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Document 61989CJ0214

Acórdão do Tribunal de 10 de Março de 1992.
Powell Duffryn plc contra Wolfgang Petereit.
Pedido de decisão prejudicial: Oberlandesgericht Koblenz - Alemanha.
Convenção de Bruxelas - Pacto atributivo de jurisdição - Cláusula constante dos estatutos de uma sociedade anónima.
Processo C-214/89.

European Court Reports 1992 I-01745

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1992:115

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-214/89 ( *1 )

I — Matéria de facto e tramitação processual

A Powell Duffiyn plc (a seguir «Powell Duffryn») é uma empresa de direito inglês que, em Setembro/Outubro de 1979, aquando de um aumento de capital da IBH-Holding AG (a seguir «IBH»), empresa de direito alemão, subscreveu acções nominativas desta sociedade. Em 28 de Julho de 1980, participou nas deliberações de uma assembleia geral da IBH, no decorrer da qual os accionistas, por aclamação, modificaram os estatutos da sociedade inserindo nos mesmos a seguinte disposição (que consta do artigo 4.° da versão alterada dos estatutos):

«Os accionistas, mediante a subscrição ou aquisição de acções ou certificados provisórios, ficam sujeitos, relativamente a todos os conflitos surgidos com a sociedade ou os seus órgãos, ao tribunal comum da sede da sociedade.»

Em Junho de 1981 e em Abril de 1982, por ocasião de outros aumentos, a Powell Duffryn subscreveu acções ao portador. Recebeu dividendos em Setembro de 1981 e em Novembro de 1982.

Após a declaração de falência da IBH em Dezembro de 1983, W. Petereit, na qualidade de administrador da falência, deu início a uma instância contra a Powell Duffryn perante o Landgericht Mainz, através de citação efectuada em 22 de Janeiro de 1987, alegando que esta não tinha cumprido as obrigações de pagamento em dinheiro assumidas em relação à IBH por altura dos aumentos de capital, pois apenas foram efectuadas entradas em espécie, disfarçadas, ilícitas. Pediu também o reembolso dos dividendos que afirma terem sido indevidamente pagos à Powell Duffryn.

A Powell Duffryn suscitou a questão prévia da incompetência do Landgericht Mainz.

Por decisão interlocutòria, o Landgericht declarou-se competente: considerou que o contrato escrito de subscrição satisfazia as condições de forma do artigo 17.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (a seguir «Convenção»), na redacção da Convenção de Adesão de 1978, e que o litígio estava sujeito à aplicação da cláusula atributiva de jurisdição constante do artigo 4.° dos estatutos.

A Powell Duffryn recorreu desta decisão para o Oberlandésgericht Koblenz, o qual, entendendo que o litígio suscitava uma questão de interpretação da Convenção, decidiu, por acórdão de 1 de Junho de 1989, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A regra contida nos estatutos de uma sociedade anónima, de acordo com a qual os accionistas por subscrição ou aquisição de acções aceitam sujeitar a resolução de todos os litígios com a sociedade ou os respectivos órgãos ao tribunal comum da sede da sociedade, constitui um pacto atributivo de jurisdição entre o accionista e a sociedade, na acepção do artigo 17.° da Convenção?

(Deverá a resposta ser diversa conforme o accionista tenha ele próprio, aquando de um aumento de capital, subscrito acções ou tenha adquirido acções já existentes?)

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a)

A subscrição e aquisição de acções, por ocasião do aumento de capital de uma sociedade anónima, através de declaração escrita de subscrição, satisfaz a exigência de redução a escrito estabelecida no artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Convenção, relativamente à cláusula do estatuto da sociedade que estabelece o foro convencional?

b)

A cláusula atributiva da jurisdição é compatível com a exigência de suficiente determinação da relação jurídica, da qual surgirão os futuros litígios, na acepção do artigo 17.° da Convenção?

c)

A cláusula estatutária atributiva de jurisdição abrange ainda o pedido de pagamentos resultantes de um contrato relativo à subscrição de acções e o pedido de restituição de dividendos indevidamente pagos?»

O acórdão de reenvio foi registado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 10 de Julho de 1989.

Nos termos do artigo 20.° do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, foram apresentadas observações escritas em 16 de Outubro de 1989 pela Powelll Duffryn, representada por Eckart Wilcke, advogado no foro de Frankfurt, em 16 de Outubro de 1989 por Wolfgang Petereit, representado por Otto Armbrüster, advogado no foro de Mainz, em 17 de Outubro de 1989 pelo Governo alemão, representado pelo professor Christof Böhmer, na qualidade de agente, e em 12 de Outubro de 1989 pela Comissão das Comunidades Europeias, representada pelo seu consultor jurídico Friedrich-Wilhelm Albrecht, na qualidade de agente, assistido por Wolf-Dietrich Krause-Ablass, advogado no foro de Düsseldorf.

Com base no relatório preliminar do juiz-relator e ouvido o advogado-geral, o Tribunal de Justiça decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução prèvia. Em 9 de Maio de 1990, decidiu atribuir o processo à Quinta Secção.

Na sequência da audiência pública de 2 de Outubro de 1990 e das conclusões do advogado-geral apresentadas em 13 de Novembro do mesmo ano, a Quinta Secção entendeu que havia lugar à aplicação do artigo 95.°, n.° 4, do Regulamento de Processo.

Por decisão de 28 de Maio de 1991, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) remeteu o processo ao Tribunal pleno.

Por despacho de 19 de Junho de 1991, ouvido o advogado-geral, o Tribunal decidiu reabrir a fase oral do processo.

II — Resumo das observações escritas apresentadas ao Tribunal

Quanto à questão 1

A Powell Duffryn considera que no contexto económico actual, caracterizado por uma importância acrescida dos investimentos transfronteiras, por uma internacionalização reforçada dos mercados de acções e por um número crescente de fusões de sociedades além-fronteiras, é injusto que uma sociedade anónima tenha nos seus estatutos uma cláusula atributiva de jurisdição nos termos da qual o juiz competente é o de um Estado que não é necessariamente o Estado em que a sociedade tem a sua sede nem o Estado onde se encontra o accionista estrangeiro. O foro designado desta forma pode ser de acesso muito difícil para o accionista, não representando qualquer problema de acesso para a sociedade por esta aí ter, por exemplo, uma filial. Acresce que o accionista, geralmente, não está a par da disposição que prevê essa jurisdição.

Referindo-se ao programa de harmonização do direito das sociedades e, particularmente, do das sociedades anónimas, a Powelll Duffryn entende que já não é necessário, devido à familiaridade do juiz nacional com o direito aplicável no local da sede da sociedade anônima, escolher esta sede como elemento de conexão para a determinação da competência em litígios entre a sociedade anônima e o accionista. De qualquer forma, a familiaridade do juiz com a matéria em causa não pode ser um argumento a favor da validade dos pactos atributivos de jurisdição, dado que estes podem atribuir competência a qualquer jurisdição.

A Powell Duffryn entende que a primeira questão colocada pelo Oberlandesgericht deve ter resposta negativa, quer o accionista subscreva ele próprio as acções por ocasião de um aumento de capital, quer adquira acções já existentes. O artigo 17.° da Convenção determina que um pacto atributivo de jurisdição «deve celebrar-se quer por escrito quer verbalmente com confirmação escrita...». O artigo 17.° deve ser interpretado stricto sensu, dado que constitui uma derrogação ao princípio geral de competência: a jurisprudência do Tribunal de Justiça exige que as partes tenham manifestado o seu consentimento de forma clara e precisa (v. acórdão de 14 de Dezembro de 1976, Colzani, 24/76, Recueil, p. 1831).

Pelo seu próprio teor, o artigo 4.° dos estatutos da IBH não constitui, segundo a Powell Duffryn, um pacto atributivo de jurisdição: pelo contrário, comporta a ficção de uma «submissão» do accionista ao tribunal comum da sede da sociedade. Esta ficção corresponde ao carácter normativo dos estatutos de uma sociedade, contra o qual o accionista individual nada pode. Por esta razão, uma disposição dos estatutos não pode ser qualificada de pacto, dado que o accionista não tem qualquer possibilidade de convencionar algo diferente. A única possibilidade de que dispõe é a de se aliar a outros accionistas, a fim de formar a maioria necessária para obter uma modificação dos estatutos. Mesmo que um accionista vote contra a introdução de um pacto atributivo de jurisdição, este aplicar-se-á em relação a ele. Assim, os estatutos de uma sociedade não podem ser considerados a expressão da vontade das partes e do seu livre poder de decisão. Aliás, não é possível distinguir consoante o accionista tenha ou não participado nas deliberações sobre a introdução daquele pacto nos estatutos. Estes aplicam-se igualmente aos accionistas que tenham adquirido as respectivas acções por compra no mercado livre, sem saber que os mesmos contêm um pacto atributivo de jurisdição.

A Powelll Duffryn sustenta que, mesmo se no seu acórdão de 22 de Março de 1983, Peters (34/82, Recueil, p. 987), o Tribunal de Justiça, ao decidir sobre uma questão relativa ao artigo 5.°, ponto 1, da Convenção, considerou que os vínculos entre uma associação e os seus aderentes podiam dar lugar a obrigações contratuais, esta interpretação não pode ter aplicação em relação a grandes sociedades que têm ou podem ter vários milhares de membros. Mesmo que as obrigações estatutárias possam ser consideradas obrigações contratuais, será ainda necessário que se encontrem reunidas as condições previstas no artigo 17.° Dado que estas condições têm precisamente por objectivo impedir que um pacto atributivo de jurisdição passe despercebido, as mesmas não se encontram manifestamente reunidas quando há uma simples remissão para um texto que os accionistas não conhecem necessariamente.

Quanto à questão complementar colocada no seguimento da primeira questão prejudicial, a Powell Duffryn entende que o facto de o accionista adquirir as suas acções por subscrição aquando de um aumento de capital em nada altera a situação jurídica. Tratar de forma diversa os subscritores de acções e os outros ; adquirentes seria contrário ao princípio da igualdade de tratamento dos accionistas.

W. Petereit sublinha, a título liminar, que a IBH era uma sociedade de «caracter familiar», o que implica que todos os accionistas se conheciam e participavam de forma activa nas decisões tomadas pela assembleia geral. Assim, a Powell Duffryn deu o seu consentimento expresso à inserção, nos estatutos, do artigo 4.°

W. Petereit considera que o processo consensual da tomada de decisão, a subscrição das acções e, sobretudo, a assinatura dos actos notariais e a assinatura dos boletins de subscrição são elementos que apoiam a sua conclusão segundo a qual o artigo 4.° constitui uma convenção escrita atributiva de jurisdição.

W. Petereit sublinha a este respeito que em direito alemão os estatutos constituem um acto jurídico contratual. Devem ser sempre objecto de autenticação notarial (artigo 23.° da Aktiengesetz, a seguir «AktG»). Da mesma forma, o boletim de subscrição é um contrato escrito entre o subscritor e a sociedade, que se torna perfeito com a declaração de aceitação da sociedade (artigo 185.° da AktG). Dado que um dos objectivos da Convenção é o de aumentar a segurança jurídica no direito processual, é necessário que qualquer pessoa disponha de um meio de determinar com certeza que tribunal é competente a seu respeito. Os estatutos e os boletins de subscrição são susceptíveis de cumprir esta função.

W. Petereit sustenta que a finalidade do artigo 17.° da Convenção é permitir às partes modificar as regras de competência fixadas pela própria Convenção (com excepção das disposições do artigo 16.°), garantindo simultaneamente que um pacto atributivo de jurisdição esteja efectivamente estabelecido e expresso de um modo claro e preciso. O artigo 4.° dos estatutos da IBH satisfaz estas condições. Uma vez que a Powell Duffryn nunca exprimiu quaisquer dúvidas em relação à validade destes estatutos, dever-se--á impor-lhe, em nome dos princípios da lealdade e da confiança recíproca, que mantenha esta atitude. Por outro lado, a Powell Duffryn não pode alegar uma desigualdade de forças económicas para se subtrair ao pacto atributivo de jurisdição.

Para W. Petereit, os estatutos e os boletins de subscrição satisfazem as condições de forma contidas no artigo 17.° A exigência da forma escrita visa, segundo jurisprudência constante, garantir que o acordo entre as partes esteja efectivamente estabelecido. O artigo 17.° não exige um pacto: basta, por exemplo, no caso das condições gerais dos contratos comerciais, que exista uma menção expressa que remeta para condições gerais que contenham um pacto atributivo de jurisdição.

O acto notarial de 28 de Julho de 1980 satisfaz esta condição, dado que os estatutos fazem dele parte integrante e o texto os menciona expressamente. Por outro lado, a Powell Duffryn teve conhecimento do pacto atributivo de jurisdição por intermedio da sua mandatária, presente na assembleia geral de 28 de Julho de 1980, no decurso da qual foi adoptado o artigo 4.° dos estatutos. Não exprimiu qualquer reserva quanto à validade do artigo 4.° e reafirmou expressamente, por ocasião de cada uma das assembleias gerais seguintes, o seu consentimento relativamente aos estatutos.

Segundo W. Petereit, a declaração contratual bilateral não é a única forma de acto susceptível de constituir um pacto, na acepção do artigo 17.° Assim, o Tribunal de Justiça confirmou, no seu acórdão de 14 de Julho de 1983, Gerling (201/82, Recueil, p. 2503), que uma cláusula de prorrogação de competência estipulada em favor de terceiro era válida. Esta conclusão justifica-se ainda mais tratando-se da relação entre os accionistas e a respectiva sociedade, partes de um mesmo conjunto. Por outro lado, à luz do acórdão de 22 de Março de 1983, Peters, já referido, no qual o Tribunal de Justiça qualificou de «contratuais» os vínculos de filiação entre uma associação e os seus aderentes, é manifesto que os estatutos de uma sociedade por acções, as suas decisões concretas e as declarações dos accionistas em relação à sociedade devam ser considerados pactos, na acepção do artigo 17.°

Para W. Petereit, a distinção entre os accionistas que subscrevem acções por ocasião de um aumento de capital e os que adquirem acções já existentes é irrelevante para efeitos do presente litígio, dado que a Powell Duffryn só adquiriu acções através de subscrição. No entanto, entende que a resposta à primeira questão continuaria a ser afirmativa: os accionistas que contratam com a sociedade aceitam os efeitos dos estatutos.

O Governo alemão entende que uma cláusula que consta dos estatutos de uma sociedade pode ser considerada um pacto atributivo de jurisdição na acepção do artigo 17.° da Convenção, desde que o accionista em questão tenha participado na adopção da cláusula e se tenha pronunciado a seu favor.

Resulta dos relatórios Jenard e Schlosser que só estão abrangidos pelo conceito «pacto atributivo de jurisdição» os pactos que exprimam um acordo de vontades entre as partes. O Governo alemão sublinha a este respeito que qualquer modificação dos estatutos de uma sociedade exige, em direito alemão, uma decisão da assembleia geral (artigos 119.°, 133.° e 179.° da AktG), autenticada por um notário (artigo 130.° da AktG). Seguidamente, a modificação é inscrita no registo de comércio do lugar da sede da sociedade. Os estatutos, tal como a respectiva modificação, têm natureza jurídica contratual (artigo 2.° da AktG), e a autenticação notarial das modificações substitui, em direito alemão, a forma escrita. Daqui decorre, no entender do Governo alemão, que o artigo 4.° dos estatutos da IBH deve ser considerado um pacto atributivo de jurisdição em relação a todos os que votaram a favor da sua inserção nos estatutos. Não haveria qualquer pacto em relação aos accionistas que votaram contra a adopção do artigo 4.° ou que não participaram na votação. Por outro lado, uma cláusula deste tipo não é oponível a um accionista que tenha adquirido as suas acções a outro accionista, porque um pacto atributivo de jurisdição não deve ser inserido de forma oculta na relação contratual, sem acordo de vontade expresso do accionista.

Assim, o Governo alemão propõe que se responda à primeira questão da seguinte forma:

«A disposição constante dos estatutos de uma sociedade anónima nos termos da qual os accionistas, ao subscrever ou ao adquirir acções, ficam sujeitos ao tribunal comum da sede da sociedade relativamente aos conflitos surgidos com a sociedade ou com os seus órgãos constitui um pacto atributivo de jurisdição na acepção do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas, em relação a todos os que votaram a favor da inclusão desta cláusula nos estatutos. A exigência de forma escrita é satisfeita pela autenticação notarial da deliberação correspondente.»

Baseando-se no direito alemão, a Comissão parte também do princípio de que os estatutos das sociedades anónimas constituem um contrato celebrado entre associados sob forma notarial (artigos 2.° e 23.° da AktG). Qualquer modificação ulterior dos estatutos deve ser autenticada por acto notarial (artigo 130.° da AktG). Todavia, tendo sido submetido ao Oberlandesgericht um litígio entre um accionista e a própria sociedade, a Comissão acrescenta que os estatutos também regem os direitos e obrigações existentes entre a sociedade e os seus accionistas. Alguns destes direitos e obrigações são especificados pela lei, outros são disposições supletivas. Entre estas figuram os pactos atributivos de jurisdição, que são frequentes na prática do direito das sociedades.

No entender da Comissão, mesmo que se considere que a sociedade não é.parte directa na celebração do pacto, terá que se entender satisfeito o requisito de forma escrita exigido no artigo 17.° Como foi decidido pelo Tribunal de Justiça no acórdão de 14 de Julho de 1983, Gerling, já referido, quem não for parte no contrato, e beneficie de uma estipulação a favor de terceiro, pode invocar um pacto atributivo de jurisdição estipulado em seu proveito, desde que a condição de forma escrita tenha sido respeitada entre as partes.

Esta análise jurídica não é modificada pelo facto de o accionista em questão não ter participado na elaboração do pacto atributivo de jurisdição que consta dos estatutos, tendo comprado as suas acções em data posterior. Para a Comissão, o novo accionista sucede em todos os direitos e obrigações àquele cujas acções adquiriu, incluindo os direitos e obrigações decorrentes de um pacto atributivo de jurisdição inserido nos estatutos. No entender da Comissão, esta conclusão é conforme ao acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1984, Ţilly Russ (71/83, Recueil, p. 2471), que admite a oponibilidade ao portador do conhecimento da cláusula atributiva de jurisdição que figura naquele documento.

Por outro lado, a Comissão sustenta que, mesmo que não se possa considerar a decisão da assembleia geral que modifica os estatutos um pacto entre os accionistas e a sociedade, os efeitos da decisão decorrem do contrato de sociedade originário. Ao adoptar o contrato de sociedade ou ao comprar posteriormente acções, todos os accionistas se sujeitaram às disposições da AktG ou dos estatutos relativas a eventuais modificações dos estatutos. Assim, qualquer accionista corre o risco de se vir a verificar uma alteração dos estatutos.

Enfim, mesmo resultando do acórdão do tribunal a quo que a modificação dos estatutos que introduziu o novo artigo 4.° foi adoptada por aclamação, a exigência de forma escrita contida no artigo 17.° é satisfeita com a autentificação por acto notarial da modificação e pela sua inscrição no registo comercial.

Quanto à questão 2, alínea a)

A Powell Duffryn entende que deve ser dada resposta negativa a esta questão. Se é certo que o direito alemão impõe a forma escrita para a subscrição de acções, a mesma não respeita às disposições dos estatutos a que não é feita qualquer referência.

W. Petereit é de opinião contrária. Em direito alemão, a subscrição de acções por ocasião de um aumento de capital só tem lugar se a decisão que modifica os estatutos tiver sido adoptada validamente (artigos 182.° e 23.° da AktG). Dado que para este efeito é necessária a alteração dos estatutos, há um vínculo obrigatório entre a decisão de aumento de capital, os estatutos e o boletim de subscrição. Assim, a Powell Duffryn, ao subscrever as acções, renovou o seu acordo ao pacto atributivo de jurisdição contido no artigo 4.

O Governo alemão especifica, a propósito desta questão, que em direito alemão a subscrição de novas acções é efectuada através de declaração escrita (artigo 185.° da AktG). Por outro lado, é um facto que ao comprar acções o accionista se submete aos estatutos da sociedade. Contudo, o objectivo do artigo 17.° da Convenção seria eludido através do aparecimento sub-reptício de um pacto atributivo de jurisdição; tal só não aconteceria no caso de o próprio boletim de subscrição conter uma cláusula nesse sentido. Assim, a situação jurídica dos estatutos de uma sociedade é diferente da prevalecente em matéria de condições gerais de venda. Neste último caso, o Tribunal de Justiça considerou que uma referência global às condições gerais de venda bastaria, no caso de o contraente ter aceite estas últimas por escrito. Todavia, se é possível, no quadro de um contrato bilateral, rejeitar a proposta que insere no contrato as condições gerais de venda, não se podem rejeitar os estatutos de uma sociedade quando se compram acções.

A Comissão entende que deve ser dada resposta afirmativa a esta questão. Esclarece que a declaração escrita referida no artigo 185.° da AktG não inclui qualquer pacto atributivo de jurisdição. Contudo, com a inscrição do aumento de capital no registo comercial os subscritores tornam-se accionistas e, assim, titulares de todos os direitos e obrigações decorrentes do contrato de sociedade. Assim, a sua situação é análoga à dos adquirentes de acções. Os requisitos de forma previstos no artigo 17.° encontrar-se--ão sempre satisfeitos pela autenticação dos estatutos por acto notarial e pela possibilidade de consulta do registo comercial. Além disso, com a sua declaração escrita o subscritor dá o seu acordo sobre todos os direitos e obrigações que constam dos estatutos.

Para a Comissão, a situação é comparável à que foi objecto do acórdão de 15 de Junho de 1984, Tilly Russ, já referido, no qual o Tribunal de Justiça decidiu que um pacto atributivo de jurisdição que constava das condições gerais impressas num conhecimento de bordo não assinado pelo carregador lhe era, de qualquer forma, oponível, quando o conhecimento faça parte das suas relações comerciais normais com o transportador e que estas relações se rejam por condições gerais em que se inclua a cláusula em questão. Em qualquer dos casos, seria contrário à boa fé negar a existência de um pacto atributivo de jurisdição.

Quanto à questão 2, alínea b)

A Powell Duffryn entende que a resposta a esta questão deve ser negativa. O artigo 17.° da Convenção exige que o pacto atributivo de jurisdição diga respeito a litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma relação jurídica determinada, a fim de evitar que uma parte com poder económico superior imponha uma competência judiciária geral ao outro contraente.

A Powell Duffryn especifica que, no presente caso, são «todos os conflitos surgidos com a sociedade ou os seus órgãos» que constituem ò objecto da cláusula atributiva de jurisdição; daqui decorre que aquela disposição engloba não apenas os conflitos emergentes das relações sociais entre a sociedade e o accionista, mas também qualquer outro diferendo, qualquer que seja a sua base jurídica, como, por exemplo, um litígio resultante de um fornecimento de mercadorias. Por outro lado, o pacto atributivo de jurisdição abrange os diferendos entre os accionistas e os órgãos da sociedade, os quais são, em regra geral, alheios às relações sociais. Assim, a relação jurídica que poderia dar origem aos conflitos não está ainda determinada.

W. Petereit entende que o artigo 4.° dos estatutos da IBH determina com suficiente precisão os litígios a que se aplica: engloba todos os litígios resultantes da relação consistente na adesão do accionista à sociedade.

Para o Governo alemão, a condição de especialidade encontra-se satisfeita se os conflitos referidos na cláusula forem previsíveis. Tal será o caso do artigo 4.° dos estatutos da IBH se for interpretado no sentido de que abrange os conflitos surgidos entre os accionistas e a sociedade devido à pertença a esta última. Contudo, o Governo alemão entende que a interpretação do artigo 4.° compete ao tribunal nacional, pelo que propõe que se responda a esta questão da seguinte forma:

«A cláusula atributiva de jurisdição satisfaz a condição de suficiente determinação da relação jurídica que dá origem'aos conflitos no caso de poder ser interpretada no sentido de se aplicar a todos os conflitos susceptíveis de opor o accionista à sociedade devido aos seus vínculos sociais mútuos.»

A Comissão entende que a protecção da parte contratante mais fraca seria posta em causa se o artigo 4.° não abrangesse apenas os litígios surgidos da relação jurídica resultante da sociedade, mas ainda outros conflitos que opusessem aquela e o accionista. Todavia, a Comissão inclina-se no sentido de pensar que o artigo 4.° se limita aos conflitos com origem nas relações sociais, satisfazendo assim a exigência do artigo 17.° da Convenção. No entanto, a interpretação do artigo 4.° compete ao tribunal nacional.

Por estas razões, a Comissão propõe a resposta seguinte para a questão 2, alínea b):

«Satisfaz a exigência de determinação contida no artigo 17.° da Convenção a cláusula atributiva de jurisdição que conste dos estatutos de uma sociedade anónima pela qual os accionistas se sujeitam ao tribunal comum da sede da sociedade relativamente a todos os conflitos surgidos com a sociedade, no caso de a mesma se limitar aos litígios emergentes da relação jurídica resultante da sociedade.»

Quanto à questão 2, alínea c)

A Powell Duffryn e o Governo alemão entendem que a resposta a esta questão deve ser fornecida pelo direito aplicável ao pacto atributivo de jurisdição.

No entender de W. Peiteret, é manifesto que o pacto atributivo de jurisdição engloba também as obrigações contratuais e as que resultam da falta de validade das subscrições.

A Comissão observa que esta questão respeita, em primeiro lugar, à interpretação da cláusula em questão, que compete ao tribunal nacional. Todavia, a Comissão entende que o juiz a quo deseja responder afirmativamente a esta questão, colocando assim a questão correlativa de saber se o artigo 4.° dos estatutos da IBH, assim interpretado, respeita o artigo 17.° da Convenção.

A Comissão esclarece, a este respeito, que nada impede que um pacto atributivo de jurisdição tenha efeitos retroactivos. Assim, o artigo 4.°, adoptado em Julho de 1980, poderia ser aplicado à subscrição de acções ocorrida em 1979.

Finalmente, a Comissão entende que, em princípio, o artigo 4.° só se aplica aos pedidos de pagamento feitos pela própria sociedade (artigo 62.°, primeiro parágrafo, da AktG) e não aos feitos pelos credores da sociedade (artigo 62.°, segundo parágrafo, da AktG). Quando, como acontece no processo principal, a acção é intentada pelo administrador da falência, coloca-se a questão de saber se este está a exercer os direitos dos credores ou os da sociedade. Se o juiz a quo entender que está a agir em nome da sociedade, o pacto atributivo de jurisdição aplicar-se-á aos pedidos por ele formulados.

A Comissão sugere a seguinte resposta para a questão 2, alínea c):

«O artigo 17.° da Convenção não obsta à inserção, nos estatutos de uma sociedade anónima, de uma disposição nos termos da qual os conflitos relativos ao pagamento de somas devidas à sociedade com base num contrato de subscrição de acções ou à devolução à sociedade de dividendos indevidamente pagos estão sujeitos à jurisdição da sede da sociedade.»

Gordon Slynn

Juiz-relator


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

10 de Março de 1992 ( *1 )

No processo C-214/89,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, pelo Oberlandesgericht Koblenz, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Powell Duffryn plc

e

Wolfgang Petereit,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 17.° da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, na redacção dada pela Convenção de Adesão de 1978,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: O. Due, presidente, Sir Gordon Slynn, R. Joliét, F. A. Schockweiler, F. Grévisse e P. J. G. Kapteyn, presidentes de secção, G. F. Mancini, C. N. Kakouris, J. C. Moitinho de Almeida, G. C. Rodríguez Iglesias, M. Diez de Velasco, M. Zuleeg e J. L. Murray, juízes,

advogado-geral: G. Tesauro

secretario: H. A. Rühi, administrador principal

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação da Powell Duffryn plc, por Eckart Wilcke, advogado no foro de Frankfurt am Main;

em representação de Wolfgang Petereit, por Karl Otto Armbrüster, advogado no foro de Mainz;

em representação do Governo alemão, pelo professor Christof Böhmer, na qualidade de agente;

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Friedrich-Wilhelm Albrecht, consultor jurídico, na qualidade de agente, assistido por Wolf-Dietrich Krause-Ablass, advogado no foro de Düsseldorf;

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Powell Duffryn plc, de Wolfgang Petereit e da Comissão, representada por Henri Etienne, consultor jurídico principal, na qualidade de agente, assistido por Wolf-Dietrich Krause-Ablass, na audiência de 15 de Outubro de 1991,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiencia de 20 de Novembro de 1991,

profere o presente

Acórdão

1

Por acórdão de 1 de Junho de 1989, entrado no Tribunal de Justiça em 10 de Julho seguinte, o Oberlandesgericht Koblenz colocou, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, várias questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 17.° desta convenção, na redacção dada pela Convenção de Adesão de 1978 (JO L 304, p. 1; EE 01 F2 p. 131, a seguir «Convenção de Bruxelas»).

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe W. Petereit, agindo na qualidade de administrador da falência da sociedade IBH-Holding AG, à sociedade Powell Duffryn plc (a seguir «Powell Duffryn»). Resulta dos autos que a Powell Duffryn, sociedade de direito inglês, tinha subscrito acções nominativas da sociedade IBH-Holding AG (a seguir «IBH-Holding»), sociedade anónima de direito alemão, aquando de um aumento de capital desta última em Setembro de 1979. Em 28 de Julho de 1980, a Powell Duffryn participou nas deliberações de uma assembleia geral da IBH-Holding no decurso da qual os accionistas adoptaram, por aclamação, decisões que modificam os estatutos da IBH, designadamente inserindo nos mesmos a seguinte cláusula:

«Os accionistas, mediante a subscrição ou aquisição de acções ou certificados provisórios, ficam sujeitos, relativamente a todos os conflitos surgidos com a sociedade ou os seus órgãos, ao tribunal comum da sede da sociedade.»

3

Em 1981 e em 1982, a Powell Duffryn subscreveu de novo acções aquando de aumentos sucessivos de capital da IBH-Holding e recebeu igualmente dividendos. Em 1983, a IBH-Holding faliu e W. Petereit, agindo na qualidade de administrador da falência, intentou uma acção perante o Landgericht Mainz alegando que a Powell Duffryn não tinha cumprido as obrigações de pagamento em dinheiro assumidas em relação à IBH aquando dos aumentos de capital. Pedia também o reembolso dos dividendos que, em sua opinião, foram indevidamente pagos à Powell Duffryn.

4

O Landgericht Mainz rejeitou a questão prévia de incompetência suscitada pela Powell Duffryn, tendo esta última recorrido para o Oberlandesgericht Koblenz que, entendendo que o litígio suscita uma questão da interpretação do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A regra contida nos estatutos de uma sociedade anônima, de acordo com a qual os accionistas por subscrição ou aquisição de acções aceitam sujeitar a resolução de todos os litígios com a sociedade ou os respectivos órgãos ao tribunal comum da sede da sociedade, constitui um pacto atributivo de jurisdição entre o accionista e a sociedade, na acepção do artigo 17.° da Convenção?

(Deverá a resposta ser diversa conforme o accionista tenha ele próprio, aquando de um aumento de capital, subscrito acções, ou tenha adquirido acções já existentes?)

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão :

a)

A subscrição e aquisição de acções, por ocasião do aumento de capital de uma sociedade anónima, através de declaração escrita de subscrição, satisfaz a exigência de redução a escrito estabelecida no artigo 17.°, primeiro parágrafo, da Convenção, relativamente à cláusula do estatuto da sociedade que estabelece o foro convencional?

b)

A cláusula atributiva da jurisdição é compatível com a exigência de suficiente determinação da relação jurídica, da qual surgirão os futuros litígios, na acepção do artigo 17.° da Convenção?

c)

A cláusula estatutária atributiva de jurisdição abrange ainda o pedido de pagamentos resultantes de um contrato relativo à subscrição de acções e o pedido de restituição de dividendos indevidamente pagos?»

5

Para mais ampla exposição dos factos do processo principal, da tramitação processual, bem como das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

Quanto à primeira questão

6

No artigo 17.° da Convenção de Bruxelas prevê-se que se as partes, tendo uma delas, pelo menos, domicílio no território de um Estado contratante, convencionarem que um tribunal ou tribunais de um Estado contratante têm competência para decidir dos litígios surgidos ou a surgir em conexão com uma determinada relação jurídica, esse tribunal tem competência exclusiva.

7

Importa examinar se uma cláusula atributiva de jurisdição inserida nos estatutos de uma sociedade anónima constitui um pacto na acepção do artigo 17.°, já referido, entre a sociedade e os seus accionistas.

8

A este respeito, a Powell Duffryn alega que uma cláusula atributiva de jurisdição constante dos estatutos de uma sociedade anónima não pode constituir um pacto, visto que os estatutos têm um caracter normativo que não deixa ao accionista qualquer possibilidade de discutir o seu conteúdo; o accionista sujeita-se mesmo a que nos mesmos sejam inseridas cláusulas contra a sua vontade expressa se tal possibilidade for prevista pelos estatutos ou pelo direito nacional aplicável.

9

Em contrapartida, W. Petereit e a Comissão sustentam, baseando-se no direito alemão, e particularmente nas disposições da Aktiengesetz, que os estatutos têm natureza contratual e que, desde logo, uma cláusula atributiva de jurisdição aí inserida constitui um pacto na acepção do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas.

10

A este respeito, resulta do exame comparativo das diversas ordens jurídicas dos Estados contratantes que a qualificação da natureza das relações entre uma sociedade anónima e os seus accionistas não é sempre a mesma. Em determinadas ordens jurídicas, estas relações são qualificadas de contratuais e, noutras, de institucionais, de normativas ou de sui generis.

11

Coloca-se assim a questão de saber se a noção de «pacto atributivo de jurisdição» utilizada no artigo 17.° da Convenção de Bruxelas deve receber uma interpretação autónoma ou ser considerada como remetendo para o direito interno de um ou outro dos Estados em questão.

12

A este respeito, deve sublinhar-se que, tal como o Tribunal já decidiu no acórdão de 6 de Outubro de 1976, Tessili (12/76, Recueil, p. 1473), nenhuma destas duas opções se impõe excluindo a outra, devendo a escolha adequada ser feita em função de cada uma das disposições da Convenção de forma a, no entanto, assegurar a plena eficácia desta na perspectiva dos objectivos previstos no artigo 220.° do Tratado CEE.

13

A noção de «pacto atributivo de jurisdição» é determinante para conferir, por derrogação às regras gerais sobre a competência judiciária, uma competência de. caracter exclusivo ao tribunal do Estado contratante eventualmente designado pelas partes. Tendo em conta os objectivos e a economia geral da Convenção de Bruxelas, e a fim de assegurar, na medida do possível, a igualdade e a uniformidade dos direitos e obrigações que decorrem da Convenção para os Estados contratantes e as pessoas interessadas, não se deve pois interpretar a noção de «pacto atributivo de jurisdição» como uma simples remissão para o direito interno de um ou outro dos Estados em questão.

14

Assim, e tal como o Tribunal decidiu por motivos análogos no que respeita designadamente à noção de «matéria contratual» bem como outras noções, previstas no artigo 5.° da Convenção, que servem de critério para a determinação das competências especiais (v. acórdão de 22 de Março de 1983, Peters, n.os 9 e 10, 34/82, Recueil, p. 987), é de considerar a noção de pacto atributivo de jurisdição prevista no artigo 17.° como uma noção autónoma.

15

Quanto a este ponto, importa lembrar que, chamado a interpretar a noção de «matéria contratual», prevista no artigo 5.° da Convenção, o Tribunal decidiu que as obrigações impostas a uma pessoa na sua qualidade de membro de uma associação deviam ser consideradas obrigações contratuais, pelo facto de a adesão a uma associação criar entre os associados vínculos estreitos do mesmo tipo que aqueles que se estabelecem entre as partes num contrato (v. acórdão de 22 de Março de 1983, Peters, já referido, n.° 13).

16

Do mesmo modo, os vínculos existentes entre os accionistas de uma sociedade são comparáveis aos que existem entre as partes num contrato. A constituição de uma sociedade traduz com efeito a existência de uma comunidade de interesses entre os accionistas na prossecução de um objectivo comum. A fim de realizar este objectivo, cada accionista está investido, face aos outros accionistas e aos órgãos da sociedade, de direitos e obrigações que encontram a sua expressão nos estatutos da sociedade. Daqui decorre que, para a aplicação da Convenção de Bruxelas, os estatutos da sociedade devem ser considerados um contrato que regula simultaneamente as relações entre os accionistas e as relações entre estes e a sociedade.

17

Daí resulta que um pacto atributivo de jurisdição constante dos estatutos de uma sociedade anónima constitui um pacto, na acepção do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas, vinculando o conjunto dos accionistas.

18

É irrelevante que o sócio, em relação ao qual é invocado o pacto atributivo de jurisdição, se tenha oposto à adopção desta cláusula ou se tenha tornado sócio após a adopção da mesma.

19

Com efeito, ao tornar-se e ao permanecer accionista de uma sociedade, este dá o seu consentimento para se submeter ao conjunto das disposições constantes dos estatutos da sociedade e às decisões adoptadas pelos órgãos da mesma, em conformidade com as disposições do direito nacional aplicável e dos estatutos, mesmo que algumas dessas disposições ou decisões não tenham o seu acordo.

20

Outra interpretação do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas levaria a uma multiplicação de competências quanto a litígios emergentes de uma mesma relação de direito e de facto entre a sociedade e os seus accionistas e violaria o princípio da segurança jurídica.

21

Por conseguinte, há que responder à primeira questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional que uma cláusula atributiva de jurisdição que atribui a um tribunal de um Estado contratante competência para conhecer dos diferendos que opõem uma sociedade anónima aos seus accionistas, inserida nos estatutos dessa sociedade e adoptada em conformidade com as disposições do direito nacional aplicável e com os próprios estatutos, constitui um pacto atributivo de jurisdição na acepção do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas.

Quanto à primeira parte da segunda questão

22

Através da primeira parte da segunda questão, o órgão jurisdicional nacional procura essencialmente saber em que circunstâncias uma cláusula atributiva de jurisdição que figura nos estatutos de uma sociedade satisfaz as condições de forma colocadas pelo artigo 17° da Convenção de Bruxelas.

23

Por força do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas, o pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado, quer por escrito, quer verbalmente com confirmação escrita, quer, no comércio internacional, mediante forma reconhecida pelos, usos nesse domínio, que as partes conheçam ou devam conhecer.

24

Como o Tribunal decidiu no acórdão de 14 de Dezembro de 1976, Estasis Salotti, n.° 7 (24/76, Recueil, p. 1831), as formalidades exigidas pelo artigo 17.° destinam-se a garantirla existência efectiva do consentimento das partes.

25

Importa sublinhar, todavia, que a situação dos accionistas em relação aos estatutos de uma sociedade — que traduz a existência de uma comunidade de interesses entre os accionistas na prossecução de um objectivo comum — é diferente da, em causa no acórdão já referido, de uma parte num contrato de compra e venda em relação às condições gerais de venda.

26

Há que sublinhar, antes de mais, que, nas ordens jurídicas de todos os Estados contratantes, os estatutos das sociedades revestem a forma escrita. Além disso, no direito das sociedades do conjunto destes Estados, admite-se que os estatutos da sociedade desempenham um papel especial na medida em que constituem um instrumento de base que disciplina as relações entre o accionista e a sociedade.

27

Em seguida convém sublinhar que, independentemente do modo de aquisição das acções, quem adquire a qualidade de accionista de uma sociedade sabe, ou deve saber, que está vinculado pelos estatutos da mesma e pelas modificações que aos mesmos forem feitas pelos órgãos da sociedade em conformidade com as disposições do direito nacional aplicável e dos estatutos.

28

Por conseguinte, quando os estatutos da sociedade contenham uma cláusula atributiva de jurisdição, qualquer accionista é suposto ter conhecimento desta cláusula e consentir efectivamente na atribuição da jurisdição que ela prevê, desde que os estatutos da sociedade estejam depositados num local a que o accionista possa ter acesso, tal como a sede da sociedade, ou constem de um registo público.

29

Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira parte da segunda questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional que, independentemente do modo de aquisição das acções, as exigências de forma estabelecidas pelo artigo 17.° devem considerar-se preenchidas relativamente a qualquer accionista, quando a cláusula atributiva de jurisdição consta dos estatutos da sociedade e esses estatutos estão depositados num lugar a que o accionista tem acesso ou constam de um registo público.

Quanto à segunda parte da segunda questão

30

Por força do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas, a atribuição de competência tem lugar com vista à resolução de litígios surgidos ou a surgir «em conexão com uma determinada relação jurídica».

31

Esta exigência visa limitar o alcance de um pacto atributivo de jurisdição apenas aos litígios que têm a sua origem na relação de direito na altura em que este pacto foi celebrado. Tem por objectivo evitar que uma parte seja surpreendida pela atribuição, a um foro determinado, dos litígios que surjam nas relações havidas com a outra parte contratante e que encontrariam a sua origem noutras relações para além das surgidas na altura em que a atribuição de jurisdição foi acordada.

32

A este propósito, uma cláusula atributiva de jurisdição constante dos estatutos de uma sociedade satisfaz esta exigência quando se refere a litígios surgidos ou a surgir de uma determinada relação jurídica entre a sociedade e os seus accionistas enquanto tais.

33

A questão de saber se, no caso vertente, à cláusula atributiva de jurisdição deve ser atribuído tal alcance é uma questão de interpretação que compete ao tribunal nacional resolver.

34

Por conseguinte, há que responder à segunda parte da segunda questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional que a condição relativa ao carácter suficientemente determinado da relação jurídica de que podem emergir os diferendos, na acepção do artigo 17.°, considera-se preenchida se a cláusula atributiva de jurisdição constante dos estatutos de uma sociedade puder ser interpretada no sentido de que a mesma se refere aos diferendos que opõem a sociedade aos seus accionistas enquanto tais.

Quanto à terceira parte da segunda questão

35

Através da terceira parte da segunda questão, o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se a cláusula atributiva de jurisdição perante ele invocada se aplica aos litígios que lhe são submetidos.

36

A este respeito, importa lembrar que a interpretação da cláusula atributiva de jurisdição invocada perante o órgão jurisdicional nacional é da competência deste.

37

Por conseguinte, há que responder à terceira parte da segunda questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional que a interpretação da cláusula atributiva de jurisdição invocada perante o órgão jurisdicional nacional, a fim de determinar os diferendos abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, é da competência deste.

Quanto às despesas

38

As despesas efectuadas pelo Governo alemão e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Oberlandesgericht Koblenz, por acórdão de 1 de Junho de 1989, declara:

 

1)

Uma cláusula atributiva de jurisdição que atribui a um tribunal de um Estado contratante competência para conhecer dos diferendos que opõem uma sociedade anónima aos seus accionistas, inserida nos estatutos dessa sociedade e adoptada em conformidade com as disposições do direito nacional aplicável e com os próprios estatutos, constitui um pacto atributivo de jurisdição na acepção do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas.

 

2)

Independentemente do modo de aquisição das acções, as exigências de forma estabelecidas pelo artigo 17.° devem considerar-se preenchidas relativamente a qualquer accionista, quando a cláusula atributiva de jurisdição consta dos estatutos da sociedade e esses estatutos estão depositados num lugar a que o accionista tem acesso ou constam de um registo público.

 

3)

A condição relativa ao carácter suficientemente determinado da relação jurídica de que podem emergir os diferendos, na acepção do artigo 17.°, considera-se preenchida se a cláusula atributiva de jurisdição constante dos estatutos de uma sociedade puder ser interpretada no sentido de que a mesma se refere aos diferendos que opõem uma sociedade aos seus accionistas enquanto tais.

 

4)

A interpretação da cláusula atributiva de jurisdição invocada perante o órgão jurisdicional nacional, a fim de determinar os diferendos abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, é da competência deste.

 

Due

Slynn

Joliét

Schockweiler

Grévisse

Kapteyn

Mancini

Kakouris

Moitinho de Almeida

Rodríguez Iglesias

Diez de Velasco

Zuleeg

Murray

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 10 de Março de 1992.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente

O. Due


( *1 ) Língua do processo: aiemilo.

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