CICRA e Maxicar. Assim, a recorrente nunca fez uso do seu direito de propriedade intelectual ou industrial para exercer uma discriminação ou falsear a concorrência. A protecção de que beneficia a esse título mais não faz do que compensar os investimentos elevados a que os recorridos escapam. A vantagem para o consumidor, invocada pelos recorridos, existe, na prática, quando muito para o garagista, que adquire as peças sobresselentes e com elas equipa os veículos, sem fazer beneficiar o seu cliente dos preços reduzidos.

109 O acórdão Magill (49), invocado pelo órgão jurisdicional de reenvio, confirma os princípios do acórdão CICRA e Maxicar de 1988, a que se refere, de resto, expressamente, tal como ao acórdão Volvo (50). No acórdão Magill, o Tribunal de Justiça declarou que o exercício do direito exclusivo pelo titular pode, em circunstâncias excepcionais, dar lugar a um comportamento abusivo (51). Estas circunstâncias excepcionais consistem na introdução no mercado de um produto novo, para o qual existe uma forte procura potencial, na inexistência de fundamentação da recusa de concessão de licenças e, finalmente, na criação de um mercado derivado, no qual não existe qualquer concorrência. O exercício normal dos seus direitos exclusivos pelo titular de desenhos ou modelos, que consiste, nomeadamente, na faculdade de se opor ao fabrico por terceiros, não pode, de modo algum, configurar as circunstâncias excepcionais referidas no acórdão Magill.

110 Os recorridos não se referem, no âmbito da segunda questão, aos comportamentos citados como abusivos no acórdão CICRA e Maxicar. Importa, neste caso, determinar, antes de mais, se a obtenção sistemática de patentes de modelos ornamentais para peças sobresselentes ou o exercício sistemático de acções judiciais contra fabricantes independentes de peças sobresselentes não constitui um abuso de posição dominante. Em segundo lugar, é necessário interrogar-se sobre a questão de saber se os construtores - supondo que se lhe reconhecem os seus direitos - não são obrigados a conceder licenças para o fabrico de peças sobresselentes. Uma empresa que ocupa uma posição dominante tem uma responsabilidade especial, que lhe proíbe toda e qualquer forma de restrição da concorrência.

111 Uma patente de um modelo ornamental que não preencha as condições exigidas e obtida de modo abusivo não pode preencher a mesma função que os direitos mencionados pelo Tribunal de Justiça no acórdão CICRA e Maxicar. Assim é tanto mais que não se trata aqui de um modelo isolado, mas de uma prática largamente espalhada. Os direitos são, de resto, obtidos em França de modo abusivo, sem que sejam verificadas as condições exigidas, para serem seguidamente alargados a outros Estados-Membros.

112 Os recorridos analisam de modo detalhado o acórdão Magill e chegam à conclusão de que a semelhança entre os factos do processo Magill e os do presente processo tornam supérflua qualquer outra consideração. O abuso de posição dominante deve, por conseguinte, ser considerado existente.

113 Os Governos belga e neerlandês referem-se igualmente aos acórdãos Volvo e Magill. O Governo belga conclui que não há que alterar as respostas dadas no acórdão CICRA e Maxicar.

114 O Governo neerlandês observa que o despacho de reenvio não contém mais do que escassas informações. Porém, é pouco verosimilhante que, no caso presente, a recusa de concessão de uma licença possa constituir obstáculo à introdução de um novo produto. Por outro lado, a pesquisa e desenvolvimento exigem investimentos importantes, que o titular do direito tem um interesse legítimo em recuperar. Recusar essa possibilidade levaria a fortes aumentos de preços. Quanto a saber se os construtores de automóveis reservam para si o mercado derivado, que exclui toda e qualquer concorrência, o Governo neerlandês considera que há que fazer uma distinção entre o mercado de fabrico de peças sobresselentes, o da sua venda e o do seu consumo. O fabrico é protegido pelo direito exclusivo do modelo ornamental. Quanto à venda, o Governo neerlandês remete para o Regulamento (CE) n._ 1475/95 (52). A licitude da exploração de uma posição dominante neste domínio depende do respeito ou falta de respeito da liberdade dos distribuidores (reconhecidos) e dos outros.

115 Ao que parece, os construtores de automóveis reservam para si o mercado do consumo das peças sobresselentes. Ora, estas deveriam ser igualmente acessíveis às oficinas de reparação independentes. Em última análise, cabe ao juiz nacional verificar se os factos permitem concluir pela existência de abuso de posição dominante.

116 Para responder à segunda questão, a Comissão remete, finalmente, para o acórdão CICRA e Maxicar de 1988 e para um outro acórdão do mesmo ano, o acórdão Volvo. Daí conclui que, segundo as raras informações contidas no despacho de reenvio, nenhum dos comportamentos abusivos enumerados nestes acórdãos pode ser censurado à recorrente. De qualquer modo, o alcance das questões prejudiciais examinadas no presente caso é bem mais limitado do que no processo Volvo. É, por conseguinte, conveniente responder à segunda questão no sentido de que não houve, no presente caso, abuso de posição dominante.

A nossa posição

117 A redacção da segunda questão corresponde, também ela, em muito larga medida à da segunda questão submetida no processo CICRA e Maxicar. É conveniente, portanto, remeter, em primeiro lugar, para este acórdão, em que o Tribunal de Justiça concluiu que o simples facto de obter patentes para modelos ornamentais relativos a elementos da carroçaria de veículos automóveis não constitui abuso de posição dominante, na acepção do artigo 86._ do Tratado. Como exemplos de comportamentos abusivos no exercício do direito exclusivo, o Tribunal de Justiça cita a recusa arbitrária em fornecer peças sobresselentes a reparadores independentes, a fixação de preços demasiado elevados para as peças sobresselentes ou a decisão de deixar de fabricar essas peças para certos modelos, embora um grande número de veículos desse modelo esteja ainda em circulação, na condição de estes comportamentos serem susceptíveis de afectar as trocas comerciais entre Estados-Membros. Até onde o pequeno número de elementos fornecidos no despacho de reenvio permite dizê-lo, nenhum comportamento deste género pôde ser constatado no caso presente. Nestas condições, a resposta à segunda questão submetida no presente processo deve estar em conformidade, em princípio, com a dada no acórdão já referido.

118 Porém, os recorridos vêem igualmente um abuso de posição dominante na concessão de direitos exclusivos para peças sobresselentes que não têm em si qualquer valor estético autónomo. Tal como sublinhámos diversas vezes, a determinação das condições a preencher para a concessão de direitos protegidos de desenhos e modelos é tarefa dos Estados-Membros. O facto de um construtor obter direitos protegidos sobre elementos da carroçaria, em aplicação da regulamentação de um Estado-Membro, não pode constituir abuso, mesmo que os recorridos considerem que esses elementos não podem ser objecto de protecção. A Directiva 98/71 não modificou minimamente esta situação, pois o seu artigo 14._ prevê que «os Estados-Membros manterão em vigor as respectivas disposições jurídicas existentes em matéria de utilização do desenho ou modelo de componentes utilizados com vista à reparação dos produtos complexos por forma a restituir-lhes a aparência original», e isto até que a directiva tenha sido alterada sob proposta da Comissão.

119 Quanto à concessão de licenças obrigatórias, evocada pelos recorridos, o Tribunal de Justiça decidiu também em 1988, no processo Volvo, (53) que «a faculdade de o titular de um modelo industrial protegido impedir terceiros de fabricar, bem como de vender ou importar, sem o seu conhecimento, produtos integrantes do modelo industrial constitui a própria essência do seu direito exclusivo. Daqui resulta que impor ao titular do modelo industrial protegido a obrigação de conceder a terceiros, mesmo com royalties razoáveis a título de compensação, uma licença para o fornecimento de produtos integrantes do modelo industrial teria por consequência privar aquele titular de parte essencial do seu direito exclusivo, e que, por isso, a recusa de concessão de semelhante licença não pode constituir, sem mais, um abuso de posição dominante» (54). Portanto, a recorrente no presente processo também não é, em princípio, obrigada a conceder licenças.

120 Os recorridos invocam, no entanto, o acórdão Magill, que confirma, em seu entender, a existência de um abuso de posição dominante no caso em apreço. No processo Magill, os factos eram os seguintes: três sociedades de televisão, cujos programas eram acessíveis à maior parte dos lares na Irlanda e a 30% a 40% dos lares na Irlanda do Norte, limitavam-se a fazer publicar as suas próprias grelhas de programas opondo-se, em virtude da legislação nacional e com base no seu direito de autor, a toda e qualquer reprodução por terceiros. Garantiam esta publicação em parte pelos seus próprios meios ou por intermédio de uma sociedade criada para esse efeito. Não existia, portanto, à época dos factos, um guia geral semanal de televisão na Irlanda e na Irlanda do Norte (55).

121 O Tribunal de Primeira Instância decidiu que, embora o exercício do direito exclusivo de reprodução da obra protegida não tenha, por si só, um carácter abusivo, o mesmo não acontece quando se verifique, face às circunstâncias próprias a cada caso, que as condições e as modalidades de exercício do direito exclusivo da reprodução da obra protegida prosseguem, na realidade, um fim manifestamente contrário aos objectivos do artigo 86._ do Tratado. Em tal hipótese, o exercício do direito de autor não corresponde à função essencial deste direito, na acepção do artigo 36._ do Tratado, que é garantir a protecção moral da obra e a remuneração do esforço criador, com respeito pelos objectivos prosseguidos, em especial pelo artigo 86._ Daí conclui o Tribunal que, neste caso, o primado do direito comunitário, designadamente no que se refere a princípios tão fundamentais como os da livre circulação de mercadorias e da livre concorrência, prevalece sobre uma utilização, não conforme com esses princípios, de uma norma nacional adoptada em matéria de propriedade intelectual (56).

122 O Tribunal afirmou a existência de tal abuso, porque, ao reservarem para si próprias a exclusividade da publicação dos seus programas semanais de televisão, as estações de televisão criavam um obstáculo à existência no mercado de um produto novo, a saber, uma revista geral de televisão, susceptível de fazer concorrência à sua própria revista. Exploraram assim o seu direito de autor sobre as grelhas de programas para garantirem para si próprias o monopólio no mercado derivado dos guias semanais de televisão na Irlanda e na Irlanda do Norte. Este acórdão foi confirmado pelo Tribunal de Justiça.

123 Mesmo que a distinção entre exercício e existência de um direito de propriedade industrial não seja pertinente, na medida em que as restrições à livre circulação de mercadorias sejam consideradas como justificadas pela própria função do direito das marcas (57), o Tribunal de Justiça confirmou no acórdão Magill, remetendo para o acórdão Volvo, que, na falta de unificação ou de aproximação das legislações, as condições da protecção de um direito de propriedade intelectual se inserem no direito nacional e que o direito exclusivo de reprodução faz parte das prerrogativas do autor, de forma que uma recusa de autorização, mesmo quando proveniente de uma empresa em posição dominante, não pode constituir em si mesma um abuso desta posição (58). O Tribunal de Justiça acrescenta - remetendo, de novo, para o acórdão Volvo - que o exercício do direito exclusivo pelo titular pode dar lugar a um comportamento abusivo, em circunstâncias excepcionais (59). O acórdão Magill não modificou, portanto, a jurisprudência em relação ao acórdão Volvo. Neste último, o Tribunal já tinha decidido que a recusa de atribuição de tal licença não constitui, no caso de peças sobresselentes para automóveis, abuso de posição dominante (60).

124 Nas circunstâncias particulares do acórdão Magill, o Tribunal de Justiça considerou existir esse abuso. Sublinha, em particular, que, em conformidade com as verificações do Tribunal, não existia qualquer substituto real ou potencial a um guia semanal de televisão que permitisse aos utilizadores preverem antecipadamente as emissões que iriam ver na semana e organizarem os seus tempos livres em conformidade. Sublinha ainda que o Tribunal de Primeira Instância provou a existência de uma procura potencial específica, constante e regular por parte dos consumidores (61).

125 No presente caso, o problema não é, no entanto, o facto de o exercício de direitos exclusivos constituir obstáculo à introdução de um produto inteiramente novo. As peças sobresselentes para automóveis não podem constituir esse produto novo, pois devem ser idênticas às peças originais. É por isso que o acórdão Magill também não justifica que se dê à segunda questão uma resposta diferente da que foi dada nos acórdãos CICRA e Maxicar e Volvo de 1988.

126 Por conseguinte, podemos concluir, em relação às duas primeiras questões, que os artigos 30._ a 36._ do Tratado devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a que o titular de um direito de propriedade intelectual ou industrial num Estado-Membro invoque o seu direito exclusivo para proibir terceiros de fabricarem e comercializarem, bem como exportarem para outro Estado-Membro peças sobresselentes, cujo conjunto constitui a carroçaria de um veículo automóvel já colocado no mercado, quer dizer, peças soltas destinadas a servir de peças sobresselentes, desde que esta proibição não tenha um carácter discriminatório.

127 De igual modo, a obtenção de direitos protegidos sobre modelos ornamentais para elementos de carroçaria de veículos automóveis não constitui, por si só, um abuso de posição dominante na acepção do artigo 86._ do Tratado. O mesmo sucede quanto ao exercício do direito exclusivo ligado a estes direitos protegidos, quando não provoque comportamentos abusivos, tal como a fixação de preços excessivos para as peças sobresselentes ou a recusa arbitrária de fornecer peças sobresselentes a oficinas de reparação independentes.

128 Já observámos que a Directiva 98/71 não alterou a situação no domínio das peças sobresselentes para automóveis, uma vez que este último constitui expressamente objecto de um período transitório, durante o qual os Estados-Membros mantêm as suas disposições em vigor (62). Trata-se aqui de uma cláusula chamada de «stand-still» que - enquanto se espera a adopção de eventuais modificações da directiva - só permite alterar as regulamentações nacionais num único sentido, o da liberalização das trocas comerciais.

129 No âmbito da alteração prevista da directiva, o legislador será chamado a determinar se não convirá efectivamente encarar a atribuição de licenças obrigatórias. A medida parece adequada sobretudo porque as peças sobresselentes nem sempre são determinantes para a aparência exterior global do veículo e a prestação intelectual ligada ao desenho de cada elemento pode variar e por vezes não justificar a restrição feita à livre circulação de mercadorias. Mas, de momento, enquanto se espera a adopção de uma regulamentação a nível europeu, devemos sustentar o resultado acima obtido. Dito de outra forma, e sempre tendo em conta o pequeno número de factos que nos foram indicados, o órgão jurisdicional francês não cometeu, ao que parece, qualquer erro de interpretação dos artigos 30._ a 36._ e 86._ do Tratado; mesmo que existisse, esse erro de interpretação não podia, para além disso, ser constitutivo de violação de princípios gerais e fundamentais de uma gravidade tal que justificasse a conclusão de ter havido violação de ordem pública.

F - Conclusão

130 Partindo as considerações supra, propomos que seja dada às questões reenviadas respostas no sentido seguinte:

«A decisão tomada por um tribunal de um Estado-Membro não pode ser considerada como infringindo a ordem pública de outro Estado-Membro, na acepção do artigo 27._, ponto 1, da Convenção de Bruxelas, pelo simples motivo de reconhecer um direito de propriedade industrial ou intelectual sobre peças soltas cuja conjunto constitui a carroçaria de um veículo automóvel já colocado no mercado e de proteger o titular desse direito exclusivo proibindo, sob pena de sanções, terceiros, designadamente operadores económicos de outro Estado-Membro, de fabricarem e de venderem essas peças soltas no Estado-Membro em que a decisão foi proferida, bem como de aí as importarem ou daí as exportarem. Isto continua a ser certo mesmo que a ordem jurídica do outro Estado-Membro - Estado requerido - não preveja esta possibilidade ou se a decisão cujo exequatur fizer uma interpretação errada do direito comunitário, pois uma violação da ordem pública só pode ser considerada existente em casos excepcionais, a saber, unicamente se tiverem sido violados princípios fundamentais do direito.»

(1) - JO 1972, L 299, p. 32; trata-se da versão alterada pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1; EE 01 F2 p. 131, e - texto alterado - p. 77), pela convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234), e pela convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1).

(2) - 53/87, Colect., p. 6039.

(3) - Acórdão CICRA e Maxicar, já referido na nota 2, n._ 10. Há que sublinhar que o direito comunitário em matéria de protecção de modelos de peças sobressalentes não foi alterado com a adopção da Directiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Outubro de 1998, relativa à protecção legal de desenhos e modelos (JO 289, p. 28), pois o artigo 14._ desta directiva exclui expressamente este domínio da harmonização.

(4) - Acórdão CICRA e Maxicar, já referido na nota 2, n.os 11 e segs.

(5) - Acórdão Cicra e Maxicar, já referido na nota 2, n._ 15.

(6) - Acórdão CICRA e Maxicar, já referido na nota 2, n._ 17.

(7) - Despacho de 28 de Março de 1984, Von Gallera (56//84, Recueil, p. 1769).

(8) - Relatório relativo à convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1979, C 59, p. 1).

(9) - Acórdão de 12 de Julho de 1984, Firma P. (178/83, Recueil, p. 3033, n._ 11).

(10) - Já referido na nota 9.

(11) - Acórdão Firma P., já referido na nota 9, n._ 11.

(12) - Despacho já referido na nota 7, n.os 3 e 5.

(13) - Acórdão de 4 de Fevereiro de 1988, Hoffmann (145/86, Colect., p. 645).

(14) - Conclusões de 12 de Dezembro de 1996, apresentadas pelo advogado-geral Jacobs no processo que deu origem ao acórdão de 27 de Fevereiro de 1997 (C-220/95, Colect., p. I-1147).

(15) - Já referidas na nota 14.

(16) - Acórdão referido na nota 13.

(17) - Acórdão já referido na nota 13.

(18) - Acórdão de 11 de Agosto de 1995, SISRO (C-432/93, Colect., p. I-2269, n._ 39).

(19) - Acórdão de 10 de Outubro de 1996, Hendrikman e Feyen (C-78/95, Colect., p. I-4943), e acórdão Hoffmann, já referido na nota 13.

(20) - Já referidas na nota 14.

(21) - Relatório sobre os protocolos relativos à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção de 29 de Fevereiro de 1968 relativa ao reconhecimento mútuo das sociedades e pessoas morais e da convenção (JO 1979, C 59, p. 66).

(22) - Relatório Jenard, p. 46, a propósito do artigo 29._ (já referido na nota 8).

(23) - Conclusões do advogado-geral M. Darmon, apresentadas em 2 de Dezembro de 1992 no processo que levou ao acórdão de 21 de Abril de 1993, Sonntag (C-172/91, Colect., p. I-1963, n.os 70 e segs. das conclusões).

(24) - Relatório Jenard, p. 44, a propósito do artigo 27._

(25) - Acórdão de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck (C-312/93, Colect., p. I-4599, n._ 12).

(26) - Assim aconteceria, no caso em apreço, se ele se pronunciasse de modo diferente sobre o mesmo objecto ou se se apoiasse em premissas incompatíveis com a força de caso julgado ou os efeitos da decisão italiana.

(27) - Acórdão já referido na nota 13, n._ 21.

(28) - Acórdão já referido na nota 2.

(29) - Acórdão de 27 de Março de 1963, Da Costa e o. (28/62 a 30/62, Colect., p. 233).

(30) - Acórdão de 6 de Outubro de 1982, Cilfit e o. (283/81, Recueil, p. 3415).

(31) - Acórdão de 13 de Julho de 1995 Espanha/Conselho (C-350/92, Colect., p. I-1985).

(32) - Acórdão de 6 de Abril de 1995, RTE e ITP/Comissão (C-241/91 P e C-242/91 P, Colect., p. I-743, a seguir «acórdão Magill»).

(33) - Acórdão de 17 de Maio de 1994, Corsica Ferries (C-18/93, Colect., p. I-1783).

(34) - Acórdão já referido na nota 2.

(35) - Acórdão já referido na nota 2, n._ 10.

(36) - Acórdão já referido na nota 2, n._ 13.

(37) - V. nota 3.

(38) - Acórdãos de 18 de Fevereiro de 1992, Comissão/Itália (C-235/89, Colect., p. I-777), e Espanha/Comissão, já referido na nota 31.

(39) - Acórdãos de 18 de Fevereiro de 1992, Comissão/Reino Unido (C-30/90, Colect., p. I-829), e Comissão/Itália, já referido na nota 38.

(40) - Acórdão Comissão/Reino Unido, já referido na nota 39.

(41) - Acórdão Comissão/Reino Unido, já referido na nota 39, n._ 18. O artigo 222._ do Tratado CE, mencionado na citação, passou a ser o artigo 295._ CE.

(42) - Acórdão Comissão/Reino Unido, já referido na nota 39, n._ 19.

(43) - Acórdão já referido na nota 2, n._ 12.

(44) - Acórdão já referido na nota 39, n._ 6.

(45) - Acórdão já referido na nota 31.

(46) - Acórdão já referido na nota 31, n._ 22.

(47) - 55/80 e 57/80, Recueil, p. 147.

(48) - Acórdão já referido na nota 47, n._ 9.

(49) - Já referido na nota 32.

(50) - Acórdão de 5 de Outubro de 1978 (238/87, Colect., p. 6211).

(51) - Já referido na nota 32, n._ 50.

(52) - Regulamento da Comissão, de 28 de Junho de 1995, relativo à aplicação do n._ 3 do artigo 85._ do Tratado CE [actual artigo 81._, n._ 3, CE] a certas categorias de acordos de distribuição e de serviço de venda e pós-venda de veículos automóveis (JO L 145, p. 25).

(53) - Acórdão já referido na nota 50.

(54) - Acórdão já referido na nota 50, n._ 8.

(55) - Acórdão Magill, já referido na nota 32, n._ 6 e segs.

(56) - Acórdão Magill, já referido na nota 32, n._ 28.

(57) - Acórdão de 17 de Outubro de 1990, Hag II (C-10/89, Colect., p. I-3711).

(58) - Acórdão Magill, já referido na nota 32, n._ 49.

(59) - Acórdão Magill, já referido na nota 32, n._ 50.

(60) - Acórdão Volvo, já referido na nota 50, n._ 8.

(61) - Acórdão Magill, já referido na nota 32, n._ 52.

(62) - Artigo 14._ da Directiva 98/71.

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