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Document 61998CC0275

    Conclusões do advogado-geral Alber apresentadas em 8 de Julho de 1999.
    Unitron Scandinavia A/S e 3-S A/S, Danske Svineproducenters Serviceselskab contra Ministeriet for Fødevarer, Landbrug og Fiskeri.
    Pedido de decisão prejudicial: Klagenævnet for Udbud - Dinamarca.
    Contratos públicos de fornecimento - Directiva 93/36/CEE - Adjudicação de contratos públicos de fornecimento por uma entidade que não seja uma entidade adjudicante.
    Processo C-275/98.

    Colectânea de Jurisprudência 1999 I-08291

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1999:384

    61998C0275

    Conclusões do advogado-geral Alber apresentadas em 8 de Julho de 1999. - Unitron Scandinavia A/S e 3-S A/S, Danske Svineproducenters Serviceselskab contra Ministeriet for Fødevarer, Landbrug og Fiskeri. - Pedido de decisão prejudicial: Klagenævnet for Udbud - Dinamarca. - Contratos públicos de fornecimento - Directiva 93/36/CEE - Adjudicação de contratos públicos de fornecimento por uma entidade que não seja uma entidade adjudicante. - Processo C-275/98.

    Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-08291


    Conclusões do Advogado-Geral


    A - Introdução

    1 O presente pedido de decisão prejudicial incide sobre duas questões relativas ao domínio dos contratos públicos. Por um lado, coloca-se a questão de saber qual a qualificação jurídica que deve ser atribuída a uma cláusula de não discriminação (proibição de discriminação em razão da nacionalidade) prevista numa directiva relativa aos processos de adjudicação de contratos públicos de fornecimento e, por outro lado, se essa regra de não discriminação obriga também um organismo que não é uma entidade adjudicante a organizar um processo de concurso correspondente ao da directiva para adjudicação dos contratos (públicos) de fornecimento a terceiros.

    2 A disposição controvertida consta do artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36/CE (1), que tem a seguinte redacção:

    «Quando uma entidade adjudicante, na acepção da alínea b) do artigo 1._ (2), conferir a entidades diferentes das entidades adjudicantes, independentemente do respectivo estatuto jurídico, direitos especiais ou exclusivos de exercício de actividades de serviço público, o acto pelo qual tais direitos são conferidos deve prescrever que a entidade em questão terá de respeitar, na adjudicação a terceiros de contratos públicos de fornecimento no âmbito dessa actividade, o princípio da não discriminação por razões de nacionalidade.»

    B - Matéria de facto

    3 O processo principal incide sobre um processo de adjudicação relativo a marcas auriculares para suínos. As recorrentes no processo principal, a Unitron Scandinavia A/S e 3-S A/S e a Danske Svineproducenters Serviceselskab (a seguir «recorrentes no processo principal»), pretendiam fornecer estas marcas. O recorrido no processo principal, o Ministeriet för Fødevarer, Landbrug og Fiskeri (Ministério da Alimentação, Agricultura e Pescas dinamarquês, a seguir «ministério»), tem a «responsabilidade principal» pelo regime dinamarquês de marcação dos suínos. O processo de adjudicação impugnado pelas recorrentes no processo principal foi organizado pela Veterinædirektoratet (direcção-geral da veterinária) - dependente do ministério - e pelos Danske Slagterier (matadouros dinamarqueses), uma instituição privada.

    4 Os regimes de marcação dos animais foram estabelecidos pela Directiva 92/102/CEE do Conselho (3) com vista a combater as doenças que afectam os animais. Os Estados-Membros devem para este efeito criar uma autoridade central competente incumbida de efectuar os controlos veterinários. Esta autoridade deve dispor de uma lista abrangendo todas as explorações onde existam animais na acepção desta directiva. No que se refere aos suínos, está previsto que antes de estes deixarem a exploração em que nasceram sejam marcados com uma marca auricular ou uma tatuagem quer permita ulteriormente determinar a sua exploração de origem. O decreto dinamarquês que transpôs a directiva (4) precisa que as marcas auriculares para suínos devem ser aprovadas pela autoridade veterinária, que depende do ministério. Estas marcas auriculares são depois vendidas às explorações por intermédio dos Danske Slagterier, uma instituição privada ligada às organizações agrícolas dinamarquesas. A autoridade veterinária fixa o preço das marcas auriculares e todos os fornecimentos destas marcas são inscritos no registo central dos animais domésticos do Ministério da Agricultura.

    5 Segundo as indicações contidas no despacho de reenvio, são utilizados na Dinamarca dois tipos de marcas auriculares, umas para os animais abatidos e outras para os animais vivos. As marcas auriculares utilizadas para estes últimos são encomendadas pelos criadores aos Danske Slagterier, que transmitem a encomenda aos fornecedores de marcas os quais enviam as marcas auriculares directamente aos criadores. Os criadores efectuam os seus pagamentos aos Danske Slagterier. As marcas auriculares destinadas aos animais abatidos, em contrapartida, são encomendadas directamente pelos criadores ao fornecedor que as envia e disso informa os Danske Slagterier. Os criadores enviam os seus pagamentos para estas marcas auriculares também aos Danske Slagterier. O preço dos dois tipos de marcas auriculares baseia-se nos preços pedidos pelos fornecedores acrescidos de um montante de 0,5 DKR por marca. São os Danske Slagterier quem se encarrega de registar os suínos no registo central dos animais domésticos, tarefa pela qual as autoridades veterinárias lhes pagam 400 000 DKR.

    6 Em 1993/1994 foi aberto o primeiro concurso para o fornecimento de marcas auriculares. As condições particulares do concurso foram elaboradas em colaboração pela Veterinædirektorat e pelos Danske Slagterier, ficando estes últimos incumbidos de gerir o processo de concurso. O processo de concurso seguiu os seus trâmites em conformidade com as disposições legais dinamarquesas. No fim de 1996 foi organizado um novo concurso a solicitação do ministério. Uma das empresas que já assegurava o fornecimento das marcas auriculares foi de novo designada como adjudicatária. A escolha da segunda empresa incidiu sobre um fornecedor que ainda não tinha obtido qualquer contrato deste tipo. Foram celebrados contratos com as duas empresas com uma duração de três anos a decorrer a partir de 1 de Abril de 1997. Este processo também seguiu os seus trâmites em conformidade com as disposições legais dinamarquesas. Entre Outubro de 1997 e Abril de 1998 teve lugar um novo concurso, o primeiro a ser organizado em conformidade com o processo previsto na Directiva 93/36.

    7 Tendo sido preteridas no termo do processo do concurso de 1996/1997, as recorrentes no processo principal apresentaram uma reclamação contra o ministério na Klagenævnet for Udbud (a instância de recurso). Alegaram no processo que os Danske Slagterier deviam ser equiparados a uma entidade adjudicante na acepção do artigo 1._ da Directiva 93/36 relativamente às suas aquisições de marcas auriculares, de forma que devia consequentemente aplicar-se a directiva. Os Danske Slagterier gerem o regime das marcas auriculares no interesse geral e, na realidade, intervêm em lugar do ministério. O contrato deveria portanto ter sido objecto de uma adjudicação pública em conformidade com a Directiva 93/36. Alegaram a título subsidiário que o artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 deveria ter sido aplicado e que o ministério deveria ter informado os Danske Slagterier de que não era permitido tratar de forma diferente os concorrentes em razão da nacionalidade, de modo que neste caso o concurso também deveria ter sido objecto de uma publicação em toda a União Europeia.

    8 O ministério sustentou no processo que o caso presente não diz respeito à adjudicação de contratos públicos de fornecimento, de forma que a Directiva 93/36 não devia aplicar-se. Na realidade, os fornecedores vendem as marcas auriculares aos criadores. Os Danske Slagterier têm por única missão gerir o sistema e o ministério limitou-se a aprovar as marcas auriculares e a pagar um determinado montante pela gestão do sistema. Assim, a aquisição das marcas auriculares não teve lugar a título público.

    9 A Klagenævnet for Udbud partiu da ideia de que os Danske Slagterier compram as marcas auriculares controvertidas. Esta situação resulta do facto de os Danske Slagterier terem organizado o processo de concurso, de os criadores terem encomendado as marcas auriculares aos Danske Slagterier e de lhes terem pago os dois tipos de marcas auriculares. Além disso, a Klagenævnet for Udbud parte da ideia de que os Danske Slagterier não são uma entidade adjudicante na acepção do artigo 1._, alínea b), da Directiva 93/36, uma vez que a sua actividade não é financiada em mais de 50% por recursos públicos.

    10 A Klagenævnet for Udbud declara além disso que uma vez que o ministério cedeu a gestão do sistema de marcas auriculares assim como a aquisição destas marcas a uma empresa ou a um organismo privado - os Danske Slagterier -, este serviço como tal deveria ter sido objecto de adjudicação pública. Assim, a adjudicação deste contrato deveria ter sido realizada em conformidade com a Directiva 93/36 relativa aos contratos de fornecimento e não em aplicação da Directiva 92/50/CEE (5) relativa aos contratos públicos de serviços. Esta conclusão impõe-se porque, segundo as informações de que a Klagenævnet for Udbud dispõe, o valor das aquisições de marcas auriculares excede o valor do serviço em causa.

    11 A Klagenævnet for Udbud, que submeteu as questões, interroga-se no quadro do litígio que lhe foi submetido se as disposições do artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 têm um alcance autónomo. A Klagenævnet for Udbud considera que é possível que esta disposição (6) tenha perdido o seu alcance autónomo uma vez que já tinha sido adoptada uma directiva sobre a adjudicação de contratos de serviços, a saber, a Directiva 92/50. Considera todavia que também é possível que a disposição em causa tenha conservado o seu alcance autónomo uma vez que, apesar das alterações introduzidas pela Directiva 93/36, a disposição do artigo 2._, n._ 2, foi mantida.

    12 A Klagenævnet for Udbud pergunta em segundo lugar em que consiste este alcance autónomo, uma vez que os interesses que devem ser protegidos no caso concreto pelo artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 (os contratos de fornecimento) são os que estavam abrangidos pela Directiva 92/50 (contratos públicos de serviços). Assim, pretende saber quanto a este ponto em que medida o princípio da não discriminação deve ser respeitado quando da adjudicação de contratos públicos de fornecimento e se esta disposição tem como consequência que uma instituição que não é uma entidade adjudicante também tem que organizar um processo de concurso público quando o valor do contrato ultrapassa o limiar previsto na Directiva 93/36. Assim, este ponto não diz respeito à questão de saber se o ministério deve ele próprio organizar o processo em conformidade com a directiva, mas se os Danske Slagterier deveriam ter aplicado este processo.

    13 A Klagenævnet for Udbud submeteu assim as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

    «1) O artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 do Conselho relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento, continua a ter um significado autónomo após a adopção da Directiva 92/50 do Conselho relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (ambas alteradas pela Directiva 97/52 do Parlamento Europeu e do Conselho)?

    2) Caso a resposta à questão 1 seja afirmativa, a disposição implica que nos casos em que uma entidade adjudicante delega a gestão de um sistema de marcas auriculares para suínos numa empresa privada, que não é uma entidade adjudicante, deve prescrever, por um lado, que a empresa deve respeitar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade nos contratos de fornecimento que celebra com terceiros e, por outro lado, que a aquisição de mercadorias que estão ligadas ao sistema deve ser objecto de concurso público quando o valor dos fornecimentos ultrapassar o valor de limiar da Directiva 93/36 do Conselho?»

    14 O ministério recorrido - que, aliás, considera as questões prejudiciais inadmissíveis - e a Comissão participaram no processo no Tribunal de Justiça. Ambos apresentaram articulados e prescindiram da fase oral. No quadro da análise irão ser apreciados na medida do necessário os argumentos das partes.

    C - Análise

    1. Admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

    a) A Klagenævnet for Udbud é um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE)?

    15 Coloca-se antes de mais a questão de saber se a Klagenævnet for Udbud deve ser considerada um «órgão jurisdicional» na acepção do artigo 177._ do Tratado e, portanto, se a questão prejudicial é admissível.

    16 Tanto o ministério como a Comissão respondem afirmativamente a esta questão. Remetendo para a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, invocam a instituição por lei da Klagenævnet for Udbud, o seu carácter permanente, o processo contraditório, a aplicação de normas de direito por este órgão e a sua independência. Estes elementos têm como consequência que a Klagenævnet for Udbud é um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177._ do Tratado.

    17 A Klagenævnet for Udbud foi criada - segundo as suas próprias indicações - pela Lei n._ 344, de 6 de Junho de 1991. Foi instituída nomeadamente no quadro da transposição da Directiva 89/665/CEE que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos (7). O processo na Klagenævnet for Udbud é regido pelas mesmas regras que as aplicáveis em processos cíveis. Aplica um processo contraditório que dá lugar em quase todos os casos a uma audiência. Os processos terminam por uma decisão que toma a forma de um despacho. Estes despachos assumem a mesma forma de uma decisão em matéria cível. A Klagenævnet for Udbud não está dependente de quaisquer ordens superiores e exerce as suas funções como órgão independente, é composta por um juiz que desempenha a função de presidente e vários membros peritos. As decisões da Klagenævnet for Udbud incidem sobre a interpretação das disposições comunitárias em matéria de contratos de fornecimento de direito público e têm portanto valor jurisprudencial. A Klagenævnet for Udbud é competente para declarar a nulidade de medidas administrativas. Além disso, é competente para se pronunciar em última instância na Dinamarca sobre a interpretação e a aplicação das disposições comunitárias em matéria de adjudicação de contratos de direito público. A Klagenævnet for Udbud conclui daí, portanto, que tem a qualidade de «órgão jurisdicional» na acepção do artigo 177._ do Tratado.

    18 Esta conclusão merece acolhimento. O Tribunal de Justiça já declarou por várias vezes que, para apreciar se o órgão de reenvio tem a natureza de órgão jurisdicional na acepção do artigo 177._ do Tratado, questão que depende unicamente do direito comunitário, devem ter-se em conta elementos tais como a origem legal do órgão, a sua permanência, o carácter obrigatório da sua jurisdição, a aplicação de regras de direito, o carácter obrigatório das suas decisões, a independência dos seus membros e a aplicação de um processo contraditório (8). Dado que a Klagenævnet for Udbud preenche as condições enunciadas pelo Tribunal de Justiça no quadro da sua jurisprudência, é um «órgão jurisdicional» na acepção do artigo 177._ do Tratado. Pelo menos deste ponto de vista o seu pedido de decisão prejudicial é admissível.

    b) Quanto à relevância da questão prejudicial

    19 O ministério recorrido considera no entanto que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível, na medida em que a resposta às questões não é necessária para a decisão a proferir pela Klagenævnet for Udbud. As respostas não contribuirão para a solução do litígio no processo principal. É certo que compete ao tribunal de reenvio decidir se um pedido de decisão prejudicial é necessário e pertinente mas, tendo a questão no caso em apreço um carácter puramente hipotético, o reenvio prejudicial é inadmissível. A interpretação do artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 pedida pela Klagenævnet for Udbud em nada altera a situação jurídica das recorrentes no processo principal. Não existe no caso vertente qualquer interesse a proteger juridicamente. Na realidade está-se perante questões que poderiam colocar-se num litígio ulterior. Em qualquer hipótese, as empresas não serão de modo algum auxiliadas pela resposta dada pelo Tribunal de Justiça às questões, na medida em que um eventual erro de processo na adjudicação do contrato controvertido foi entretanto regularizado. O processo de adjudicação mais recente, organizado em 1997/1998, seguiu os seus trâmites em conformidade com a Directiva 93/36 (contratos públicos de fornecimentos). As recorrentes no processo principal poderiam, assim, unicamente propor uma acção de indemnização, mas a Klagenævnet for Udbud não é todavia competente para conhecer deste género de processos, que também não é o objectivo do processo principal.

    20 Resulta do artigo 177._ do Tratado que são os órgãos jurisdicionais nacionais quem decide se é necessário submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. O artigo 177._ do Tratado não confere competência ao Tribunal de Justiça para se recusar a responder a um pedido de decisão prejudicial. O Tribunal de Justiça tem assim confirmado a jurisprudência constante de que é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, que são chamados a conhecer do litígio e aos quais cabe a responsabilidade pela decisão a proferir, apreciar, tendo em conta as particularidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poderem proferir a sentença como a pertinência das questões submetidas ao Tribunal (9). O facto de o órgão jurisdicional nacional, que dispõe de um conhecimento directo e preciso das circunstâncias de facto, ser quem está melhor colocado para decidir esta questão milita em particular em favor desta solução. Se as questões colocadas por um órgão jurisdicional nacional dizem respeito à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça está em princípio obrigado a pronunciar-se.

    21 Contudo, também tem acontecido que, em certos casos, o Tribunal de Justiça tenha admitido excepções a este princípio e tenha recusado responder a algumas das questões que lhe foram submetidas. Trata-se em primeiro lugar, quanto a este ponto, dos casos em que o órgão jurisdicional de reenvio não forneceu ao Tribunal de Justiça todas as informações de que este necessitava para proferir uma decisão com todo o conhecimento de causa. Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça tem recusado num certo número de casos responder às questões colocadas quando estas não têm manifestamente qualquer relação com o litígio no processo principal. Em terceiro lugar, devem assinalar-se os casos em que o Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de decisão prejudicial porque considerou que o tribunal nacional abusava do processo do artigo 177._ do Tratado. Nestes casos, o Tribunal de Justiça considerou que as questões prejudiciais colocadas eram gerais e hipotéticas.

    22 A argumentação desenvolvida pelo ministério incide sobre as duas últimas categorias referidas.

    23 Resulta contudo do despacho de reenvio que a Klagenævnet for Udbud foi levada no caso vertente a colocar as questões prejudiciais devido à argumentação desenvolvida pelas recorrentes no processo principal. A Klagenævnet for Udbud considera que é possível que os processos de adjudicação organizados estejam afectados por erros processuais que poderiam implicar a sua nulidade. Com efeito, se resultasse das disposições invocadas pela Klagenævnet for Udbud que deveria ter sido organizado um processo de adjudicação pública em conformidade com as disposições da Directiva 93/36, aquele órgão jurisdicional deveria anular o processo que teve lugar. Contudo, dado que, entretanto tem dúvidas em especial sobre a interpretação do artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36, submeteu duas questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.

    24 Resulta destes elementos que a Klagenævnet for Udbud julgou necessário submeter estas questões ao Tribunal de Justiça para poder proferir a sua decisão no litígio principal. Contrariamente à concepção defendida pelo ministério, o despacho de reenvio não permite concluir que as questões colocadas no caso vertente sejam puramente hipotéticas e possam dizer respeito a um litígio ulterior. Dado que o órgão de reenvio confirmou e fundamentou desta forma a pertinência das questões prejudiciais colocadas, estas são admissíveis.

    2. Quanto à primeira questão prejudicial

    25 Com a sua primeira questão, a Klagenævnet for Udbud pretende saber se o artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 (contratos de fornecimento) tem um alcance autónomo. Considera que esta questão poderá receber uma resposta negativa. Esta disposição foi reproduzida do artigo 2._, n._ 3, da Directiva 77/62 e deve ser entendida tendo em conta o facto de, quando foi adoptada, ainda não existir qualquer regime comunitário sobre a adjudicação dos contratos públicos de serviços. É portanto possível que a disposição controvertida tenha perdido o seu alcance inicialmente autónomo quando a Directiva 92/50 (contratos públicos de serviços) foi adoptada. Todavia, a Klagenævnet for Udbud considera além disso que a disposição controvertida tem um alcance autónomo, ao lado da Directiva 92/50, porque, quando a Directiva 93/36 foi adoptada, a referida disposição controvertida foi precisamente mantida.

    26 O ministério, que só tomou posição sobre as questões prejudiciais a título subsidiário, sustenta também que o artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 tem um alcance autónomo. Uma comparação com a primeira Directiva 77/62 revela que esta disposição foi sempre mantida apesar de diversas alterações. Os trabalhos preparatórios e as propostas relativas à Directiva 93/36 não revelam que o artigo 2._, n._ 2, tenha perdido o seu alcance autónomo em virtude da adopção da Directiva 92/50. Esta disposição não deve ser entendida unicamente como uma «reminiscência do passado».

    27 A Comissão observa antes de mais na sua alegação que, perante as circunstâncias de facto descritas pela Klagenævnet for Udbud, tanto a Directiva 93/36 (contratos públicos de fornecimento) como a Directiva 92/50 (contratos públicos de serviços) poderiam aplicar-se. Resulta dos trabalhos preparatórios e das propostas relativas à Directiva 93/36 que esta não devia alterar fundamentalmente a directiva anterior. A sua adopção foi necessária para proceder a adaptações da Directiva 92/50, que se repercutem também na Directiva 93/37/CEE (10). Todavia, o artigo 2._, n._ 2, também não foi afectado. Apesar das alterações, encontra-se novamente na Directiva 93/36 e garante o respeito da proibição de discriminação, mesmo que a Directiva 92/50 não fosse de aplicar. Isto sucede em particular na hipótese de contratos de concessão. Deve, pois, partir-se do princípio que o artigo 2._, n._ 2, tem um alcance autónomo.

    28 Em conclusão, os argumentos do ministério e da Comissão merecem acolhimento. A disposição do artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 encontra-se já com uma redacção similar na Directiva 77/62 que foi adoptada como primeira directiva relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de fornecimento. O artigo 2._, n._ 3, da Directiva 77/62 também contém a disposição controvertida. A única alteração que esta disposição conheceu durante todo este tempo diz respeito unicamente ao conceito de entidade adjudicante. A essência da disposição permaneceu contudo a mesma. Assim, por força das duas disposições, um acto jurídico pelo qual uma entidade adjudicante atribui um direito especial a uma instituição que não é uma entidade adjudicante deve especificar que a referida instituição tem que respeitar o princípio da não discriminação quando da adjudicação de contratos públicos de fornecimento. O artigo 3._, n._ 2, da Directiva 92/50 (contratos públicos de serviços) também contém, é certo, uma cláusula que proíbe qualquer discriminação; todavia, esta especifica apenas que a entidade adjudicante assegurará «que não se verifique qualquer discriminação entre os vários prestadores de serviços». Todavia, como revela o seu título, esta directiva aplica-se em particular aos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços enquanto a Directiva 93/36 regula os processos de adjudicação de contratos públicos de fornecimento.

    29 Contudo, é inteiramente possível prever a hipótese de casos concretos nos quais, para além da Directiva 93/36 (contratos públicos de fornecimento), também a Directiva 92/50 (contratos públicos de serviços) poderá ser aplicável. Tal poderá ser nomeadamente o caso de um contrato que implique ao mesmo tempo serviços e fornecimentos. Se o essencial do contrato incidir todavia sobre o fornecimento de mercadorias, a Directiva 92/50 deixará então de ser aplicável. A cláusula de não discriminação do seu artigo 3._, n._ 2, não terá então qualquer efeito. Em tal caso, surge contudo o alcance autónomo do artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36. Poderá não obstante também prever-se a hipótese de um caso concreto que incida sobre a adjudicação de contratos públicos de serviços, mas no qual estes contratos poderão ser cedidos no quadro de um contrato de concessão. A Directiva 92/50 e a sua cláusula de não discriminação também não serão então aplicáveis, enquanto a aplicação da Directiva 93/36 não será afectada. Nestas circunstâncias, a cláusula de não discriminação do artigo 2._, n._ 2, produz novamente os seus efeitos.

    30 Dado que nem os trabalhos preparatórios nem as propostas relativas à Directiva 93/36 revelam contudo que a disposição do artigo 2._, n._ 2, não tenha qualquer alcance autónomo, é preciso partir do princípio de que esta disposição deve continuar a aplicar-se ao lado da Directiva 92/50.

    3. Quanto à segunda questão prejudicial

    31 Com a sua segunda questão, a Klagenævnet for Udbud pede ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 na hipótese de a mesma ter um alcance autónomo. Interroga-se quanto a este ponto em particular sobre o conteúdo desta disposição e pergunta, por um lado, se uma entidade adjudicante que cede direitos especiais a uma empresa privada que não é ela própria uma entidade adjudicante a deve obrigar a respeitar a cláusula de não discriminação e se, por outro lado, esta empresa privada deve aplicar o processo de adjudicação de contratos públicos.

    32 O ministério considera que o contrato pelo qual são concedidos direitos especiais deve conter a cláusula de não discriminação do artigo 2._, n._ 2. Assim, mesmo que o processo de adjudicação não seja conforme com a directiva, o respeito do princípio da não discriminação será pelo menos garantido. É desta forma evidente que os particulares também devem respeitar esta proibição no âmbito da adjudicação de contratos públicos de fornecimento. O artigo 2._, n._ 2, não prevê contudo que a empresa à qual foram cedidos direitos especiais deva em qualquer hipótese organizar um processo de concurso público.

    33 Segundo a Comissão, o artigo 2._, n._ 2, obriga a entidade adjudicante que confere direitos especiais a uma instituição a chamar a atenção desta para a cláusula de não discriminação e assegurar que a mesma seja respeitada. O artigo 2._, n._ 2, não permite deduzir que esta instituição tenha a obrigação mais ampla de organizar um processo de concurso.

    34 Deve antes de mais sublinhar-se no quadro desta análise que as disposições da Directiva 93/36 relativas ao processo de adjudicação não se aplicam no caso vertente aos Danske Slagterier. O limiar previsto no artigo 5._ da Directiva 93/36 foi ultrapassado de modo que, perante o valor do contrato, a directiva deveria aplicar-se. Todavia, os Danske Slagterier não são uma entidade adjudicante. As vendas de marcas auriculares também não são realizadas em nome ou por conta das autoridades dinamarquesas. Não existe quanto a este aspecto qualquer ligação financeira entre os fornecedores das marcas auriculares e as autoridades. Assim, no que se refere ao processo de adjudicação de contratos públicos de fornecimento, a directiva não é nesta medida aplicável em circunstâncias como as do caso vertente.

    35 Todavia, para que seja garantido também fora do campo de aplicação propriamente dito da directiva o princípio fundamental da não discriminação em direito comunitário, o artigo 2._, n._ 2, impõe à entidade adjudicante uma ligação entre a concessão de direitos especiais a outras instituições e o respeito desta proibição. Não se pode deduzir do artigo 2._, n._ 2, que este permita impor para além disso o respeito das disposições relativas à adjudicação dos contratos públicos. Aliás, uma comparação com as duas outras directivas relativas à adjudicação dos contratos públicos mostra que não é possível interpretar a disposição controvertida de forma mais ampla. Tanto a Directiva 93/37 como a Directiva 92/50 obrigam (unicamente) os Estados-Membros a tomarem as medidas necessárias para que as entidades adjudicantes respeitem as disposições destas directivas. Assim sucede, nomeadamente, no que se refere à cláusula de não discriminação contida em cada uma delas.

    36 No que caso vertente, resulta já da redacção do artigo 2._, n._ 2, que só a entidade adjudicante tem a obrigação de assegurar que a instituição à qual confere direitos especiais respeite a cláusula de não discriminação. Desta forma, evita-se também que neste domínio diversos subcontratantes sejam tratados de forma desigual em razão da sua nacionalidade. A directiva tem como fundamento e objectivo realizar a livre circulação de mercadorias no domínio dos contratos públicos de fornecimento que são adjudicados nos Estados-Membros por conta do Estado, das autarquias locais e dos outros organismos de direito público. Para atingir este objectivo, a directiva faz depender a adjudicação dos contratos públicos de fornecimento por uma entidade adjudicante de um processo especial. Todas as condições processuais são especificadas nas disposições da directiva. Em contrapartida, não resulta do artigo 2._, n._ 2, considerado isoladamente, que as instituições às quais foram conferidos direitos especiais mas que não são entidades adjudicantes devam organizar um processo para adjudicação de contratos públicos de fornecimento, tal como está previsto na Directiva 93/36, mas simplesmente que devem respeitar o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade.

    37 Daqui resulta que o artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36 obriga unicamente a entidade adjudicante a ligar a concessão de direitos especiais a uma instituição ao respeito por esta da cláusula de não discriminação.

    D - Conclusão

    38 Perante as considerações acima expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da forma seguinte às questões prejudiciais:

    «1) O artigo 2._, n._ 2, da Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento, manteve o seu alcance autónomo, independentemente da entrada em vigor da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços.

    2) Quando uma entidade adjudicante na acepção da Directiva 93/36 confere a uma entidade adjudicante, seja qual for o seu estatuto jurídico, direitos especiais ou exclusivos para exercer uma actividade de serviço público, o acto pelo qual este direito é concedido deve estipular que a entidade em causa deve respeitar, no que se refere aos contratos públicos de fornecimento que celebra com terceiros, o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade. O artigo 2._, n._ 2, não comporta a obrigação suplementar para a entidade adjudicante de assegurar que esta instituição, que não é uma entidade adjudicante, aplique o processo de adjudicação de contratos públicos de fornecimento.»

    (1) - Directiva do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento (JO L 199, p. 1).

    (2) - O artigo 1._, alínea b), da Directiva 93/36 tem a seguinte redacção: «São consideradas entidades adjudicantes: o Estado, as autarquias locais e regionais, os organismos de direito público e as associações formadas por uma ou mais autarquias locais ou regionais ou um ou mais desses organismos de direito público. Entende-se por organismo de direito público qualquer organismo: - criado para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, - dotado de personalidade jurídica e - cuja actividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público, cuja gestão esteja sujeita a um controlo por parte destes últimos ou cujos órgãos de administração, de direcção ou de fiscalização sejam compostos, em mais de metade, por membros designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público.»

    (3) - Directiva de 27 de Novembro de 1992, relativa à identificação e ao registo de animais (JO L 355, p. 32).

    (4) - A Directiva 92/102 foi em primeiro lugar transposta na Dinamarca pelo Decreto n._ 80, de 15 de Fevereiro de 1993, que veio a ser substituído pelo Decreto n._ 1073, de 15 de Setembro de 1995, relativo à marcação e ao registo dos bovinos, suínos, ovinos e caprinos.

    (5) - Directiva do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1).

    (6) - Esta disposição já estava redigida de maneira quase similar no artigo 2._, n._ 3, da Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coordenação dos processos de celebração dos contratos de fornecimento de direito público (JO L 1977, 13, p. 1; EE 17 F1 p. 29).

    (7) - Directiva do Conselho de 21 de Dezembro de 1989 (JO L 395, p. 33).

    (8) - Acórdãos de 30 de Junho de 1966, Vaassen-Göbbels (61/65, p. 377, Colect., p. 401); de 27 de Abril de 1994, Almelo e o. (C-393/92, Colect., p. I-1477), e de 17 de Setembro de 1997, Dorsch Consult (C-54/96, Colect., p. I-4961, n._ 23).

    (9) - V., por exemplo, acórdão de 3 de Março de 1994, Eurico Italia e o. (C-332/92, C-333/92 e C-335/92, Colect., p. I-711, n._ 17).

    (10) - Directiva do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, p. 54).

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