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Document 61995CJ0265

    Acórdão do Tribunal de 9 de Dezembro de 1997.
    Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa.
    Livre circulação de mercadorias - Produtos agrícolas - Entraves resultantes de actos de particulares - Obrigações dos Estados-Membros.
    Processo C-265/95.

    Colectânea de Jurisprudência 1997 I-06959

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1997:595

    61995J0265

    Acórdão do Tribunal de 9 de Dezembro de 1997. - Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa. - Livre circulação de mercadorias - Produtos agrícolas - Entraves resultantes de actos de particulares - Obrigações dos Estados-Membros. - Processo C-265/95.

    Colectânea da Jurisprudência 1997 página I-06959


    Sumário
    Partes
    Fundamentação jurídica do acórdão
    Decisão sobre as despesas
    Parte decisória

    Palavras-chave


    1 Livre circulação de mercadorias - Entraves resultantes de actos de particulares - Obrigações dos Estados-Membros - Adopção de medidas para assegurar a livre circulação das mercadorias - Margem de apreciação dos Estados-Membros - Fiscalização pelo Tribunal de Justiça

    (Tratado CE, artigos 5._ e 30._)

    2 Livre circulação de mercadorias - Organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas - Entraves resultantes de actos de particulares - Obrigações dos Estados-Membros - Adopção de medidas para assegurar a livre circulação das mercadorias - Medidas manifestamente insuficientes atendendo à frequência e à gravidade dos incidentes - Incumprimento - Justificação baseada em dificuldades internas - Admissibilidade - Condições - Justificação baseada na indemnização dos prejuízos causados às vítimas, ou em motivos de natureza económica ou ainda num eventual incumprimento de outro Estado-Membro - Inadmissibilidade

    (Tratado CE, artigos 5._ e 30._)

    Sumário


    3 Enquanto meio indispensável para a realização do mercado sem fronteiras internas, o artigo 30._ do Tratado não proíbe apenas as medidas de origem estatal que, em si mesmas, criem restrições ao comércio entre os Estados-Membros, mas pode igualmente ser aplicado quando um Estado-Membro se abstém de tomar as medidas requeridas para fazer face a entraves à livre circulação de mercadorias devidos a causas que não tenham origem estatal. Com efeito, o facto de um Estado-Membro se abster de agir ou de não adoptar as medidas suficientes para impedir que sejam criados obstáculos à livre circulação de mercadorias, nomeadamente por acções de particulares no seu território contra produtos originários de outros Estados-Membros, é de natureza a entravar as trocas comerciais intracomunitárias na mesma medida que uma acção desse Estado. O artigo 30._ obriga portanto os Estados-Membros não só a não adoptarem actos ou comportamentos susceptíveis de constituir um obstáculos às trocas comerciais, mas igualmente, em conjugação com o artigo 5._ do Tratado, a tomarem todas as medidas necessárias e apropriadas para assegurar no seu território o respeito da liberdade fundamental que constitui a livre circulação de mercadorias.

    Embora os Estados-Membros, que continuam a ter competência exclusiva para a manutenção da ordem pública e para a salvaguarda da segurança interna, disponham de uma margem de apreciação para determinar quais são, numa dada situação, as medidas mais aptas para eliminar os entraves à importação dos produtos e, por conseguinte, não caiba às instituições comunitárias substituir-se aos Estados-Membros para lhes indicar as medidas que devem adoptar e aplicar efectivamente para garantir a livre circulação de mercadorias no seu território, cabe ao Tribunal de Justiça verificar, nos processos em que é chamado a intervir, se o Estado-Membro em causa tomou medidas adequadas para assegurar a livre circulação de mercadorias.

    4 Um Estado-Membro não cumpre as obrigações decorrentes do artigo 30._, em conjugação com o artigo 5._ do Tratado, e dos regulamentos que regulam a organização comum de mercado dos produtos agrícolas, quando as medidas que adopta para fazer face às acções de particulares que causam obstáculos à livre circulação de certos produtos agrícolas não são manifestamente suficientes, tendo em conta a frequência e a gravidade dos incidentes em causa, para garantir a liberdade das trocas comerciais intracomunitárias de produtos agrícolas no seu território, impedindo e dissuadindo eficazmente os autores das infracções em causa de as cometer e de as repetir.

    Não justificam esse incumprimento o receio de dificuldades internas, a menos que o Estado-Membro prove que uma acção da sua parte teria sobre a ordem pública consequências a que não poderia fazer face recorrendo aos meios ao seu dispor, nem a indemnização dos prejuízos causados às vítimas, nem motivos de natureza económica, nem a alegação de uma eventual violação, por outro Estado-Membro, das regras do direito comunitário.

    Partes


    No processo C-265/95,

    Comissão das Comunidades Europeias, representada por Hendrik van Lier, consultor jurídico, e Jean-Francis Pasquier, funcionário nacional destacado no Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Carlos Gómez de la Cruz, membro do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

    demandante,

    apoiada por

    Reino de Espanha, representado por Alberto José Navarro González, director-geral da Coordenação Jurídica e Institucional Comunitária, e Rosario Silva de Lapuerta, abogado del Estado, do Serviço do Contencioso Comunitário, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada de Espanha, 4-6, boulevard E. Servais,

    Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por John E. Collins, do Treasury Solicitor's Department, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada do Reino Unido, 14, boulevard Roosevelt,

    intervenientes,

    contra

    República Francesa, representada por Jean-François Dobelle, director adjunto na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Catherine de Salins, subdirectora na mesma direcção, Anne de Bourgoing, encarregada de missão na mesma direcção, e Philippe Martinet, secretário dos Negócios Estrangeiros no mesmo ministério, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo na Embaixada de França, 8 B, boulevard Joseph II,

    demandada,

    que tem por objecto a declaração de que, ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas a fim de que acções de particulares não entravem a livre circulação de frutas e produtos hortícolas, a República Francesa não cumpriu as obrigações que decorrem das organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas e do artigo 30._ do Tratado CE, conjugado com o artigo 5._ do mesmo Tratado,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

    composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, C. Gulmann, H. Ragnemalm, M. Wathelet e R. Schintgen (relator), presidentes de secção, G. F. Mancini, J. C. Moitinho de Almeida, P. J. G. Kapteyn, J. L. Murray, D. A. O. Edward, J.-P. Puissochet, G. Hirsch e P. Jann, juízes,

    advogado-geral: C. O. Lenz,

    secretário: H. A. Rühl, administrador principal,

    visto o relatório para audiência,

    ouvidas as alegações das partes na audiência de 10 de Junho de 1997, na qual a Comissão foi representada por Hendrik van Lier e Jean-Francis Pasquier, o Reino de Espanha por Rosario Silva de Lapuerta e a República Francesa por Jean-François Dobelle e Kareen Rispal-Bellanger, subdirectora na Direcção dos Assuntos Jurídicos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

    ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 9 de Julho de 1997,

    profere o presente

    Acórdão

    Fundamentação jurídica do acórdão


    1 Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 4 de Agosto de 1995, a Comissão das Comunidades Europeias propôs, nos termos do artigo 169._ do Tratado CE, uma acção destinada a obter a declaração de que, ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas a fim de que acções de particulares não entravem a livre circulação de frutas e produtos hortícolas, a República Francesa não cumpriu as obrigações que decorrem das organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas e do artigo 30._ desse Tratado, conjugado com o artigo 5._ do mesmo Tratado.

    2 A Comissão afirma ser regularmente chamada a intervir, há mais de uma década, através de queixas que denunciam a passividade das autoridades francesas face a actos de violência cometidos por particulares e por movimentos reivindicativos de agricultores franceses contra produtos agrícolas provenientes de outros Estados-Membros. Esses actos consistem nomeadamente na intercepção de camiões que transportam tais produtos em território francês e na destruição da sua carga, em actos de violência contra os camionistas, em ameaças proferidas contra grandes supermercados franceses que põem à venda produtos agrícolas originários de outros Estados-Membros bem como na danificação dessas mercadorias expostas em estabelecimentos comerciais em França.

    3 A Comissão apurou que, a partir de 1993, certos movimentos de agricultores franceses, entre os quais uma organização denominada «Coordination rurale», lançaram uma campanha sistemática de controlo da oferta de produtos agrícolas provenientes de outros Estados-Membros, caracterizando-se, em particular, por intimidações em relação aos grossistas e retalhistas para os incitar a abastecer-se exclusivamente de produtos franceses, pela imposição de um preço mínimo de venda dos produtos em causa bem como pela organização de controlos destinados a verificar se os operadores económicos davam cumprimento às instruções dadas.

    4 Foi assim que, de Abril a Julho de 1993, em particular, morangos originários de Espanha foram alvo dessa campanha. Em Agosto e Setembro desse mesmo ano, sorte idêntica foi reservada a tomates provenientes da Bélgica.

    5 Em 1994, os morangos espanhóis, nomeadamente, foram objecto do mesmo tipo de acções de ameaças contra centros comerciais e de destruição de mercadorias e de meios de transporte, ocorrendo incidentes violentos em duas ocasiões no mesmo local no espaço de duas semanas sem que as forças da ordem presentes se tenham interposto para proteger eficazmente os camiões e as respectivas cargas.

    6 A Comissão regista ainda outros casos de vandalismo que prejudicaram em França a livre circulação de produtos agrícolas originários de Itália e da Dinamarca.

    7 Depois de se ter manifestado em várias ocasiões junto das autoridades francesas, a Comissão entendeu que a República Francesa, ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas para que acções de particulares não entravassem, através de actos delituosos, a livre circulação dos produtos agrícolas, não cumprira as obrigações decorrentes das organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas e do artigo 30._ do Tratado, conjugado com o artigo 5._ do mesmo Tratado. Em consequência, por carta de 19 de Julho de 1994, a Comissão, em conformidade com o disposto no artigo 169._ do Tratado, notificou o Governo francês para lhe apresentar, no prazo de dois meses, as suas observações quanto ao incumprimento censurado.

    8 O Governo francês respondeu, por carta de 10 de Outubro de 1994, que tinha sempre condenado firmemente os actos de vandalismo cometidos por agricultores franceses. Sublinhou que as medidas preventivas de vigilância, de protecção e de recolha de informações tinham permitido uma diminuição notável dos incidentes entre 1993 e 1994. Por outro lado, o facto de o Ministério Público fazer proceder sistematicamente a inquéritos judiciais mostra a determinação das autoridades francesas em reprimir todos os comportamentos delituosos destinados a entravar as importações de produtos agrícolas de outros Estados-Membros. Todavia, essas operações de tipo comando, levadas a cabo de maneira imprevisível por pequenos grupos muito móveis, torna extremamente difícil a intervenção das forças da ordem e explica o carácter muitas vezes infrutuoso dos processos judiciais instaurados. Finalmente, as práticas da «Coordination rurale» tendentes a regular o mercado dos produtos agrícolas pelo recurso a ameaças e a destruições constitui objecto de um processo no Conseil de la concurrence.

    9 No entanto, em 20 de Abril de 1995, novos incidentes graves ocorreram no sudoeste da França, durante os quais produtos agrícolas provenientes de Espanha foram destruídos.

    10 A Comissão emitiu, em 5 de Maio de 1995, um parecer fundamentado em conformidade com o disposto no artigo 169._, primeiro parágrafo, do Tratado. Nesse parecer, considerou que a República Francesa, ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas para que acções de particulares não entravassem a livre circulação das frutas e produtos hortícolas, não cumprira as obrigações decorrentes das organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas e do artigo 30._ do Tratado, conjugado com o artigo 5._ do mesmo Tratado, e convidou-a, em aplicação do artigo 169._, segundo parágrafo, do Tratado, a tomar as medidas indispensáveis para se conformar, no prazo de um mês, com esse parecer.

    11 Em 16 de Junho de 1995, o Governo francês sublinhou que tinha adoptado todas as medidas ao seu dispor para garantir a livre circulação de mercadorias no seu território e que os meios dissuasores instituídos tinham permitido limitar muito claramente os actos de violência cometidos em 1995. A nível nacional, foi definida entre os ministérios em causa uma acção comum de luta contra a repetição de actos de vandalismo comportando, em particular, uma vigilância reforçada e instruções de firmeza dadas aos prefeitos e às forças da ordem. Além disso, a nível local, um dispositivo de alerta comportando um regime de estreita vigilância das instalações sensíveis permitiu evitar numerosos incidentes. Embora os riscos de destruições não possam ser totalmente afastados, dado que se está perante acções pontuais imprevisíveis cujos autores é muito difícil identificar, em 1994 o tribunal correctionnel de Nîmes condenou 24 agricultores pela danificação de bens de outrem. Desde a entrada em vigor, em 1 de Março de 1994, do artigo 322._-13 do Novo Código Penal, a repressão das ameaças de danificação de bens tornou-se mais eficaz. Finalmente, o Estado responsabiliza-se pelos danos causados, tendo sido dadas instruções para acelerar a indemnização dos prejuízos sofridos pelos operadores económicos afectados.

    12 No entanto, segundo a Comissão, o Ministro da Agricultura francês declarou em 1995 que, embora desaprovasse e condenasse os actos de violência dos agricultores, não considerava de forma nenhuma a hipótese de intervenção das forças da ordem para pôr cobro a essa situação.

    13 Em 3 de Junho de 1995, três camiões transportando frutas e produtos hortícolas provenientes de Espanha foram objecto de actos de violência no sul de França, sem que as forças da ordem tenha intervindo. No princípio do mês de Julho de 1995, frutas italianas e espanholas foram de novo destruídas por agricultores franceses.

    14 A Comissão propôs então a presente acção.

    15 Por despachos de 14 e 27 de Fevereiro de 1996, o Tribunal de Justiça admitiu respectivamente o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte e o Reino de Espanha a intervir em apoio dos pedidos da Comissão.

    16 Em apoio da sua acção, a Comissão alega que o artigo 30._ do Tratado e as organizações comuns de mercado das frutas e produtos hortícolas, que se baseiam no mesmo princípio da eliminação dos obstáculos às trocas comerciais, proíbem as restrições quantitativas à importação entre os Estados-Membros e todas as medidas de efeito equivalente. Além disso, em conformidade com o disposto no artigo 5._ do Tratado, os Estados-Membros são obrigados a tomar todas as medidas susceptíveis de assegurar a execução das obrigações decorrentes desse Tratado.

    17 Por isso, a intercepção de meios de transporte e a danificação dos produtos agrícolas originários de outros Estados-Membros, da mesma forma que o clima de insegurança resultante das ameaças proferidas por diversas organizações agrícolas contra distribuidores de frutas e produtos hortícolas dessa proveniência, que, no presente caso, se verificaram em território francês, constitui um obstáculo às trocas comerciais intracomunitárias desses produtos que os Estados-Membros são obrigados a impedir adoptando as medidas apropriadas, incluindo contra os particulares que ponham em perigo a livre circulação de mercadorias.

    18 Neste caso, o facto de incidentes graves terem continuado, de ano para ano, a entravar a importação e o trânsito em França de frutas e produtos hortícolas originários de outros Estados-Membros mostra que as medidas preventivas e repressivas a que o Governo francês faz referência em sua defesa não são suficientes nem proporcionadas para dissuadir na prática os autores das infracções de as cometer e de as repetir. Além disso, resulta dos elementos de facto de que a Comissão dispõe que as autoridades francesas se abstiveram, de forma persistente, de intervir para evitar e reprimir eficazmente os actos de violência dos agricultores em França.

    19 Os Governos espanhol e do Reino Unido apoiam os pedidos da Comissão.

    20 O Governo francês afirma, em contrapartida, que a acção da Comissão é improcedente.

    21 Assim, afirma ter posto em campo, em condições análogas às aplicáveis às violações comparáveis do direito nacional, todos os meios necessários e adequados para evitar e reprimir as acções de particulares que ponham em causa a livre circulação dos produtos agrícolas. As medidas de vigilância instituídas em 1993 permitiram limitar muito claramente as acções de violência cometidas ao longo dos anos subsequentes.

    22 Todavia, tendo em conta o número considerável de camiões que transportam produtos agrícolas no território francês e a multiplicidade dos seus destinos, por um lado, bem como o carácter imprevisível das manifestações de agricultores que agem em pequenos grupos de tipo comando, por outro, o risco de destruições não pode ser totalmente afastado. Esta última razão explica igualmente que é muito difícil identificar os autores responsáveis e provar a sua participação pessoal nos actos de violência para os reprimir de forma sistemática. Desde 1994, mais seis pessoas foram no entanto condenadas ou objecto de investigações. Por outro lado, há que reconhecer às autoridades policiais um poder de apreciação para decidir se há que intervir para salvaguardar a ordem pública. De qualquer forma, o Estado indemniza as vítimas das infracções com fundamento na responsabilidade objectiva do poder público. Assim, nos anos de 1993, 1994 e 1995, foram pagos mais de 17 milhões de FF de indemnizações.

    23 O Governo demandado acrescenta que o descontentamento dos agricultores franceses se deve ao aumento sensível das exportações de produtos espanhóis desde a adesão do Reino de Espanha, que provocou uma quebra considerável dos preços, reforçada pela desvalorização competitiva da peseta e pelos preços de dumping praticados pelos agricultores espanhóis. O mercado francês das frutas e produtos hortícolas foi gravemente perturbado pelo facto de a par do período transitório previsto no momento dessa adesão não ter sido instituído nenhum mecanismo de vigilância dos preços praticados à exportação pelos produtores espanhóis. O Governo francês sublinha ainda que, longe de ter adoptado uma atitude proteccionista, deu provas, no caso em apreço, de um comportamento construtivo, tomando a iniciativa de fazer diligências no âmbito do Conselho tendentes a resolver as dificuldades do mercado das frutas e produtos hortícolas e concertando-se com as autoridades espanholas.

    24 A fim de apreciar a procedência da acção da Comissão, deve recordar-se, a título preliminar, que a livre circulação de mercadorias constitui um dos princípios fundamentais do Tratado.

    25 A este propósito, o artigo 3._, alínea c), do Tratado CE dispõe que, para os fins enunciados no artigo 2._, a acção da Comunidade comporta um mercado interno caracterizado pela abolição, entre os Estados-Membros, dos obstáculos, nomeadamente à livre circulação de mercadorias.

    26 Nos termos do artigo 7._-A, segundo parágrafo, do Tratado CE, o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação de mercadorias é assegurada de acordo com as disposições do Tratado.

    27 Este princípio fundamental é concretizado pelos artigos 30._ e seguintes do Tratado.

    28 Em particular, o artigo 30._ prevê que são proibidas, entre os Estados-Membros, as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente.

    29 Essa disposição, lida no seu contexto, deve ser compreendida como tendo por finalidade a eliminação de todos os entraves, directos ou indirectos, actuais ou potenciais, às correntes de importação no comércio intracomunitário.

    30 Enquanto meio indispensável para a realização do mercado sem fronteiras internas, o artigo 30._ não proíbe portanto apenas as medidas de origem estatal que, em si mesmas, criem restrições ao comércio entre os Estados-Membros, mas pode igualmente ser aplicado quando um Estado-Membro se abstém de tomar as medidas requeridas para fazer face a entraves à livre circulação de mercadorias devidos a causas que não tenham origem estatal.

    31 Com efeito, o facto de um Estado-Membro se abster de agir ou, eventualmente, de não adoptar as medidas suficientes para impedir que sejam criados obstáculos à livre circulação de mercadorias, nomeadamente por acções de particulares no seu território contra produtos originários de outros Estados-Membros, é de natureza a entravar as trocas comerciais intracomunitárias na mesma medida que uma acção desse Estado.

    32 O artigo 30._ obriga portanto os Estados-Membros não só a não adoptarem actos ou comportamentos susceptíveis de constituir um obstáculos às trocas comerciais, mas igualmente, em conjugação com o artigo 5._ do Tratado, a tomarem todas as medidas necessárias e apropriadas para assegurar no seu território o respeito dessa liberdade fundamental.

    33 Nesta última hipótese, os Estados-Membros, que continuam a ter competência exclusiva para a manutenção da ordem pública e para a salvaguarda da segurança interna, dispõem de uma margem de apreciação para determinar quais são, numa dada situação, as medidas mais aptas para eliminar os entraves à importação dos produtos.

    34 Não cabe, por isso, às instituições comunitárias substituir-se aos Estados-Membros para lhes indicar as medidas que devem adoptar e aplicar efectivamente para garantir a livre circulação de mercadorias no seu território.

    35 Todavia, cabe ao Tribunal de Justiça, tendo em conta os poderes de apreciação supramencionados, verificar, no processo em que é chamado a intervir, se o Estado-Membro em causa tomou medidas adequadas para assegurar a livre circulação de mercadorias.

    36 As considerações que precedem aplicam-se igualmente aos regulamentos do Conselho relativos à organização comum de mercado para os diferentes produtos agrícolas, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 38._ a 46._ e 7._, n._ 7, do Tratado CE (v., acórdão de 14 de Julho de 1976, Kramer e o., 3/76, 4/76 e 6/76, Colect., p. 515, n.os 53 e 54, e de 25 de Maio de 1993, Comissão/Itália, C-228/91, Colect., p. I-2701, n._ 11, relativos aos regulamentos respeitantes à organização comum de mercado no sector dos produtos da pesca).

    37 No que toca mais precisamente ao presente processo, há que reconhecer que os factos na origem da acção por incumprimento que a Comissão propôs contra a República Francesa não são contestados.

    38 Ora, os actos de violência cometidos no território francês contra produtos agrícolas originários de outros Estados-Membros, consistindo nomeadamente na intercepção de camiões que transportam tais produtos, na destruição da sua carga e em actos de violência praticados sobre os condutores, bem como em ameaças dirigidas aos grossistas e aos retalhistas e na danificação de mercadorias em exposição, criam incontestavelmente obstáculos às trocas comerciais intracomunitárias desses produtos.

    39 Deve, por isso, verificar-se se, no caso em apreço, o Governo francês deu cumprimento às suas obrigações decorrentes do artigo 30._ do Tratado, em conjugação com o artigo 5._, tomando medidas suficientes e apropriadas para fazer face às acções de particulares que causam obstáculos à livre circulação de certos produtos agrícolas.

    40 A este propósito, importa sublinhar que resulta dos articulados da Comissão que os incidentes postos em causa por essa instituição no quadro da presente acção se produzem regularmente há mais de dez anos.

    41 Em 8 de Maio de 1985, a Comissão enviou uma primeira carta à República Francesa convidando-a a tomar as medidas preventivas e repressivas necessárias para pôr termo a actos deste tipo.

    42 Por outro lado, a Comissão, já no âmbito do caso em discussão, lembrou em muitas ocasiões ao Governo francês que o direito comunitário impõe a obrigação de velar pelo respeito efectivo da livre circulação de mercadorias, eliminando todas as restrições à liberdade das trocas comerciais de produtos agrícolas provenientes de outros Estados-Membros.

    43 As autoridades francesas dispuseram portanto de um prazo suficientemente longo para adoptar as medidas indispensáveis com vista a dar cumprimento às suas obrigações decorrentes do direito comunitário.

    44 Em seguida, a despeito das explicações fornecidas pelo Governo demandado, segundo o qual todas as medidas foram tomadas para evitar a prossecução de actos de violência e para reprimir os culpados, é um facto que, ano após ano, incidentes graves puseram seriamente em causa as trocas comerciais de produtos agrícolas no território francês.

    45 Resulta a este propósito da exposição dos factos apresentada pela Comissão, e não contestada pelo Governo francês, que são principalmente certos períodos do ano que estão em causa e que, além disso, existem locais particularmente expostos em que incidentes se produziram em várias ocasiões ao longo do mesmo ano.

    46 A partir de 1993 os actos de violência e de vandalismo deixaram de visar apenas os meios de transporte dos produtos agrícolas, tendo-se alargado ao sector da distribuição por grosso e a retalho desses produtos.

    47 Novos incidentes graves da mesma natureza tiveram de resto lugar em 1996 e 1997.

    48 Deve salientar-se ainda que não foi contestado que, quando tais incidentes ocorreram, as forças da ordem francesas não estavam presentes nos locais, apesar de, em certos casos, as autoridades competentes terem sido prevenidas da iminência de manifestações de agricultores, ou não intervieram, mesmo nos casos em que eram muito mais numerosas do que os agitadores. Além disso, nem sempre se tratou de acções rápidas de manifestantes que actuam de forma imprevista e que se põem imediatamente em fuga, uma vez que, em certos casos, as desordens duraram várias horas.

    49 Além disso, é ponto assente que um certo número de actos de vandalismo foram filmados pelas câmaras da televisão, que os manifestantes agiram muitas vezes com o rosto descoberto e que os grupos de agricultores, autores da manifestações violentas, são conhecidos dos serviços da ordem.

    50 Todavia, é claro que, das pessoas que participaram nessas perturbações graves da ordem pública, só um reduzido número foi identificado e processado.

    51 Assim, relativamente a numerosos actos de vandalismo cometidos durante o período de Abril a Agosto de 1993, as autoridades francesas apenas citaram um único caso de procedimento criminal.

    52 Tendo em conta tudo o que precede, o Tribunal de Justiça, embora não ignore as dificuldades das autoridades competentes para fazer face a situações do tipo das que estão em causa no caso concreto, não pode senão declarar que, tendo em conta a frequência e a gravidade dos incidentes enumerados pela Comissão, as medidas que o Governo francês adoptou não foram manifestamente suficientes para garantir a liberdade das trocas comerciais intracomunitárias de produtos agrícolas no seu território, impedindo e dissuadindo eficazmente os autores das infracções em causa de as cometer e de as repetir.

    53 Esta declaração impõe-se tanto mais que as danificações e as ameaças evocadas pela Comissão não só põem em causa a importação ou o trânsito em França dos produtos directamente afectados pelas acções violentas, mas são de natureza a criar um clima de insegurança que tem um efeito dissuasor sobre a globalidade das correntes de trocas comerciais.

    54 A declaração que precede de forma nenhuma é posta em causa pelo argumento do Governo francês segundo o qual a situação dos agricultores franceses era de tal forma difícil que se podia razoavelmente recear que intervenções mais determinadas das autoridades competentes poderiam provocar reacções violentas dos operadores em causa, provocando perturbações da ordem pública ainda mais graves ou mesmo agitações sociais.

    55 Com feito, o receio de dificuldades internas não pode justificar a abstenção de um Estado-Membro de aplicar directamente o direito comunitário (v., neste sentido, acórdão de 7 de Dezembro de 1995, Comissão/França, C-52/95, Colect., p. I-4443, n._ 38).

    56 Incumbe ao Estado-Membro em causa tomar todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito comunitário ,a fim de assegurar a aplicação correcta desse direito no interesse de todos os operadores económicos, a menos que prove que uma acção da sua parte teria sobre a ordem pública consequências a que não poderia fazer face recorrendo aos meios ao seu dispor.

    57 Ora, no caso em apreço, o governo demandado não provou concretamente a realidade de um perigo para a ordem pública à qual não pudesse fazer face.

    58 Deve acrescentar-se que, embora não seja de excluir que a ameaça de perturbações da ordem pública pode, eventualmente, justificar a não intervenção das forças da ordem, esse argumento só poderá ser avançado num caso preciso, e não, como no caso concreto, globalmente para o conjunto dos incidentes evocados pela Comissão.

    59 Quanto ao pagamento pela República Francesa de uma indemnização pelos prejuízos causados às vítimas, há que sublinhar que este argumento não pode ser invocado pelo Governo demandado para se eximir às suas obrigações decorrentes do direito comunitário.

    60 Com efeito, embora uma indemnização seja de natureza a ressarcir, pelo menos em parte, o prejuízo sofrido pelos operadores económicos afectados, não é, em contrapartida, susceptível de excluir o incumprimento do Estado-Membro.

    61 Os argumentos baseados no contexto sócio-económico muito difícil do mercado francês das frutas e dos produtos hortícolas após a adesão do Reino de Espanha, também não podem ser acolhidas.

    62 A este propósito, é jurisprudência constante que motivos de natureza económica não podem, em caso algum, servir de justificação a entraves proibidos pelo artigo 30._ do Tratado (v., nomeadamente, acórdão de 11 de Junho de 1985, Comissão/Irlanda, 288/83, Recueil, p. 1761, n._ 28).

    63 Na medida em que o Governo demandado deixa entender, em apoio desses argumentos, que a destabilização do mercado francês das frutas e dos produtos hortícolas foi provocada por práticas desleais ou até por violações do direito comunitário por parte dos produtores espanhóis, deve recordar-se que um Estado-Membro não pode tomar unilateralmente medidas de defesa ou adoptar um comportamento destinados a obviar a uma violação eventual, por outro Estado-Membro, das normas de direito comunitário (v., neste sentido, acórdão de 23 de Maio de 1996, Hedley Lomas, C-5/94, Colect., p. I-2553, n._ 20).

    64 Assim deve acontecer, por maioria de razão, no domínio da política agrícola comum, em que cabe exclusivamente à Comunidade adoptar, se necessário, as medidas que se impõem para fazer face a dificuldades sentidas por certos operadores, nomeadamente na sequência de uma nova adesão.

    65 Tendo em conta o conjunto das considerações que precedem, há que concluir que, no caso em apreço, o Governo francês se absteve, de maneira manifesta e persistente, de tomar medidas suficientes e apropriadas para fazer cessar os actos de vandalismo que põem em causa, no seu território, a livre circulação de certos produtos agrícolas originários de outros Estados-Membros e para impedir a renovação de tais actos.

    66 Por consequência, deve declarar-se que, ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas a fim de que acções de particulares não entravem a livre circulação de frutas e produtos hortícolas, a República Francesa não cumpriu as obrigações que decorrem do artigo 30._ do Tratado, em conjugação com o artigo 5._ do mesmo Tratado, e das organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas.

    Decisão sobre as despesas


    Quanto às despesas

    67 Por força do disposto no n._ 2 do artigo 69._ do Regulamento de Processo, a parte vencida deve ser condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo a República Francesa sido vencida, há que condená-la nas despesas. Nos termos do n._ 4 do mesmo artigo, os Estados-Membros e as instituições que intervieram no processo suportarão as suas próprias despesas.

    Parte decisória


    Pelos fundamentos expostos,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

    decide:

    68 Ao não tomar todas as medidas necessárias e proporcionadas a fim de que acções de particulares não entravem a livre circulação de frutas e produtos hortícolas, a República Francesa não cumpriu as obrigações que decorrem do artigo 30._ do Tratado CE, em conjugação com o artigo 5._ do mesmo Tratado, e das organizações comuns de mercado dos produtos agrícolas.

    69 A República Francesa é condenada nas despesas.

    70 O Reino de Espanha e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte suportarão as suas próprias despesas

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