ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

8 de junho de 2017 ( *1 )

[Texto retificado por despacho de 12 de junho de 2017]

[Texto retificado por despacho de 14 de setembro de 2017]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental — Rapto internacional de crianças — Convenção de Haia de 25 de outubro de 1980 — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigo 11.o — Pedido de regresso — Conceito de “residência habitual” de uma criança em idade lactente — Criança nascida, em conformidade com a vontade dos seus progenitores, num Estado‑Membro diferente do Estado da sua residência habitual — Residência contínua da criança, durante os primeiros meses de vida, no Estado‑Membro do seu nascimento — Decisão da mãe de não regressar ao Estado‑Membro onde se situava a residência habitual do casal»

No processo C‑111/17 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial, nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Monomeles Protodikeio Athinon [Tribunal de Primeira Instância (Juiz Singular) de Atenas, Grécia], por decisão de 28 de fevereiro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de março de 2017, no processo

OL

contra

PQ,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça (relator), presidente de secção, M. Berger, A. Borg Barthet, E. Levits e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

visto o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de 28 de fevereiro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de março de 2017, de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, em conformidade com o disposto no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

vista a decisão da Quinta Secção, de 16 de março de 2017, de deferir o referido pedido,

vistos os autos e após a audiência de 4 de maio de 2017,

vistas as observações apresentadas:

em representação de OL, por C. Athanasopoulos e A. Alexopoulou, dikigoroi,

em representação de PQ, por S. Sfakianaki, dikigoros,

em representação do Governo helénico, por T. Papadopoulou, G. Papadaki e A. Magrippi, na qualidade de agentes,

[conforme retificado por despacho de 14 de setembro de 2017] em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon, na qualidade de agente, assistido por E. Devereux, QC,

em representação da Comissão Europeia, por M. Konstantinidis, M. Wilderspin e A. Katsimerou, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de maio de 2017,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe OL a PQ a respeito de um pedido de regresso, apresentado por OL, da filha de ambos, que se encontra na Grécia, Estado‑Membro em que nasceu e onde permanece com a sua mãe, a Itália, onde se situava a residência habitual do casal antes do nascimento da filha.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada em Haia, em 25 de outubro de 1980 (a seguir «Convenção de Haia de 1980»), tem por objetivo, conforme decorre do seu preâmbulo, designadamente, proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual. Esta Convenção foi ratificada por todos os Estados‑Membros da União Europeia.

4

O artigo 1.o da Convenção de Haia de 1980 estipula:

«A presente Convenção tem por objetivo:

a)

Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;

b)

Fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante.»

5

Nos termos do artigo 3.o dessa Convenção:

«A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:

a)

Tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e

b)

Este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.»

6

O artigo 5.o, alínea a), da referida Convenção prevê que, nos termos da mesma, o «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência.

7

O artigo 8.o desta mesma Convenção estipula:

«Qualquer pessoa, instituição ou organismo que julgue que uma criança tenha sido deslocada ou retirada em violação de um direito de custódia pode participar o facto à autoridade central da residência habitual da criança ou à autoridade central de qualquer outro Estado Contratante, para que lhe seja prestada assistência por forma a assegurar o regresso da criança.

[…]»

8

O artigo 11.o, primeiro parágrafo, da Convenção de Haia de 1980 prevê que as autoridades judiciais ou administrativas dos Estados Contratantes deverão adotar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança.

Direito da União

9

Os considerandos 12 e 17 do Regulamento n.o 2201/2003 enunciam:

«(12)

As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

[…]

(17)

Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a [Convenção de Haia de 1980], completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.o […]»

10

O artigo 2.o deste regulamento contém as seguintes definições:

«[…]

7)

“Responsabilidade parental”, o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita.

8)

“Titular da responsabilidade parental”, qualquer pessoa que exerça a responsabilidade parental em relação a uma criança.

9)

“Direito de guarda”, os direitos e as obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência.

[…]

11)

“Deslocação ou retenção ilícitas de uma criança”, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:

a)

Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção;

e

b)

No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê‑lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera‑se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre o local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.»

11

Nos termos do artigo 8.o do referido regulamento, com a epígrafe «Competência geral»:

«1.   Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.   O n.o 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.°, 10.° e 12.°»

12

O artigo 10.o do mesmo regulamento, com a epígrafe «Competência em caso de rapto da criança», prevê:

«Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado‑Membro e:

a)

Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção;

ou

b)

A criança ter estado a residir nesse outro Estado‑Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:

i)

não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado‑Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,

ii)

o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),

iii)

o processo instaurado num tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.o 7 do artigo 11.o,

iv)

os tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.»

13

O artigo 11.o do Regulamento n.o 2201/2003, com a epígrafe «Regresso da criança», dispõe:

«1.   Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na [Convenção de Haia de 1980], a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

[…]

3.   O tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança, nos termos do disposto no n.o 1, deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional.

Sem prejuízo do disposto no primeiro parágrafo, o tribunal deve pronunciar‑se o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem.

[…]»

Direito grego

14

Resulta das informações contidas na decisão de reenvio que, na Grécia, um pedido de regresso, na aceção da Convenção de Haia de 1980, deve ser apresentado no Monomeles Protodikeio [Tribunal de Primeira Instância (Juiz Singular)] do lugar onde a criança em causa se encontra após o seu rapto ou do lugar do domicílio do autor desse rapto. Esse pedido pode ser apresentado pelo Ministério da Justiça — que é, nesse Estado‑Membro, a autoridade central encarregada dos pedidos de regresso — ou diretamente pela pessoa, pelo estabelecimento ou pelo organismo que invoque o direito de guarda sobre a criança. Este pedido é tratado como um processo de medidas provisórias, mas a decisão proferida pelo órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se dirime definitivamente o litígio relativo ao regresso da criança.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

15

Resulta da decisão de reenvio assim como das observações escritas e orais apresentadas ao Tribunal de Justiça que OL, cidadão italiano, e PQ, cidadã grega, se casaram em 1 de dezembro de 2013, em Itália, Estado‑Membro onde seguidamente passaram a viver juntos, no município de Sassoferrato.

16

Quando PQ estava grávida de oito meses, os cônjuges decidiram que PQ daria à luz a sua filha em Atenas (Grécia), onde poderia beneficiar da assistência da sua família paterna, e que, depois, PQ regressaria com a filha ao domicílio conjugal em Itália.

17

Assim, os cônjuges deslocaram‑se a Atenas, onde, em 3 de fevereiro de 2016, PQ deu à luz uma menina que, desde então, permanece aí com a sua mãe. Em seguida, OL regressou a Itália. Segundo as suas afirmações, OL terá consentido que a criança residisse na Grécia até maio de 2016, altura em que aguardava o regresso da sua mulher com a filha. Contudo, em junho do mesmo ano, PQ decidiu, unilateralmente, permanecer na Grécia com a filha.

18

Segundo PQ, os cônjuges não tinham determinado uma data precisa para o seu regresso com a criança a Itália. PQ afirma, designadamente, que, em maio de 2016 e, depois, em junho do mesmo ano, OL a foi visitar à Grécia. Além disso, terão acordado passar juntos as férias de verão nesse Estado‑Membro.

19

Em 20 de julho de 2016, OL apresentou no Tribunale ordinario di Ancona (Tribunal de Ancona, Itália) um pedido de divórcio. Nesse âmbito, pediu, designadamente, que lhe fosse atribuída a guarda exclusiva da criança, que fosse estabelecido um direito de visita da mãe, ordenado o regresso da criança a Itália e que lhe fosse concedida uma pensão de alimentos para a manutenção da mesma. Por decisão de 7 de novembro de 2016, o referido órgão jurisdicional decidiu que não se devia pronunciar sobre os pedidos relativos à responsabilidade parental sobre a criança, pelo facto de esta residir, desde o seu nascimento, num Estado‑Membro diferente da Itália. OL interpôs recurso dessa decisão, que foi confirmada, em 20 de janeiro de 2017, pela Corte d’appello di Ancona (Tribunal de Recurso de Ancona). Por outro lado, por decisão de 23 de janeiro de 2017, o Tribunale ordinario di Ancona (Tribunal de Ancona) recusou pronunciar‑se sobre o pedido de pensão de alimentos, também pelo facto de a residência habitual da criança não se situar em Itália. Por último, em 23 de fevereiro de 2017, o referido órgão jurisdicional proferiu o divórcio de OL e de PQ, sem decidir sobre a responsabilidade parental relativa à criança.

20

Paralelamente ao processo nos órgãos jurisdicionais italianos, OL apresentou, em 20 de outubro de 2016, no Monomeles Protodikeio Athinon [Tribunal de Primeira Instância (Juiz Singular) de Atenas, Grécia], um pedido de regresso relativamente à criança.

21

A este respeito, o referido órgão jurisdicional entende que, embora seja certo que a criança não foi «deslocada», na aceção do artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 ou do artigo 3.o da Convenção de Haia de 1980, de um Estado‑Membro para o outro, foi, todavia, retida ilicitamente pela sua mãe na Grécia, sem que o pai tivesse consentido que a residência habitual da criança fosse aí fixada, quando os progenitores exercem conjuntamente a responsabilidade parental sobre esta última.

22

O referido órgão jurisdicional entende que situações em que uma criança nasce num lugar que não apresenta ligação com a residência habitual dos seus progenitores — por exemplo, por razões fortuitas ou de força maior, como uma viagem dos progenitores a um país estrangeiro — e, em seguida, é deslocada ou ilicitamente retida por um deles dão origem a violações flagrantes dos direitos dos progenitores e a um verdadeiro afastamento da criança do local que, segundo o curso natural das coisas, teria sido a sua residência habitual. Essas situações devem, por esses motivos, inserir‑se no âmbito do processo de regresso previsto pela Convenção de Haia de 1980 e pelo Regulamento n.o 2201/2003.

23

A presença física de uma criança num determinado lugar não deve, portanto, ser um pré‑requisito para aí estabelecer a sua «residência habitual», na aceção do artigo 11.o do Regulamento n.o 2201/2003. Com efeito, no caso particular dos recém‑nascidos e das crianças em idade lactente, os fatores que normalmente permitem determinar a residência habitual perdem a sua pertinência em razão da dependência total dessas crianças de tenra idade das pessoas à guarda de quem se encontram. Além disso, o próprio Tribunal de Justiça considera que o requisito relativo à presença física da criança é de menor importância no caso de crianças em idade lactente, na medida em que, no acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi (C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829), declarou que a permanência de alguns dias dessa criança em idade lactente num determinado lugar, juntamente com outros elementos, é suficiente para aí estabelecer a sua residência habitual.

24

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, para determinar a residência habitual de um recém‑nascido ou de uma criança em idade lactente, é preferível utilizar como fator primordial a intenção comum dos titulares da responsabilidade parental, que pode ser deduzida dos preparativos que estes últimos efetuaram para acolher a criança, como a declaração de nascimento da mesma no registo civil do lugar da sua residência habitual, a compra do vestuário indispensável ou de móveis de criança, a preparação do seu quarto ou ainda o arrendamento de uma casa maior.

25

Nestas condições, o Monomeles Protodikeio Athinon (Tribunal de Primeira Instância (Juiz Singular) de Atenas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Que interpretação deve ser dada aos termos “residência habitual”, na aceção do artigo 11.o, n.o 1, do [Regulamento n.o 2201/2003], no caso de uma criança em idade lactente que, devido a circunstâncias fortuitas ou por motivo de força maior, nasceu num lugar que não é aquele que os seus progenitores, que exercem conjuntamente as responsabilidades parentais, tinham previsto para a sua residência habitual e que, desde então, está retida ilicitamente por um dos seus progenitores no Estado em que nasceu, ou que foi deslocada para um Estado terceiro[?] Mais especificamente, a presença física é sempre uma condição prévia necessária e evidente para determinar a residência habitual de uma pessoa, designadamente de um recém‑nascido?»

Quanto à tramitação prejudicial urgente

26

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

27

O referido órgão jurisdicional fundamentou o seu pedido no facto de o litígio no processo principal dizer respeito a uma criança de apenas um ano que foi afastada do seu pai durante mais de nove meses, sem que este tivesse tido a possibilidade de comunicar com ela, e de essa situação ser suscetível de lesar gravemente a relação futura entre os dois.

28

A este respeito, há que salientar, em primeiro lugar, que o presente reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento n.o 2201/2003, adotado com base, nomeadamente, no artigo 61.o, alínea c), CE, atual artigo 67.o TFUE, que figura no título V da parte III do Tratado FUE, relativo ao espaço de liberdade, segurança e justiça. É, por conseguinte, suscetível de ser submetido à tramitação prejudicial urgente.

29

Em segundo lugar, resulta da decisão de reenvio que a criança em causa está separada do seu pai numa idade sensível para o seu desenvolvimento e que o prolongamento da situação atual pode prejudicar seriamente a relação futura desta criança com o seu pai.

30

Nestas circunstâncias, a Quinta Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 16 de março de 2017, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação prejudicial urgente.

Quanto à questão prejudicial

31

A título preliminar, há que salientar que as circunstâncias do processo principal diferem parcialmente das descritas na questão prejudicial.

32

Com efeito, resulta da decisão de reenvio que a filha de OL e de PQ nasceu na Grécia, não por «circunstâncias fortuitas ou por motivo de força maior» mas por vontade comum dos seus progenitores, para que PQ pudesse beneficiar da assistência da sua família paterna antes do parto e nos primeiros meses de vida da criança. Também é manifesto que, em seguida, não foi «deslocada para um Estado terceiro». Além disso, embora o órgão jurisdicional de reenvio evoque, na sua questão, quer um «recém‑nascido» quer uma «criança em idade lactente», há que observar que, na medida em que, imediatamente antes da alegada retenção, ou seja, em junho de 2016, essa criança já tinha cinco meses, o processo principal diz respeito a uma criança em idade lactente.

33

Ora, em conformidade com uma jurisprudência constante, não cabe ao Tribunal de Justiça formular opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas (acórdão de 16 de julho de 1992, Meilicke, C‑83/91, EU:C:1992:332, n.o 25, e despacho de 11 de janeiro de 2017, Boudjellal, C‑508/16, não publicado, EU:C:2017:6, n.o 32).

34

Não obstante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao órgão jurisdicional nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas (v., designadamente, acórdão de 13 de outubro de 2016, M. e S., C‑303/15, EU:C:2016:771, n.o 16 e jurisprudência referida).

35

Como tal, a questão submetida deve ser entendida no sentido de que o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, como deve ser interpretado o conceito de «residência habitual», na aceção do artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, para determinar se está perante uma «retenção ilícita», numa situação, como a que está em causa no processo a principal, em que uma criança nasceu e residiu ininterruptamente com a sua mãe, durante vários meses, segundo a vontade comum dos seus progenitores, num Estado‑Membro diferente daquele onde estes últimos tinham residência habitual antes do seu nascimento. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, nessa situação, a intenção inicial dos progenitores quanto ao regresso da mãe com a criança a este Estado‑Membro é um fator preponderante para se considerar que essa criança tem aí a sua «residência habitual», na aceção desse regulamento, independentemente do facto de nunca ter estado fisicamente presente no referido Estado‑Membro.

36

A este respeito, cabe recordar que, segundo a definição formulada no artigo 2.o, n.o 11, do Regulamento n.o 2201/2003, em termos muito semelhantes aos do artigo 3.o da Convenção de Haia de 1980, o conceito de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança» se refere à deslocação ou à retenção de uma criança que ocorreu em violação de um direito de guarda conferido por uma decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do «Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção».

37

Por outro lado, o artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 prevê que as disposições deste artigo são aplicáveis quando o titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na Convenção de Haia de 1980, a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida «num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas».

38

Resulta destas disposições que o conceito de «residência habitual» constitui um elemento central para apreciar a procedência de um pedido de regresso. Com efeito, esse pedido só pode proceder se, imediatamente antes da deslocação ou da retenção alegada, a criança tivesse a sua residência habitual no Estado‑Membro ao qual o seu regresso é pedido.

39

Quanto ao que se deve entender pela expressão «residência habitual» da criança, há que recordar que o Regulamento n.o 2201/2003, tal como a Convenção de Haia de 1980, não define esse conceito. Os artigos deste regulamento que o referem também não incluem uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros, para definir o seu sentido e o seu alcance.

40

Assim, o Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que se trata de um conceito autónomo de direito da União, que deve ser interpretado à luz do contexto das disposições que o mencionam e dos objetivos do Regulamento n.o 2201/2003, designadamente do que resulta do seu considerando 12, segundo o qual as regras de competência que este estabelece são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade (v. acórdãos de 2 de abril de 2009, A,C‑523/07, EU:C:2009:225, n.os 34 e 35, e de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 44 a 46).

41

Por outro lado, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o conceito de «residência habitual» deve ter um significado uniforme no Regulamento n.o 2201/2003. Assim, a interpretação dada a este conceito no âmbito dos artigos 8.° e 10.° desse regulamento, relativos à competência internacional dos órgãos jurisdicionais em matéria de responsabilidade parental, é transponível para o artigo 11.o, n.o 1, do referido regulamento (v., neste sentido, acórdão de 9 de outubro de 2014, C, C‑376/14 PPU, EU:C:2014:2268, n.o 54).

42

Segundo esta mesma jurisprudência, a «residência habitual» da criança corresponde ao lugar que revelar uma determinada integração desta num ambiente social e familiar. Esse lugar deve ser estabelecido pelo órgão jurisdicional nacional tendo em conta o conjunto das circunstâncias de facto específicas de cada caso (acórdãos de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.os 42 e 44, e de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.o 47).

43

Para tal, além da presença física da criança num Estado‑Membro, devem também ser tidos em consideração outros fatores suscetíveis de demonstrar que essa presença não tem de modo nenhum caráter temporário ou ocasional e que a residência da criança revela essa integração num ambiente social e familiar (acórdãos de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 38).

44

Entre esses fatores figuram a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência da criança no território de um Estado‑Membro, bem como a sua nacionalidade (v., neste sentido, acórdão de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 39). Além disso, os fatores pertinentes variam em função da idade da criança em causa (acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.o 53).

45

Tratando‑se de uma criança em idade lactente, o Tribunal salientou que o seu ambiente é essencialmente familiar, determinado pela pessoa ou pelas pessoas de referência com quem vive, que a guardam efetivamente e que cuidam dela, e que ela partilha necessariamente o ambiente social e familiar dessa pessoa ou dessas pessoas. Em consequência, quando, como sucede no processo principal, uma criança em idade lactente está efetivamente à guarda da mãe, num Estado‑Membro diferente daquele onde o pai reside habitualmente, deve ter‑se em conta, designadamente, por um lado, a duração, a regularidade, as condições e as razões da sua permanência no território do primeiro Estado‑Membro e, por outro, as origens geográficas e familiares da mãe, bem como as relações familiares e sociais mantidas por esta e pela criança no mesmo Estado‑Membro (v. acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 54 a 56).

46

Quanto à intenção dos progenitores de se estabelecerem com a criança noutro Estado‑Membro, o Tribunal reconheceu que também pode ser tida em conta, quando expressa em determinadas circunstâncias exteriores, como a aquisição ou a locação de uma habitação no Estado‑Membro de acolhimento (v., neste sentido, acórdão de 2 de abril de 2009, A, C‑523/07, EU:C:2009:225, n.o 40).

47

[Conforme retificado por despacho de 12 de junho de 2017] Assim, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a intenção dos progenitores não pode, em princípio, por si só, ser decisiva para determinar a residência habitual de uma criança, na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, mas constitui um «indício» suscetível de completar um conjunto de outros elementos concordantes.

48

É certo que o peso a atribuir a esta consideração, para determinar o lugar da residência habitual da criança, depende das circunstâncias específicas do caso concreto (v., neste sentido, acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os 50 e 51).

49

Sendo assim, cabe recordar que, no processo principal, como se sublinhou no n.o 32 do presente acórdão, a criança nasceu num Estado‑Membro determinado em conformidade com a vontade comum dos seus progenitores e que, imediatamente antes da retenção alegada, tinha aí residido durante cinco meses consecutivos com a sua mãe, no seio da família paterna desta última, sem nunca sair do território do referido Estado.

50

Nestas circunstâncias, se a intenção inicialmente expressa pelos progenitores quanto ao regresso da mãe com a criança a um segundo Estado‑Membro, que era o da residência habitual comum antes do nascimento da criança, fosse entendida como uma consideração preponderante, definindo de facto uma regra geral e abstrata segundo a qual a residência habitual de uma criança em idade lactente é necessariamente a dos seus progenitores, isso iria além dos limites do conceito de «residência habitual», na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, e seria contrário à sistemática, à eficácia e à finalidade do processo de regresso. Por último, o superior interesse da criança não exige uma interpretação como a que é proposta pelo órgão jurisdicional de reenvio.

51

A este respeito, em primeiro lugar, há que recordar que o conceito de «residência habitual», na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, reflete essencialmente uma questão de facto. Seria, portanto, dificilmente conciliável com esse conceito considerar que a intenção inicial dos progenitores de que a criança residisse num determinado lugar prevalecesse sobre a circunstância de que reside ininterruptamente noutro Estado desde o seu nascimento.

52

Em segundo lugar, à luz da sistemática da Convenção de Haia de 1980 e do artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, o argumento segundo o qual os progenitores exercem conjuntamente o direito de guarda e que, portanto, a mãe não podia decidir sozinha o lugar de residência da criança não pode ser determinante para estabelecer a «residência habitual» desta última, na aceção deste regulamento.

53

Com efeito, em conformidade com a definição de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança», que figura no artigo 2.o, n.o 11, do referido regulamento e no artigo 3.o da Convenção de Haia de 1980, recordada no n.o 36 do presente acórdão, a legalidade ou ilegalidade de uma deslocação ou retenção é apreciada em função dos direitos de guarda atribuídos nos termos do direito do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da sua deslocação ou retenção. Assim, no âmbito da apreciação de um pedido de regresso, a determinação do lugar da residência habitual da criança precede a identificação dos direitos de guarda eventualmente violados.

54

Por conseguinte, o consentimento ou a falta de consentimento do pai, no exercício do seu direito de guarda, em que a criança se estabeleça num lugar não pode ser uma consideração decisiva para determinar a «residência habitual» dessa criança, na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, o que, aliás, está de acordo com a ideia de que esse conceito reflete essencialmente uma questão de facto.

55

Esta interpretação é, além disso, corroborada pelo artigo 10.o desse regulamento, que prevê, precisamente, a situação em que a criança adquire uma nova residência habitual na sequência de uma deslocação ou retenção ilícitas.

56

Em terceiro lugar, num processo como o da causa principal, considerar a intenção inicial dos progenitores como um fator preponderante para determinar a residência habitual da criança seria contrário à eficácia do processo de regresso e à segurança jurídica.

57

A este respeito, cabe recordar que um processo de regresso é, por natureza, um processo célere, uma vez que visa garantir, como previsto no preâmbulo da Convenção de Haia de 1980 e no considerando 17 do Regulamento n.o 2201/2003, o regresso imediato da criança. Além disso, o legislador da União concretizou esse imperativo no artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003, impondo aos tribunais aos quais seja apresentado o pedido de regresso que se pronunciem, exceto em circunstâncias excecionais, o mais tardar, no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido.

58

Um pedido de regresso deve, portanto, fundar‑se em elementos rápida e facilmente verificáveis e, tanto quanto possível, unívocos. Ora, num processo como o da causa principal, pode ser difícil ou mesmo impossível determinar, para além de qualquer dúvida razoável, designadamente, a data inicialmente prevista pelos progenitores para o regresso da mãe ao Estado‑Membro da sua residência habitual e se a decisão da mãe de permanecer no Estado‑Membro de nascimento da criança é a causa ou, pelo contrário, a consequência do pedido de divórcio apresentado pelo pai nos órgãos jurisdicionais do primeiro Estado.

59

Em suma, adotar, nesse contexto, uma interpretação do conceito de «residência habitual» da criança, na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, em que a intenção inicial dos progenitores quanto ao lugar que «devia ter sido» o dessa residência constituiria o fator predominante seria suscetível de obrigar os órgãos jurisdicionais nacionais a recolher um grande número de provas e de testemunhos para determinar com segurança a referida intenção, o que seria dificilmente compatível com o caráter célere do processo de regresso, ou a proferir as suas decisões sem dispor de todos os elementos pertinentes, o que seria fonte de insegurança jurídica.

60

Em quarto lugar, num processo como o da causa principal, uma interpretação do conceito de «residência habitual» como a sugerida pelo órgão jurisdicional de reenvio seria contrária à finalidade do processo de regresso.

61

Com efeito, resulta do relatório explicativo da Convenção de Haia de 1980 que um dos objetivos dessa Convenção, e, por maioria de razão, do artigo 11.o do Regulamento n.o 2201/2003, é o restabelecimento do statu quo ante, ou seja, da situação que existia anteriormente à deslocação ou retenção ilícitas da criança. O processo de regresso tem, portanto, por objetivo reinseri‑la no ambiente que lhe é mais familiar e, desse modo, restabelecer a continuidade das suas condições de existência e de desenvolvimento.

62

Ora, numa situação como a do processo principal, de acordo com esse objetivo, o suposto comportamento ilícito de um dos progenitores não pode, por si só, justificar o deferimento de um pedido de regresso e que a criança seja deslocada do Estado‑Membro onde nasceu e reside regularmente de maneira contínua para um Estado‑Membro que não lhe é familiar.

63

É certo que o processo de regresso previsto pela Convenção de Haia de 1980 e pelo Regulamento n.o 2201/2003 também tem por finalidade que um dos progenitores não possa reforçar a sua posição quanto à questão da guarda da criança subtraindo‑se, por uma via de facto, à competência dos órgãos jurisdicionais em princípio designados, em conformidade com as regras previstas designadamente por esse regulamento, para decidir sobre a responsabilidade parental relativamente a esta última (v., neste sentido, acórdãos de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 49, e de 9 de outubro de 2014, C, C‑376/14 PPU, EU:C:2014:2268, n.o 67).

64

A este respeito, deve, todavia, sublinhar‑se que, no que se refere ao processo principal, não foi apresentado nenhum indício suscetível de fazer presumir a vontade da mãe de se subtrair às regras de competência previstas por esse regulamento em matéria de responsabilidade parental.

65

Por outro lado, cabe precisar que uma decisão sobre o regresso ou a retenção da criança não regula a questão da guarda da mesma. Neste sentido, a impossibilidade de beneficiar de um procedimento de regresso no processo principal não prejudica a faculdade do pai de invocar os seus direitos sobre a criança através de uma ação de mérito sobre a responsabilidade parental, intentada nos órgãos jurisdicionais competentes para dela decidir nos termos das disposições do Regulamento n.o 2201/2003, na qual poderá ser efetuada uma apreciação aprofundada de todas as circunstâncias, incluindo do comportamento dos progenitores (v., por analogia, acórdão de 5 de outubro de 2010, McB., C‑400/10 PPU, EU:C:2010:582, n.o 58).

66

Por último, e na medida em que, como indicado no n.o 40 do presente acórdão, o conceito de «residência habitual», na aceção do Regulamento n.o 2201/2003, deve ser interpretado em função do superior interesse da criança, há que sublinhar que esta consideração primordial não implica, no caso vertente, uma interpretação como a proposta pelo órgão jurisdicional de reenvio. Em especial, o direito de a criança manter relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, previsto no artigo 24.o, n.o 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União, não impõe a partida da criança para o Estado‑Membro onde se localizava a residência destes últimos antes do seu nascimento. Com efeito, este direito fundamental poderá ser salvaguardado no âmbito de uma ação de mérito sobre o direito de guarda, como descrita no número anterior, na qual a questão da guarda poderá ser reavaliada e, se necessário, poderão ser estabelecidos direitos de visita.

67

Além disso, também é conforme com o critério da proximidade, privilegiado pelo legislador da União no âmbito do Regulamento n.o 2201/2003 precisamente para garantir que o superior interesse da criança seja tido em conta, que eventuais decisões que lhe digam respeito sejam tomadas pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde a criança reside continuamente desde o seu nascimento (v., neste sentido, acórdãos de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 36, e de 15 de julho de 2010, Purrucker, C‑256/09, EU:C:2010:437, n.o 91).

68

Em todo o caso, o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento que possa levar a pensar que, nas circunstâncias específicas que caracterizam o processo principal, o superior interesse da criança seria afetado.

69

Por estes motivos, num processo como o da causa principal, o artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 não pode ser interpretado no sentido de que, imediatamente antes da retenção alegada pelo pai, a criança tinha a sua «residência habitual», na aceção dessa disposição, no Estado‑Membro da residência habitual dos seus progenitores antes do seu nascimento. Como tal, a recusa da mãe em regressar com a criança a esse Estado não pode constituir «deslocação ou retenção ilícitas» da criança, na aceção da referida disposição.

70

Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que, numa situação, como a que está em causa no processo principal, em que uma criança nasceu e residiu ininterruptamente com a sua mãe, durante vários meses, segundo a vontade comum dos seus progenitores, num Estado‑Membro diferente daquele onde estes últimos tinham a sua residência habitual antes do seu nascimento, a intenção inicial dos progenitores quanto ao regresso da mãe com a criança a este último Estado‑Membro não permite considerar que essa criança tem a sua «residência habitual» no referido Estado‑Membro, na aceção desse regulamento.

Por conseguinte, nessa situação, a recusa da mãe em regressar com a criança a esse mesmo Estado‑Membro não pode ser considerada como «deslocação ou retenção ilícitas» da criança, na aceção do referido artigo 11.o, n.o 1.

Quanto às despesas

71

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

O artigo 11.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que, numa situação, como a que está em causa no processo principal, em que uma criança nasceu e residiu ininterruptamente com a sua mãe, durante vários meses, segundo a vontade comum dos seus progenitores, num Estado‑Membro diferente daquele onde estes últimos tinham a sua residência habitual antes do seu nascimento, a intenção inicial dos progenitores quanto ao regresso da mãe com a criança a este último Estado‑Membro não permite considerar que essa criança tem a sua «residência habitual» no referido Estado‑Membro, na aceção desse regulamento.

 

Por conseguinte, nessa situação, a recusa da mãe em regressar com a criança a esse mesmo Estado‑Membro não pode ser considerada como «deslocação ou retenção ilícitas» da criança, na aceção do referido artigo 11.o, n.o 1.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: grego.