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Document 61992CC0051

    Conclusões do advogado-geral Cosmas apresentadas em 15 de Julho de 1998.
    Hercules Chemicals NV contra Comissão das Comunidades Europeias.
    Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância - Processo - Obrigação de proferir simultaneamente os acórdãos nos processos que incidem sobre a mesma decisão - Regulamento interno da Comissão - Processo de adopção de uma decisão pelo colégio dos membros da Comissão - Regras de concorrência aplicáveis às empresas - Direitos da defesa - Acesso ao dossier - Coima.
    Processo C-51/92 P.

    Colectânea de Jurisprudência 1999 I-04235

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:1998:364

    61992C0051

    Conclusões do advogado-geral Cosmas apresentadas em 15 de Julho de 1998. - Hercules Chemicals NV contra Comissão das Comunidades Europeias. - Recurso de decisão do Tribunal de Primeira Instância - Processo - Obrigação de proferir simultaneamente os acórdãos nos processos que incidem sobre a mesma decisão - Regulamento interno da Comissão - Processo de adopção de uma decisão pelo colégio dos membros da Comissão - Regras de concorrência aplicáveis às empresas - Direitos da defesa - Acesso ao dossier - Coima. - Processo C-51/92 P.

    Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-04235


    Conclusões do Advogado-Geral


    No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a decidir do recurso apresentado pela sociedade Hercules Chemicals NV (a seguir «Hercules»), nos termos do artigo 49._ do Estatuto (CEE) do Tribunal de Justiça, no sentido de anular o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 17 de Dezembro de 1991 (1). O acórdão objecto do recurso negou provimento ao recurso de anulação, interposto pela recorrente nos termos do artigo 173._ do Tratado CEE (a seguir «Tratado»), da decisão da Comissão de 23 de Abril de 1986 (2) (a seguir «decisão polipropileno»). Esta decisão respeitava à aplicação do artigo 85._ do Tratado no sector da produção de polipropileno.

    I - Factos e tramitação processual perante o Tribunal de Primeira Instância

    1 No que respeita aos factos do litígio e à tramitação processual perante o Tribunal de Primeira Instância, o acórdão objecto do recurso refere os seguintes elementos: antes de 1977, o mercado da Europa Ocidental do polipropileno era abastecido quase exclusivamente por dez produtores. Depois de 1977, na sequência da caducidade das patentes da Montedison, surgiram no mercado sete novos produtores, com grande capacidade de produção. Entre estes figurava a Hercules, o mais importante produtor no mercado americano, cuja quota de mercado, na Europa Ocidental, oscilava entre os 5% e os 6,8%. Este aumento da capacidade nominal de produção na Europa Ocidental não foi acompanhado de um correspondente aumento da procura, pelo que não houve equilíbrio entre a oferta e a procura, pelo menos até 1982. De um modo geral, o mercado do polipropileno caracterizava-se, ao longo da maior parte do período 1977-1983, por uma fraca rentabilidade e/ou por prejuízos importantes.

    2 Em 13 e 14 de Outubro de 1983, funcionários da Comissão, agindo ao abrigo dos poderes que lhes são conferidos pelo artigo 14._, n._ 3, do Regulamento n._ 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962 (3) (a seguir «Regulamento n._ 17»), procederam a diligências de instrução simultâneas nas instalações de uma série de empresas activas no sector da produção de polipropileno. Na sequência destas diligências de instrução, a Comissão apresentou pedidos de informações, nos termos do artigo 11._ do Regulamento n._ 17, às empresas atrás referidas, bem como a outras sociedades com um objecto conexo. As informações recolhidas no âmbito destas diligências de instrução e dos pedidos de informações levaram a Comissão a concluir que, entre 1977 e 1983, certos produtores, de entre os quais a Hercules, tinham agido em violação do artigo 85._ do Tratado. Em 30 de Abril de 1984, a Comissão decidiu instaurar o processo previsto no artigo 3._, n._ 1, do Regulamento n._ 17 e comunicou por escrito as acusações às empresas infractoras.

    3 No termo deste processo, a Comissão adoptou, em 23 de Abril de 1986, a decisão já referida, cuja parte decisória é a seguinte:

    «Artigo 1._

    [As empresas]... Hercules Chemicals NV... infringiram o disposto no n._ 1 do artigo 85._ do Tratado CEE, ao participarem:

    ...

    - no caso da Hercules, Linz, Saga e Solvay, de cerca de Novembro de 1977 até, pelo menos, Novembro de 1983,

    ...

    num acordo e prática concertada criados em meados de 1977 pelo qual os produtores fornecedores de polipropileno do território do mercado comum:

    a) Se contactaram e encontraram regularmente (desde o início de 1981, duas vezes por mês) no âmbito de reuniões secretas, a fim de examinar e definir a sua política comercial;

    b) Fixaram periodicamente preços de objectivo (ou mínimos) para a venda do produto em cada Estado-Membro da Comunidade;

    c) Acordaram diversas medidas destinadas a facilitar a aplicação de tais objectivos em matéria de preços, incluindo (principalmente) limitações temporárias da produção, troca de informações pormenorizadas sobre as suas entregas, efectivação de reuniões locais e, a partir do final de 1982, um sistema de account management que visava aplicar subidas de preços a clientes específicos;

    d) Aplicaram aumentos de preços simultâneos, executando os ditos objectivos;

    e) Repartiram o mercado, atribuindo a cada produtor um objectivo ou quota anual de vendas (1979, 1980 e durante parte, pelo menos, de 1983) ou, na falta de acordo definitivo quanto a todo o ano, obrigando os produtores a limitarem as suas vendas mensais por referência a um período anterior (1981, 1982).

    ...

    Artigo 3._

    Às empresas referidas na presente decisão são aplicadas, em relação com a infracção verificada no artigo 1._, as seguintes multas:

    ...

    v) Hercules Chemicals NV, uma multa de 2 750 000 ecus, ou seja, 120 569 620 FB;

    ...»

    4 Das quinze empresas destinatárias da decisão em questão, catorze - de entre as quais a ora recorrente - apresentaram um recurso de anulação da referida decisão da Comissão. Aquando da audiência perante o Tribunal de Primeira Instância, que decorreu entre 10 e 15 de Dezembro de 1990, as partes expuseram os seus argumentos e responderam às questões apresentadas pelo Tribunal de Primeira Instância. Depois de ouvir o advogado-geral, o Tribunal de Primeira Instância negou provimento ao recurso, através do seu já referido acórdão de 17 de Dezembro de 1991.

    5 A Hercules interpôs recurso deste acórdão, pelo qual pede ao Tribunal de Justiça que:

    - primeiro, tome as medidas necessárias para determinar se, ao adoptar a decisão, a Comissão tinha respeitado as regras de processo aplicáveis;

    - segundo, anule a decisão impugnada da Comissão por violação das formalidades essenciais do processo;

    - a título subsidiário, anule o acórdão e suprima ou reduza a multa aplicada;

    - condene a Comissão em todas as despesas.

    A Comissão conclui pedindo ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao recurso e que condene a recorrente nas despesas.

    A sociedade DSM NV pediu para intervir no presente processo, em apoio das conclusões da Hercules. Por despacho de 30 de Setembro de 1992, o Tribunal de Justiça rejeitou este pedido de intervenção, por inadmissível.

    II - Quanto à admissibilidade dos pedidos da recorrente

    6 Como a Comissão correctamente salienta, alguns dos pedidos da recorrente não são admissíveis na fase do presente recurso.

    7 Em primeiro lugar, o pedido pelo qual a Hercules requer ao tribunal ad quem que ordene diligências de instrução para verificar os vícios de forma da decisão da Comissão, impugnada perante o Tribunal de Primeira Instância, é inadmissível. Tais diligências ultrapassam a competência do tribunal ad quem e, em geral, os limites do controlo no âmbito do recurso (4).

    8 O modo pelo qual os outros pedidos da recorrente são formulados levanta também problemas. A recorrente parece pretender, numa primeira fase, que o tribunal ad quem anule a decisão litigiosa polipropileno da Comissão e, a título subsidiário, que anule o acórdão proferido em primeira instância. Daqui decorre que a ordem pela qual estes pedidos são expostos é incorrecta. O recurso abrange unicamente o controlo da legalidade dos acórdãos do Tribunal de Primeira Instância (5). Só quando o Tribunal de Justiça julgar o recurso procedente é que pode, depois de anular o acórdão proferido em primeira instância, e desde que considere o processo em condições de ser julgado, decidir definitivamente o litígio, nos termos das disposições do artigo 54._ do Estatuto (CEE) do Tribunal de Justiça. Consequentemente, segundo uma correcta interpretação do recurso da Hercules, haverá que admitir que esta sociedade pede, em primeiro lugar, a anulação do acórdão proferido em primeira instância, de que é destinatária e, sendo este pedido acolhido, a anulação da decisão polipropileno da Comissão (6).

    III - Fundamentos de anulação

    A - Quanto à violação dos direitos de defesa da Hercules

    9 A recorrente alegou em primeira instância que os direitos de defesa que lhe são reconhecidos pelo direito comunitário foram violados pela recusa da Comissão de lhe notificar, antes da adopção da decisão polipropileno, as respostas dos outros produtores, visados pelas investigações da Comissão, às acusações de violação das normas da concorrência. Mais precisamente, a Hercules entende que tinha o direito de tomar conhecimento dos argumentos invocados pelos outros produtores em resposta às comunicações das acusações da Comissão, segundo as quais estes produtores tinham participado, conjuntamente, em actividades contrárias ao artigo 85._ do Tratado. A falta de comunicação destes elementos constitui, na opinião da Hercules, uma violação dos seus direitos de defesa, que não podia ser sanada, depois da adopção da decisão impugnada, pela comunicação de tais elementos aquando da audiência perante o Tribunal de Primeira Instância.

    10 Quanto a este fundamento invocado pela Hercules, o Tribunal de Primeira Instância declarou (n._ 56): «No que respeita, mais particularmente, à recusa da Comissão de tornar acessíveis à recorrente as respostas fornecidas pelos outros produtores às comunicações das acusações, o Tribunal considera que não é necessário examinar se a recusa constitui uma violação dos direitos de defesa. Com efeito, tal exame apenas seria necessário se existisse uma possibilidade de, na ausência desta recusa, o processo administrativo ter podido chegar a um resultado diferente (acórdão do Tribunal de 10 de Julho de 1980, Distillers Company/Comissão, n._ 27, 30/78, Recueil, p. 2229; e acórdão do Tribunal de 27 de Novembro de 1990, n._ 30, T-7/90, Kobor/Comissão, Colect., p. II-721, n._ 30). Ora, é forçoso constatar que, no caso presente, não é disso que se trata. Com efeito, em seguida à apensação dos processos para a fase oral perante o Tribunal, a recorrente teve acesso às respostas das outras empresas às comunicações das acusações e delas não retirou nenhum elemento em seu favor do qual pudesse ter tirado partido durante a audiência. Daí se pode deduzir que estas respostas não continham qualquer elemento em seu favor e que, por conseguinte, o facto de a recorrente não ter podido ter acesso a elas durante o processo administrativo não pôde afectar o resultado a que chegou a decisão».

    11 O primeiro fundamento de anulação da Hercules critica precisamente a apreciação do Tribunal de Primeira Instância, tal como consta do n._ 56, acima citado. A recorrente começa por observar que o seu caso não se assemelha aos processos Distillers Company/Comissão e Kobor/Comissão, para os quais remete o acórdão objecto do recurso. No primeiro dos processos, o Tribunal de Justiça declarou que, ainda que a Comissão não tivesse violado certas regras de processo, o conteúdo da decisão impugnada teria sido exactamente o mesmo, uma vez que a empresa em causa tinha, em resultado de um erro de processo por si cometido, perdido o direito de invocar, em boa e devida forma, tudo o que poderia ter retirado dessas violações da Comissão. No processo Kobor/Comissão, o Tribunal de Justiça admitiu que o vício de forma constatado não tinha afectado de modo algum o direito de a recorrente invocar os seus fundamentos e argumentos perante a Comissão. A diferença específica entre estes processos e o caso da Hercules encontra-se, segundo a recorrente, no facto de, naqueles, o arsenal defensivo de que o sujeito de direito dispunha no âmbito do processo administrativo não tinha sido reduzido, enquanto que no processo em apreço a sociedade em questão não pôde, em resultado da recusa de comunicação de certos elementos decisivos, defender-se da melhor maneira possível durante o processo administrativo. Segundo a Hercules, ao decidir de tal modo, o Tribunal de Primeira Instância acaba por só reconhecer o direito de defesa durante o processo administrativo a quem possa provar a sua inocência perante o próprio Tribunal de Primeira Instância. Ignora portanto o carácter absoluto do princípio geral da protecção dos direitos de defesa do sujeito jurídico, que se aplica também em direito comunitário (7). A recorrente entende que a violação desse direito não pode ser sanada pela comunicação dos elementos, ilegalmente dissimulados, numa fase ulterior do processo, também não podendo ser neutralizada pelo facto de tais elementos em nada alterarem o resultado do processo administrativo.

    12 A Comissão retorque que foi com razão que o Tribunal de Primeira Instância considerou que não era necessário examinar se a recusa de comunicar os elementos, alegada pela Hercules, é ou não legal, porque, de qualquer modo, o processo administrativo não teria chegado a um resultado diferente se tais elementos tivessem sido comunicados. Segundo a Comissão, esta solução é conforme a uma jurisprudência constante segundo a qual, quando um vício de processo não pode, de qualquer modo, influenciar o conteúdo da decisão de uma instituição comunitária, também não pode ser invocado em justiça para sustentar um pedido de anulação de tal decisão. A recorrida observa que os acórdãos Distillers Company/Comissão e Kobor/Comissão admitiram também esta tese, e que esta é a mais adequada, porquanto evita a perca de tempo e de dinheiro provocada pela anulação de decisões que são, quanto ao seu conteúdo, perfeitamente correctas e legais. Na realidade, segundo a Comissão, o Tribunal de Primeira Instância não priva o acusado dos seus direitos de defesa, mas recusa-se a retirar conclusões desproporcionadas dos vícios de forma alegados. A título subsidiário, a recorrida observa que, em todo o caso, os direitos de defesa da Hercules não foram afectados. Esta não podia pedir acesso às respostas dadas pelos outros produtores de polipropileno às comunicações das acusações que lhes tinham sido dirigidas pela Comissão.

    13 Através deste fundamento, a recorrente levanta, por um lado, a questão capital da protecção dos direitos de defesa que o tribunal comunitário reconhece aos particulares no âmbito do processo administrativo e, por outro, a das consequências jurídicas de uma eventual violação desse direito. No caso em apreço, a questão não é a de saber em que medida o pedido da Hercules para ter acesso a uma série de elementos de prova era ou não fundado, ou seja, se se baseava ou não nos direitos de defesa que a ordem jurídica comunitária reconhece às empresas contra as quais foi instaurado o processo previsto no Regulamento n._ 17 (8). O que há que examinar na fase do recurso é a correcção do raciocínio do Tribunal de Primeira Instância, segundo o qual não era preciso examinar em que medida a recusa de facultar o acesso às respostas dadas pelos outros produtores às comunicações das acusações viola os direitos de defesa, uma vez que, mesmo sem essa recusa, o processo administrativo teria chegado ao mesmo resultado. À primeira vista, esta perspectiva de interpretação, que se coaduna com a jurisprudência actual do Tribunal de Justiça (9), parece relativizar o carácter absoluto dos direitos de defesa. Por outras palavras, a constatação de uma violação deste direito não visa, ipso facto, o processo administrativo, nem implica necessariamente a anulação da decisão adoptada no termo desse processo.

    14 Tal solução seria inconcebível num processo penal. Quando o processo de aplicação de sanções pode ter como consequência privar uma pessoa física da sua liberdade individual, é lógico que as regras de processo instituídas como garantias em benefício dessa pessoa sejam interpretadas e aplicadas com o maior rigor. Poder-se-ia defender que, em direito penal, é preciso proteger tanto a essência como as formalidades do direito de defesa. Apesar das substanciais semelhanças entre o processo penal e o processo administrativo (repressivo), onde se insere também, na minha opinião, o processo previsto pelo Regulamento n._ 17, a necessidade de protecção do acusado não é tão imperiosa num caso como no outro. Daí decorre que, quando uma sanção administrativa é aplicada sem que tenham sido plenamente respeitadas as formalidades impostas pelos direitos de defesa do acusado, mas sem que, no entanto, a essência deste direito tenha sido afectada, parece-me que, contrariamente às disposições aplicáveis em direito penal, o processo acaba por não ser viciado. Tal aplicação dos direitos de defesa parece conciliar melhor a necessidade de protecção do sujeito jurídico com a eficácia do processo administrativo, apesar das reservas quanto aos riscos que esta tese comporta.

    15 É, portanto, essencial examinar em cada caso em que medida foi afectada a essência do direito de defesa da empresa contra a qual foi instaurado o processo do Regulamento n._ 17. É esta também a abordagem do Tribunal de Primeira Instância no processo em apreço, tal como resulta da interpretação do acórdão objecto do recurso que me parece mais correcta. Para que os direitos de defesa da Hercules tivessem sido violados quanto à sua substância era preciso que esta sociedade tivesse sido privada, em resultado do comportamento da Comissão, da possibilidade de invocar, a partir da fase administrativa do processo de aplicação de sanções previsto pelo Regulamento n._ 17, um fundamento de facto ou um argumento jurídico suplementar, susceptível de levar a uma conclusão diferente desse processo - e mais favorável para o interessado. Não se pode portanto falar de violação dos direitos de defesa, uma vez que, mesmo quando, finalmente, tomou conhecimento dos elementos cuja comunicação pretendia, a Hercules não estava em condições de deles retirar qualquer argumento novo ou complementar, susceptível de deitar por terra as acusações que a Comissão contra si tinha formulado e, indirectamente, a legalidade da sanção aplicada. Na minha opinião, foi com razão que o Tribunal de Primeira Instância se baseou nesta constatação e dela deduziu que a posição da sociedade acusada não tinha sido dificultada pela falta de comunicação, na fase do processo administrativo, de certos documentos que se encontravam na posse da Comissão. Daqui decorre que este fundamento de anulação deve ser rejeitado por infundado.

    B - Quanto à obrigação de proferir simultaneamente os acórdãos respeitantes a uma «infracção única»

    16 A recorrente alega que o Tribunal de Primeira Instância violou os seus direitos de defesa ao não ter proferido na mesma data o conjunto dos acórdãos sobre os recursos interpostos da decisão polipropileno da Comissão. Ora, tendo-se admitido que a Hercules tinha participado, com os outros produtores de polipropileno, numa infracção «única», todos os acórdãos relativos a esta infracção deveriam, na opinião da recorrente, ser proferidos no mesmo dia. Caso contrário, haveria o risco de os elementos de direito e de facto nos quais se baseou o acórdão proferido sobre o recurso da Hercules serem postos em causa nos acórdãos proferidos sobre os outros recursos interpostos da mesma decisão. Neste caso, os participantes na mesma infracção «única» teriam tratamentos jurídicos diferentes, em função da data em que foi proferido o acórdão que lhes diz respeito. A recorrente entende que a ordem jurídica comunitária não pode aceitar o risco de as empresas que tiveram o mesmo comportamento serem objecto de tratamentos jurídicos distintos.

    17 Sem ser necessário responder aos argumentos da recorrente ponto por ponto, limitar-me-ei a salientar que, segundo um princípio geral de direito processual comunitário, é o tribunal quem domina o processo e tem toda a liberdade quanto à escolha da data em que decide. De resto, não se pode deduzir de outros princípios processuais, como, por exemplo, o da boa administração da justiça ou o da protecção jurídica dos sujeitos de direito comunitário, uma obrigação do Tribunal de Primeira Instância de decidir na mesma data todos os processos conexos, ainda que sejam apensos. O tribunal comunitário tem a possibilidade, e não a obrigação, de proferir acórdãos simultaneamente. Daqui decorre que a escolha do Tribunal de Primeira Instância de não proferir na mesma data todos os seus acórdãos sobre os recursos interpostos da decisão polipropileno não é contrária ao direito comunitário e é juridicamente irrelevante. Consequentemente, o segundo fundamento de anulação da Hercules deve ser rejeitado por infundado.

    C - Quanto à contradição entre a fundamentação e o dispositivo do acórdão objecto do recurso

    18 Através do seu terceiro fundamento de anulação, a Hercules alega que o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro de direito ao afirmar que, em 1981 e 1982, a ora recorrente tinha participado em práticas concertadas entre produtores de polipropileno para a fixação de objectivos de volumes de vendas. A este respeito, a Hercules observa que a conclusão do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual ela tinha participado na «... vigilância mútua, durante as reuniões periódicas, da aplicação de um sistema de limitação das vendas mensais» (n._ 222 do acórdão) contradiz a constatação segundo a qual a Hercules «... não tinha fornecido os números relativos aos seus volumes de vendas» (n._ 207). Segundo a Hercules, o Tribunal de Primeira Instância baseou a sua apreciação na constatação, errada, de que «lhe (à Hercules) foi atribuída, sem que ela se opusesse, uma quota calculada a partir dos números disponíveis através do sistema FIDES» (n._ 230), sendo que a própria Comissão tinha reconhecido que era impossível calcular a produção ou o volume de negócios da Hercules com base nos dados FIDES.

    19 Na sua resposta, a Comissão sublinha que a recorrente não pode, através deste fundamento, contestar a constatação dos factos pelo Tribunal de Primeira Instância. Sublinha depois a recorrida que a menção do sistema FIDES no acórdão proferido em primeira instância não contradiz o facto de os outros produtores de polipropileno não poderem ter conhecimento dos volumes de vendas da recorrente com base, apenas, nos dados deste sistema.

    20 Através deste fundamento, a recorrente alega ter encontrado uma contradição entre os factos constatados pelo Tribunal de Primeira Instância e a conclusão jurídica que deles é retirada. Ora, na realidade, a recorrente contesta, por inexacta, a constatação do Tribunal de Primeira Instância segundo a qual a produção da Hercules estava submetida a quotas fixadas com base nos dados obtidos pelo sistema FIDES. Por outras palavras, a recorrente contesta os factos do processo, tais como foram constatados pelo tribunal a quo e, como tal, este fundamento deve ser julgado inadmissível na fase do presente recurso.

    D - Quanto ao desrespeito, pelo Tribunal de Primeira Instância, da jurisprudência Orkem/Comissão

    21 A recorrente afirma que a decisão polipropileno da Comissão continha constatações factuais que são, elas próprias, baseadas em matéria de facto obtida pela Comissão em violação dos seus direitos de defesa. Mais especificamente, a recorrente recorda que a Comissão lhe tinha colocado, com a sua carta de 16 de Novembro de 1983, toda uma série de questões às quais a recorrente só podia responder de um modo tal que correspondia à confissão indirecta da infracção. Ora, segundo a jurisprudência Orkem/Comissão (10) - tal como a recorrente a interpreta - a Hercules não era obrigada a depor contra si própria, pelo que tinha o direito de não responder às referidas questões da Comissão. Daí decorre, segundo a recorrente, que a elementos de prova desse modo obtidos pela Comissão tinham sido recolhidos ilegalmente, em violação dos seus direitos de defesa. Consequentemente, na medida em que o Tribunal de Primeira Instância não demonstrou a existência desta infracção, teria cometido, segundo o quarto fundamento de anulação avançado pela Hercules, um erro de direito, pelo que o seu acórdão deve ser anulado.

    22 A Comissão contesta a admissibilidade deste fundamento. Observa, a este respeito, que a questão de saber em que medida a sociedade Hercules se podia recusar a responder às questões da Comissão não tinha sido levantada pela recorrente em primeira instância; este fundamento é invocado pela primeira vez perante o tribunal ad quem, pelo que deve ser julgado inadmissível.

    23 Este fundamento da recorrente refere-se à norma de direito comunitário que foi pela primeira vez aplicada no acórdão Orkem/Comissão do Tribunal de Justiça; segundo esta norma, «(...) a Comissão não pode impor à empresa a obrigação de fornecer respostas através das quais seja levada a admitir a existência da infracção cuja prova cabe à Comissão» (11).

    24 Creio, no entanto, que, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça não pode examinar esta questão jurídica quanto ao seu mérito. Para que o tribunal ad quem possa examinar um fundamento de recurso respeitante a uma violação de uma norma de direito pelo tribunal a quo, em especial o facto de esta jurisdição não ter aplicado uma norma jurídica, é preciso, em primeiro lugar, que os factos nos quais a parte baseia tal violação (12) resultem claramente do conteúdo do acórdão objecto do recurso. Se os elementos de facto determinantes não constarem deste acórdão, este só pode ser anulado se a recorrente invocou um fundamento de facto perante o tribunal a quo e este não o examinou.

    25 No que respeita ao processo em apreço, há que precisar, em primeiro lugar, que dos n.os 5 e 6 do acórdão recorrido decorre apenas o seguinte: na sequência de uma série de diligências de instrução simultâneas em empresas de produção de polipropileno, a Comissão apresentou a algumas delas, entre as quais a Hercules, pedidos de informações nos termos do artigo 11._ do Regulamento n._ 17; a Comissão deduziu das informações recolhidas no âmbito das diligências de instrução e dos pedidos de informações que estes produtores tinham cometido uma série de infracções ao artigo 85._ do Tratado. O acórdão objecto do recurso não refere em parte nenhuma o conteúdo nem a formulação das questões que constavam do pedido de informações que a Comissão dirigiu à Hercules; esta não tem, portanto, fundamentos para expor no seu recurso o teor exacto destas perguntas e das respostas por si dadas. Uma vez que não se pode apreciar na fase do recurso em que consistia exactamente o pedido de informações, não se pode retirar qualquer conclusão quanto à questão de saber em que medida o referido pedido obrigava ilegalmente a Hercules a admitir a sua culpabilidade. Não decorre, portanto, do conteúdo do acórdão recorrido que o Tribunal de Primeira Instância tenha deixado de aplicar ou tenha aplicado erradamente a norma segundo a qual uma empresa acusada de ter violado o direito da concorrência não pode ser chamada a depor contra si própria e, de qualquer modo, a recorrente não alega que invocou este fundamento em primeira instância e que o Tribunal de Primeira Instância não lhe deu resposta (13).

    E - Quanto à multa

    26 Segundo a recorrente, o Tribunal de Primeira Instância cometeu um erro na medida em que não anulou, ou, pelo menos, não reduziu, a multa aplicada, apesar de tal lhe ter sido legalmente pedido. Mais precisamente, a Hercules entende que o Tribunal de Primeira Instância não teve em conta o papel secundário, relativamente aos outros produtores de polipropileno, por si desempenhado na infracção ao artigo 85._ do Tratado. Além disso, a recorrente afirma que, embora o Tribunal de Primeira Instância tenha constatado que ela não tinha participado nas tentativas de execução das iniciativas em matéria de preços e dos objectivos de volumes de vendas para 1983, não reduziu a multa aplicada. Por outro lado, a redução da multa impunha-se - segundo a Hercules - pelas seguintes razões adicionais: por um lado, a violação pela Comissão dos direitos de defesa da Hercules e, por outro, a não participação da sociedade no sistema de quotas para 1981.

    27 Segundo a Comissão, o Tribunal de Primeira Instância examinou, no n._ 323 do acórdão recorrido, o papel desempenhado pela Hercules na infracção e declarou que a multa aplicada se justificava, face a tal papel. Além disso, quanto à questão de saber se a participação da recorrente na infracção abrangia também o ano de 1983, a Comissão remete para o n._ 256 do acórdão, tal como foi rectificado pelo despacho do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Março de 1992. Depois desta rectificação, é claro - na opinião da Comissão - que o Tribunal de Primeira Instância admitiu que a Hercules tinha também participado na infracção em 1983; segundo a Comissão, não há, portanto, razões para reduzir a multa. A Comissão rejeita, por fim, os argumentos da recorrente relativos à violação dos direitos de defesa e à não participação da Hercules no sistema de quotas durante o ano de 1981: a recorrida entende que a multa não deve, portanto, ser reduzida.

    28 Quanto a estes argumentos, há que observar, em primeiro lugar, que a possibilidade de aplicar multas em caso de violação do artigo 85._, n._ 1, do Tratado é expressamente prevista pelo artigo 15._, n._ 2, do Regulamento n._ 17. Segundo esta disposição, os critérios a tomar em consideração para determinar o montante da multa são a gravidade da infracção e a sua duração.

    29 Ora, em que consiste a gravidade do comportamento ilícito? O Tribunal de Justiça declarou, a este respeito, que «a gravidade das infracções deve ser determinada em função de um grande número de elementos tais como, nomeadamente, as circunstâncias específicas do caso, o seu contexto e o carácter dissuasivo das multas, e isto sem que tivesse sido fixada uma lista vinculativa ou exaustiva de critérios que devam obrigatoriamente ser tomados em consideração» (14). Neste âmbito, só o Tribunal de Primeira Instância tem competência para controlar o modo pelo qual a Comissão avalia, em cada caso específico, a gravidade do comportamento ilícito. O controlo exercido no âmbito do recurso perante o Tribunal de Justiça visa apenas verificar em que medida o tribunal a quo tomou em consideração, no âmbito de cada processo e de um modo juridicamente correcto, todos os factores essenciais para apreciar a gravidade de um determinado comportamento à luz do artigo 85._; o controlo no âmbito do recurso não se estende, no entanto, ao modo como o Tribunal de Primeira Instância apreciou tais factores.

    30 À luz das considerações anteriores, há que precisar, em primeiro lugar, que o Tribunal de Primeira Instância teve em conta, para controlar a determinação do montante da multa aplicada à Hercules, o papel por esta desempenhado na realização da infracção. No n._ 323 do acórdão, «o Tribunal constata, por um lado, que resulta das suas apreciações relativas à prova da infracção que a Comissão determinou correctamente o papel desempenhado pela recorrente na infracção e, por outro, que a Comissão indicou, no n._ 109 da decisão, ter tido em consideração este papel para determinar o montante da multa». Daqui decorre que o Tribunal de Primeira Instância examinou o papel individual que a recorrente desempenhou na infracção como critério para o cálculo do montante da multa; consequentemente, o argumento em contrário, avançado pela recorrente, baseia-se numa premissa incorrecta e deve, portanto, ser rejeitado.

    31 Quanto à questão de saber se a infracção da Hercules cessou em 1982 ou em 1983, há que precisar o seguinte: se o acórdão objecto do recurso tivesse efectivamente admitido, ao contrário da decisão polipropileno da Comissão, que a Hercules tinha deixado de participar nas infracções em litígio em 1982 e não em 1983, a multa aplicada deveria ter sido, consequentemente, reduzida. Ora, contrariamente ao que a recorrente sustenta, o Tribunal de Primeira Instância fixou, como o momento em que cessou a infracção da Hercules, o ano de 1983. O texto inicial do acórdão, tal como foi publicado em 27 de Dezembro de 1991 e notificado à Hercules, indicava, por lapso, o ano de 1982. Ora, em virtude do artigo 84._, n._ 1, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Primeira Instância rectificou depois o texto inicial do acórdão através do seu despacho de 9 de Março de 1992, que especifica que a participação da recorrente na infracção continuou até 1983. Daqui decorre que o fundamento da recorrente, segundo o qual a multa que lhe foi aplicada devia ter sido reduzida por a sua participação ter cessado em 1982, baseia-se numa premissa incorrecta (15). Este fundamento de anulação deve, portanto, ser rejeitado (16).

    32 No que respeita aos dois últimos fundamentos da recorrente, limitar-me-ei a referir que não há que os examinar no âmbito do presente processo de recurso, uma vez que os mesmos pressupõem o acolhimento de dois outros fundamentos de anulação que, como já atrás foi exposto (17), devem ser rejeitados.

    IV - Conclusão

    33 À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que:

    «1) negue, na totalidade, provimento ao recurso interposto pela sociedade Hercules Chemicals NV;

    2) condene a recorrente nas despesas.»

    (1) - Hercules Chemicals/Comissão (T-7/89, Colect., p. II-1711).

    (2) - IV/31.149 - Polipropileno, JO L 230, p. 1.

    (3) - Primeiro Regulamento de aplicação dos artigos 85._ e 86._ do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1, p. 22).

    (4) - Esta questão é aprofundada nos n.os 26 e 27 das conclusões que hoje apresentei no processo conexo Hüls/Comissão (C-199/92P).

    (5) - V. os artigos 49._ e 51._ do Estatuto (CEE) do Tribunal de Justiça.

    (6) - Segundo a interpretação mais correcta, na minha opinião, e que se coaduna com os princípios geralmente aceites pelos direitos nacionais, o artigo 113._, n._ 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, segundo o qual «As conclusões do recurso devem ter como objecto: a anulação, total ou parcial, da decisão do Tribunal de Primeira Instância; o provimento, no todo ou em parte, dos pedidos apresentados em primeira instância, não sendo permitido formular pedidos novos», não significa que a recorrente possa, alternativamente, pedir a anulação do acórdão objecto do recurso, ou reiterar os pedidos apresentados em primeira instância. Resulta da conjugação desta disposição com as dos artigos 49._ a 51._ do Estatuto (CEE) do Tribunal de Justiça que a recorrente deve, necessariamente, atacar o acórdão proferido em primeira instância, subordinando-se os pedidos relativos ao processo perante o Tribunal de Primeira Instância à anulação do acórdão por este proferido.

    (7) - A recorrente remete para os acórdãos de 9 de Novembro de 1983, Michelin/Comissão (332/81, Recueil, p. 3461), e de 12 de Fevereiro de 1992, Países Baixos e o./Comissão (C-48/90 e C-66/90, Colect., p. I-565).

    (8) - Não examinarei, portanto, os argumentos da Comissão segundo os quais a Hercules não tinha, de qualquer modo, direito a aceder aos elementos invocados; esta questão só será examinada se se verificar que o raciocínio seguido pelo Tribunal de Primeira Instância era errado.

    (9) - V. acórdãos Distillers Company/Comissão e Kobor/Comissão, já referidos no n._ 10.

    (10) - Acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1989 (374/87, Colect., p. 3283).

    (11) - N._ 35 do acórdão Orkem/Comissão, já referido na nota 10.

    (12) - Trata-se dos factos necessários para que a segunda premissa do raciocínio jurídico seja correctamente formulada.

    (13) - Em todo o caso e na medida em que a Hercules aceitou responder ao pedido de informações, deixou de poder pedir à Comissão que não tivesse em conta o conteúdo de tais respostas.

    (14) - V. o despacho de 25 de Março de 1996, SPO e o./Comissão (C-137/95P, Colect., p. I-1611, n._ 54). V. também os acórdãos de 15 de Julho de 1970, Boehringer Mannheim/Comissão (45/69, Recueil, p. 769, Colect. 1969-1970, p. 505), de 7 de Junho de 1983, Musique Diffusion Française e o./Comissão (100/80, 101/80, 102/80 e 103/80, Recueil, p. 1825, n._ 120), e de 8 de Novembro de 1983, IAZ e o./Comissão (96/82 a 102/82, 104/82, 105/82, 108/82 e 110/82, Recueil, p. 3369, n._ 52).

    (15) - Para ser mais exacto, não se trata de uma leitura incorrecta do acórdão proferido em primeira instância, mas de uma leitura correcta... de um texto incorrecto deste acórdão, tendo tal vício, no entanto, os mesmos efeitos jurídicos.

    (16) - Note-se que, de qualquer modo, não se pode associar a questão do respeito dos direitos de defesa à da multa. A violação dos direitos de defesa implica a impossibilidade de invocar os dados recolhidos ilegalmente pela Comissão e a subsequente anulação da decisão que se baseia em tais dados, pelo que a questão da multa já não se colocará.

    (17) - V. n.os 9 a 15 e 18 a 20.

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