ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

28 de fevereiro de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 51.o — Regularização das propostas — Diretiva 2004/17/CE — Clarificação das propostas — Legislação nacional que subordina ao pagamento de uma sanção pecuniária a regularização, pelos proponentes, da documentação a apresentar — Princípios relativos à adjudicação dos contratos públicos — Princípio da igualdade de tratamento — Princípio da proporcionalidade»

Nos processos apensos C‑523/16 e C‑536/16

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália), por Decisões de 13 e de 15 de julho de 2016, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 12 e em 24 de outubro de 2016, nos processos

MA.T.I. SUD SpA

contra

Centostazioni SpA,

sendo interveniente:

China Taiping Insurance Co. Ltd (C‑523/16),

e

Duemme SGR SpA

contra

Associazione Cassa Nazionale di Previdenza e Assistenza in favore dei Ragionieri e Periti Commerciali (CNPR) (C‑536/16),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: J. Malenovský, presidente de secção, D. Šváby e M. Vilaras (relator), juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Duemme SGR SpA, por F. Brunetti e F. Scanzano, avvocati,

em representação da Associazione Cassa Nazionale di Previdenza e Assistenza in favore dei Ragionieri e Periti Commerciali (CNPR), por M. Brugnoletti, avvocato,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. Sclafani, avvocato dello Stato,

em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e C. Zadra, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de novembro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação dos artigos 45.o e 51.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114), e dos princípios da maior concorrência possível, da proporcionalidade, da igualdade de tratamento e da não discriminação em matéria de processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, de serviços e de fornecimentos.

2

No processo C‑523/16, o pedido de decisão prejudicial foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a MA.T.I. SUD SpA à Societa Centostazioni SpA, a respeito de um processo de adjudicação de um contrato relativo a «operações integradas de manutenção, ordinária e extraordinária, [e] fornecimento de energia aos imóveis das estações ferroviárias pertencentes à rede da Centostazioni».

3

No processo C‑536/16, o pedido de decisão prejudicial foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Duemme SGR SpA (a seguir «Duemme») à Associazione Cassa Nazionale di Previdenza e Assistenza in favore dei Ragionieri e Periti Commerciali (CNPR) [Associação Caixa Nacional de Previdência e de Assistência dos Contabilistas e dos Revisores Oficiais de Contas (CNPR)], a respeito de um concurso público para a celebração de um acordo‑quadro de gestão da carteira de títulos da CNPR.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2004/17/CE

4

O considerando 9 da Diretiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (JO 2004, L 134, p. 1), prevê:

«A fim de garantir a abertura à concorrência dos contratos públicos adjudicados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, é aconselhável estabelecer disposições que instituam uma coordenação comunitária dos contratos que ultrapassem um certo valor. Essa coordenação é baseada nos corolários dos artigos 14.o, 28.o e 49.o do Tratado CE e do artigo 97.o do Tratado Euratom, ou seja, o princípio da igualdade de tratamento, de que o princípio da não discriminação não é mais do que uma expressão particular, e os princípios do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Tendo em conta a natureza dos setores afetados por essa coordenação, esta deverá criar um enquadramento para práticas comerciais leais e permitir a maior flexibilidade possível, salvaguardando simultaneamente a aplicação dos referidos princípios.

[…]»

5

O artigo 10.o da referida diretiva, com a epígrafe «Princípios de adjudicação dos contratos», dispõe:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

Diretiva 2004/18

6

O considerando 2 da Diretiva 2004/18 prevê:

«A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado, nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não‑discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Todavia, no que se refere aos contratos públicos que ultrapassem um determinado valor, é aconselhável estabelecer disposições que instituam uma coordenação comunitária dos procedimentos nacionais para a adjudicação dos contratos públicos que se baseiem nesses princípios por forma a garantir os seus efeitos e a abertura à concorrência dos contratos públicos. Por conseguinte, tais disposições de coordenação devem ser interpretadas em conformidade com as regras e princípios atrás referidos, bem como com as restantes regras do Tratado.»

7

O artigo 2.o desta diretiva, também com a epígrafe «Princípios de adjudicação dos contratos», dispõe:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

8

O artigo 45.o da referida diretiva prevê:

«1.   Fica excluído de participar num procedimento de contratação pública o candidato ou proponente que tenha sido condenado por decisão final transitada em julgado de que a entidade adjudicante tenha conhecimento, com fundamento num ou mais dos motivos a seguir enunciados:

a)

Participação em atividades de uma organização criminosa, tal como definida no n.o 1 do artigo 2.o da Ação Comum [98/733/JAI, de 21 de dezembro de 1998, adotada pelo Conselho com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa à incriminação da participação numa organização criminosa nos Estados‑Membros da União Europeia (JO 1998, L 351, p. 1)];

b)

Corrupção, na aceção do artigo 3.o do Ato do Conselho de 26 de maio de 1997 [que aprova a Convenção estabelecida com base no n.o 2, alínea c), do artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados‑Membros da União Europeia (JO 1997, C 195, p. 1),] e do n.o 1 do artigo 3.o da Ação Comum 98/742/JAI do Conselho, [de 22 de dezembro de 1998, adotada pelo Conselho com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa à corrupção no setor privado (JO 1998, L 358, p. 2)];

c)

Fraude, na aceção do artigo 1.o da Convenção [estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia,] relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (JO 1995, C 316, p. 49);

d)

Branqueamento de capitais, na aceção do artigo 1.o da Diretiva 91/308/CEE do Conselho, de 10 de junho de 1991, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais [(JO 1991, L 166, p. 77)].

Em conformidade com a sua legislação nacional e na observância do direito comunitário, os Estados‑Membros especificarão as condições de aplicação do presente número.

Os Estados‑Membros poderão prever uma derrogação à obrigação referida no primeiro parágrafo por razões imperativas de interesse geral.

Para efeitos da aplicação do presente número, as entidades adjudicantes solicitarão, se for caso disso, aos candidatos ou proponentes que forneçam os documentos referidos no n.o 3, podendo, sempre que tenham dúvidas sobre a situação pessoal desses candidatos/proponentes, contactar as autoridades competentes para obter as informações relativas à sua situação pessoal que considerem necessárias. Sempre que essas informações digam respeito a um candidato ou proponente estabelecido num Estado que não seja o Estado da entidade adjudicante, esta poderá pedir a cooperação das autoridades competentes. De acordo com a legislação nacional do Estado‑Membro onde os candidatos ou proponentes estiverem estabelecidos, esses pedidos relacionar‑se‑ão com pessoas coletivas e/ou singulares, incluindo, se for caso disso, os dirigentes de empresas ou quaisquer pessoas que disponham de poderes de representação, decisão ou controlo do candidato ou proponente.

2.   Pode ser excluído do procedimento de contratação [o operador económico que]:

a)

Se encontre em situação de falência, de liquidação, ou de cessação de atividade, ou se encontre sujeito a qualquer meio preventivo da liquidação de patrimónios ou em qualquer situação análoga resultante de um processo da mesma natureza nos termos da legislação e regulamentação nacionais;

b)

Tenha pendente processo de declaração de falência, de liquidação, de qualquer meio preventivo da liquidação de patrimónios ou qualquer outro processo da mesma natureza nos termos da legislação e regulamentação nacionais;

c)

Tenha sido condenado por sentença com força de caso julgado nos termos da lei do país, por delito que afete a sua honorabilidade profissional;

d)

Tenha cometido falta grave em matéria profissional, comprovada por qualquer meio que as entidades adjudicantes possam apresentar;

e)

Não tenha cumprido as suas obrigações no que respeita ao pagamento de contribuições para a segurança social, de acordo com as disposições legais do país onde se encontra estabelecido ou do país da entidade adjudicante;

f)

Não tenha cumprido as suas obrigações relativamente ao pagamento de impostos e contribuições, de acordo com as disposições legais do país onde se encontra estabelecido ou do país da entidade adjudicante;

g)

Tenha prestado, com culpa grave, falsas declarações ao fornecer as informações que possam ser exigidas nos termos da presente secção ou não tenha prestado essas informações.

Em conformidade com a sua legislação nacional e na observância do direito comunitário, os Estados‑Membros especificarão as condições de aplicação do presente número.

3.   As entidades adjudicantes devem aceitar como prova bastante de que o operador económico não se encontra abrangido por nenhum dos casos referidos no n.o 1 e nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.o 2:

a)

Relativamente aos casos previstos no n.o 1 e nas alíneas a), b) e c) do n.o 2, a apresentação de um certificado de registo criminal ou, na sua falta, de documento equivalente emitido pela autoridade judicial ou administrativa competente do país de origem ou de proveniência, do qual resulte que aqueles requisitos se encontram satisfeitos;

b)

Relativamente aos casos previstos nas alíneas e) ou f) do n.o 2, um certificado emitido pela entidade competente do Estado‑Membro em causa.

Se o país em causa não emitir os documentos ou certificados ou se estes não se referirem a todos os casos mencionados no n.o 1 e nas alíneas a), b) ou c) do n.o 2, podem os mesmos ser substituídos por uma declaração sob juramento ou, nos Estados‑Membros onde não exista tal tipo de declaração, por declaração solene feita pelo interessado perante a autoridade judicial ou administrativa competente, um notário ou um organismo profissional qualificado do seu país de origem ou de proveniência.

4.   Os Estados‑Membros designarão as autoridades e entidades competentes para a emissão dos documentos, certificados ou declarações referidos no n.o 3 e do facto informarão a Comissão. Esta comunicação não prejudica o direito aplicável em matéria de proteção de dados.»

9

O artigo 51.o da Diretiva 2004/18 prevê:

«A entidade adjudicante pode convidar os operadores económicos a complementar ou a explicitar os certificados e documentos apresentados em aplicação dos artigos 45.o a 50.o»

Direito italiano

10

O artigo 38.o, n.o 2‑bis do decreto legislativo n. 163 — Codice dei contratti pubblici relativi a lavori, servizi e forniture in attuazione delle direttive 2004/17/CE e 2004/18/CE (Decreto Legislativo n.o 163, que aprova o Código dos Contratos de Empreitada de Obras Públicas, dos Contratos Públicos de Fornecimento e dos Contratos Públicos de Serviços em transposição das Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE), de 12 de abril de 2006 (suplemento ordinário ao GURI, n.o 100, de 2 de maio de 2006) (a seguir «Código dos Contratos Públicos») previa:

«A falta, o caráter incompleto e qualquer outra irregularidade substancial dos elementos e das declarações substitutivas previstas no n.o 2 obrigam o proponente que as tenha provocado a pagar à entidade adjudicante, da sanção pecuniária especificada no anúncio do concurso, cujo montante não pode ser inferior a um por mil nem superior a um por cento do valor do contrato e, em qualquer caso, não superior a 50000 euros, cujo pagamento é garantido pela caução provisória. Em tais casos, a entidade adjudicante concede ao proponente um prazo, não superior a dez dias, para apresentar, complementar ou regularizar as declarações requeridas, e indica o seu conteúdo e as pessoas obrigadas a fazê‑lo. Em caso de irregularidades não substanciais, isto é, de falta ou de caráter incompleto de declarações não indispensáveis, a entidade adjudicante não exige a sua retificação nem aplica nenhuma sanção. Caso o prazo referido na segunda frase do presente artigo seja excedido, o proponente é excluído do concurso. Para efeitos do cálculo das médias no âmbito do procedimento ou da determinação do limiar de anomalia das propostas, não pode ser considerada relevante nenhuma alteração a uma proposta, incluindo na sequência de uma decisão judicial, após a fase de admissão, regularização ou exclusão das propostas».

11

O artigo 46.o do Código dos Contratos Públicos dispunha que, «[d]entro dos limites previstos nos artigos 38.o a 45.o, as entidades adjudicantes convidam, se necessário, os proponentes a completar ou a explicitar o conteúdo dos certificados, dos documentos ou das declarações apresentados».

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

Processo C‑523/16

12

A Centostazioni, que faz parte do grupo Ferrovie dello Stato Italiane SpA, lançou, por anúncio publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 8 de janeiro de 2016, um concurso público para a adjudicação de um contrato público no valor estimado de 170864780,81 euros, sem o imposto sobre o valor acrescentado (IVA), tendo por objeto as «operações integradas de manutenção, ordinária e extraordinária, [e] o fornecimento de energia aos imóveis das estações ferroviárias» que fazem parte da sua rede, por um período de 36 meses. Este contrato estava dividido em quatro lotes geográficos (sul, centro‑sul, centro‑norte e noroeste, centro‑norte e nordeste) a adjudicar segundo o critério da proposta economicamente mais vantajosa.

13

O ponto VI.3, alínea w), do referido anúncio de concurso previa a possibilidade de a entidade adjudicante pedir a regularização, sob pena de exclusão do concurso, de qualquer proposta incompleta ou irregular, implicando este pedido o pagamento, pelo proponente chamado a regularizar a sua proposta, de uma sanção pecuniária de 35000 euros, em conformidade com o disposto no artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos.

14

O ponto 1.1, alínea G), do caderno de encargos relativo ao mencionado contrato previa que a proposta apresentada por um agrupamento temporário de empresas ainda não constituído em pessoa coletiva devia ser acompanhada, a título da documentação administrativa exigida, por uma declaração ad hoc contendo o compromisso, em caso de adjudicação do lote, de outorgar o mandato especial coletivo de representação à empresa «líder» a designar nominativamente (a seguir «declaração de compromisso»). Essa declaração de compromisso devia ser assinada por todas as empresas que compõem o grupo, esclarecendo‑se que, quando um proponente participava de forma diferente em vários lotes, devia apresentar uma declaração de compromisso para cada lote.

15

A MA.T.I. SUD, na sua qualidade de responsável pelo agrupamento temporário de empresas constituído com a Graded SpA (a seguir «gupo»), apresentou um processo de candidatura para os lotes 1 e 2 do concurso.

16

Em 16 de março de 2016, a comissão de adjudicação salientou que a declaração de compromisso exigida para a adjudicação do lote 2, que designa a MA.T.I. SUD como a empresa que lidera o grupo, não continha a assinatura do seu representante legal. Por conseguinte, em conformidade com o artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, a entidade adjudicante convidou o referido grupo, por um lado, a sanar essa irregularidade no prazo de sete dias, sob pena de exclusão do concurso, e, por outro, a pagar uma sanção pecuniária de 35000 euros.

17

Em 21 de março de 2016, a MA.T.I. enviou a declaração de compromisso exigida, assinada pelos representantes legais das duas sociedades que compõem o grupo. Pediu ainda a anulação da sanção pecuniária aplicada por a declaração em causa não «estar em falta, não ser incompleta nem padecer de uma irregularidade substancial». Alega, a este respeito, que o caderno de encargos em causa só exigia uma declaração de compromisso para cada um dos lotes no caso de o grupo entender neles participar «de uma forma distinta». Ora, no caso vertente, o grupo declarou pretender participar nos lotes 1 e 2 da mesma forma, com a MA.T.I. SUD como líder, tendo apresentado uma declaração de compromisso para o lote 1 contendo todos os elementos requeridos.

18

Em 30 de março de 2016, a entidade adjudicante solicitou à MA.T.I. SUD o pagamento do montante da sanção pecuniária aplicada, informando que, na sua falta, esse montante seria retirado da garantia provisória.

19

Em 7 de abril de 2016, a MA.T.I. SUD pediu ao Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália) a suspensão e a anulação da referida sanção pecuniária, alegando, nomeadamente, que não tinha cometido nenhuma irregularidade substancial na apresentação dos documentos preparatórios da participação no procedimento de concurso.

20

O órgão jurisdicional de reenvio expõe que o mecanismo da retificação do processo, instituído pelo artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, levanta dúvidas quanto à sua compatibilidade com o direito da União, nomeadamente com o artigo 51.o da Diretiva 2004/18, que prevê a possibilidade de complementar ou explicitar os certificados e documentos que acompanham as propostas apresentadas no âmbito de um concurso público, mas sem prever qualquer sanção, e com os princípios da proporcionalidade, da exaustividade das causas de exclusão, da transparência dos procedimentos, da mais ampla participação possível no concurso e da maior concorrência possível.

21

Aquele órgão jurisdicional salienta que, embora, de uma maneira geral, o mecanismo da retificação do processo se afigure conforme com o artigo 51.o da Diretiva 2004/18, de que constitui uma adaptação, o mesmo não acontece com a sanção pecuniária que o acompanha. Além de encorajar uma forma de «caça ao erro» por parte das entidades adjudicantes, essa particularidade produz efeitos dissuasores da participação dos proponentes nos concursos públicos, na medida em que os mesmos se expõem ao risco de lhes serem aplicadas sanções pecuniárias consideráveis, unicamente devido às irregularidades substanciais que afetam a sua proposta, independentemente da sua intenção de recorrerem à retificação do processo.

22

O órgão jurisdicional de reenvio observa, em especial, que esta sanção é definida previamente pela entidade adjudicante e, ainda que entre o limite mínimo de um por mil e o limite máximo de um por cento, com o limite absoluto de 50000 euros, de forma amplamente discricionária, que não pode ser adaptada em função da gravidade da irregularidade cometida e que é aplicada de forma automática a cada irregularidade substancial verificada.

23

Este órgão jurisdicional também salienta que a introdução de uma retificação ao processo a título oneroso, prevista no artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, tem por objetivo, por um lado, garantir a seriedade dos pedidos de participação e das propostas apresentadas, e portanto responsabilizar os proponentes na apresentação dos documentos relativos ao concurso, e, por outro, indemnizar a entidade adjudicante pelo aumento da atividade de controlo que lhe incumbe.

24

No entanto, o referido órgão jurisdicional considera que, tendo em conta as características da sanção que prevê, este mecanismo não é compatível com o princípio da proporcionalidade, na medida em que a sua execução pode conduzir ao pagamento à entidade adjudicante de uma indemnização manifestamente desproporcionada às atividades suplementares a que tem, eventualmente, de fazer face. Uma sanção económica considerável é tanto mais desproporcionada quanto o prazo para a apresentação dos documentos a complementar é reduzido (dez dias) e não implica, portanto, um prolongamento excessivo do concurso. Também não é compatível com o princípio da igualdade de tratamento, na medida em que uma sanção do mesmo montante pode ser aplicada a um proponente que cometeu uma irregularidade substancial mas de alcance limitado, e a um proponente que cometeu incumprimentos graves das estipulações do anúncio do concurso. Este mecanismo também viola o princípio da maior concorrência possível pelos seus efeitos dissuasores na participação das empresas, em especial as pequenas e médias empresas, nos concursos para a adjudicação de contratos públicos.

25

Nestas circunstâncias, o Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Embora os Estados‑Membros tenham a faculdade de impor o caráter oneroso da retificação do processo com efeitos de regularização, é ou não contrário ao direito da União o artigo 38.o, n.o 2‑bis, do [Código dos Contratos Públicos], com a redação em vigor à data do anúncio em causa […], na medida em que prevê o pagamento de uma “sanção pecuniária”, de valor a fixar pela entidade adjudicante (“não inferior a um por mil e não superior a um por cento do valor do concurso e, em qualquer caso, não superior a 50000 euros, cujo pagamento é garantido pela caução provisória”), atendendo ao montante excessivamente elevado e ao caráter predeterminado de tal sanção, que não é adaptável em função da situação concreta ou da gravidade da irregularidade sanável?

2)

O mesmo artigo 38.o, n.o 2‑bis, do [Código dos Contratos Públicos] é contrário ao direito [da União], na medida em que tal onerosidade da retificação do processo pode ser considerada contrária aos princípios da máxima abertura do mercado à concorrência, que o referido instituto representa, com a consequência de a atividade imposta a este respeito à comissão de adjudicação ser abrangida pelos deveres que lhe são impostos pela lei, atendendo ao interesse público de prosseguir o objetivo acima indicado?»

Processo C‑536/16

26

Em outubro de 2014, a CNPR lançou, por anúncio publicado no Jornal Oficial da União Europeia, um concurso público para a celebração de um acordo‑quadro de gestão da sua carteira de títulos, no valor estimado de 20650000,00 euros, sem o IVA, que pretendia confiar a cinco entidades.

27

O anúncio de concurso previa, em aplicação do artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, que, no caso de a declaração estar em falta, ser incompleta ou, em qualquer outro caso, se verificar uma irregularidade substancial, o proponente teria de pagar uma sanção pecuniária de 50000 euros, dispondo de um prazo de dez dias para complementar e/ou regularizar essa declaração através da apresentação dos documentos em falta.

28

O caderno de encargos relativo ao contrato em causa precisava que os proponentes deviam apresentar, sob pena de exclusão, uma declaração sob compromisso de honra que atestasse estarem reunidas as condições previstas no artigo 38.o do Código dos Contratos Públicos.

29

Durante a sua primeira sessão pública, a comissão de adjudicação em causa abriu os envelopes administrativos e verificou que a Duemme não tinha juntado as declarações sob compromisso de honra mencionadas, que atestavam que o seu vice‑presidente e o seu diretor‑geral não tinham sido objeto de nenhuma condenação transitada em julgado. Por conseguinte, em aplicação do disposto no artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos e do artigo 7.o do referido caderno de encargos, convidou a Duemme a apresentar as declarações em falta e a pagar a sanção pecuniária correspondente, a saber, 50000 euros.

30

A Duemme complementou a documentação exigida no prazo concedido, mas recusou‑se a pagar integralmente essa sanção pecuniária, contestando o seu fundamento. A CNRP intimou então a Duemme ao pagamento da referida sanção pecuniária, informando‑a de que, em caso de recusa, procederia ao levantamento do seu montante da caução provisória.

31

Em 9 de janeiro de 2015, a Duemme recorreu para o Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio), pedindo a anulação da referida sanção pecuniária, tendo, nomeadamente, invocado a incompatibilidade do artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos com o artigo 51.o da Diretiva 2004/18. Paralelamente, a empresa proponente pagou à entidade adjudicante 8500 euros a título de pagamento da sanção reduzida, quantia que foi aceite por esta última como pagamento por conta.

32

Nestas circunstâncias, o Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais idênticas às submetidas no processo C‑523/16.

33

Por decisão de 15 de novembro de 2016, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu apensar os processos C‑523/16 e C‑536/16 para efeitos das fases escrita e oral do processo, bem como do acórdão.

Observações preliminares

34

A título preliminar, deve observar‑se que apesar de, tanto no processo C‑523/16 como no processo C‑536/16, as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio se referirem de forma muito geral à interpretação do direito da União, sem qualquer outra precisão, este último esclareceu, contudo, nas suas decisões de reenvio de reenvio, que tinha dúvidas acerca da compatibilidade do artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, por um lado, com o artigo 51.o da Diretiva 2004/18 e os princípios da maior concorrência possível, da igualdade de tratamento, da transparência e da proporcionalidade e, por outro, com o artigo 59.o, n.o 4, segundo parágrafo, da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO 2014, L 94, p. 65).

35

No entanto, tendo em conta as datas de publicação dos anúncios de concurso em causa no processo principal, a saber, o mês de janeiro de 2016, no processo C‑523/16, e o mês de outubro de 2014, no processo C‑536/16, a Diretiva 2014/24, cujo prazo de transposição expirou em 18 de abril de 2016, em conformidade com o seu artigo 90.o, não é aplicável ratione temporis aos litígios dos processos principais.

36

Com efeito, estas datas são necessariamente posteriores ao momento em que a entidade adjudicante escolheu o tipo de procedimento que entendeu adotar e dirimiu definitivamente a questão de saber se existia ou não uma obrigação de proceder à abertura prévia de um concurso para a adjudicação do contrato público em causa. Ora, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a diretiva aplicável no domínio dos processos de adjudicação de contratos públicos é, em princípio, a que está em vigor no momento em que a entidade adjudicante faz essa escolha. Em contrapartida, são inaplicáveis as disposições de uma diretiva cujo prazo de transposição expirou após esse momento (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de outubro de 2000, Comissão/França, C‑337/98, EU:C:2000:543, n.os 36, 37, 41 e 42; de 11 de julho de 2013, Comissão/Países Baixos, C‑576/10, EU:C:2013:510, n.os 52 a 54; de 10 de julho de 2014, Impresa Pizzarotti, C‑213/13, EU:C:2014:2067, n.os 31 a 33; de 7 de abril de 2016, Partner Apelski Dariusz, C‑324/14, EU:C:2016:214, n.o 83; e de 27 de outubro de 2016, Hörmann Reisen, C‑292/15, EU:C:2016:817, n.os 31 e 32).

37

Por outro lado, importa salientar que, tendo em conta o objeto do contrato em causa no processo C‑523/16, é com toda a probabilidade aplicável, como observa a Comissão, a Diretiva 2004/17 e não a Diretiva 2004/18.

38

Ora, a Diretiva 2004/17 não contém disposições equivalentes às do artigo 51.o da Diretiva 2004/18.

39

Todavia, importa recordar a este respeito que, não obstante a inexistência, na Diretiva 2004/17, de qualquer disposição expressa nesse sentido, o Tribunal de Justiça admitiu que a entidade adjudicante possa convidar um proponente a clarificar uma proposta ou a retificar um erro material manifesto que a mesma comporte, sem prejuízo do respeito por um determinado número de exigências e, em especial, que esse convite seja dirigido a todos os proponentes que se encontrem na mesma situação, que todos os proponentes sejam tratados de forma igual e leal e que essa clarificação ou essa retificação não possa ser equiparada à apresentação de uma nova proposta (v., neste sentido, Acórdão de 11 de maio de 2017, Archus e Gama, C‑131/16, EU:C:2017:358, n.os 29 e 39 e jurisprudência referida).

40

Por outro lado, resulta das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que o artigo 230.o do Código dos Contratos Públicos prevê que o artigo 38.o, n.o 2‑bis, do referido código é aplicável aos setores especiais visados pela Diretiva 2004/17.

41

Por último, conforme foi recordado no n.o 34 do presente acórdão, mesmo que, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado os pedidos de decisão prejudicial à interpretação do artigo 51.o da Diretiva 2004/18, essa circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a decisão dos processos que lhe estão submetidos, quer esse órgão lhes tenha ou não feito referência no enunciado dessas questões (v., neste sentido, Acórdãos de 12 de dezembro de 1990, SARPP, C‑241/89, EU:C:1990:459, n.o 8, e de 24 de janeiro de 2008, Lianakis e o., C‑532/06, EU:C:2008:40, n.o 23).

42

Nessas condições, explicitando‑se que é ao órgão jurisdicional de reenvio que incumbe determinar qual a diretiva aplicável no processo C‑523/16, as questões submetidas ao Tribunal de Justiça nos dois pedidos de decisão prejudicial de que é chamado a conhecer devem ser entendidas como tendo por objeto não apenas o artigo 51.o da Diretiva 2004/18, mas também, em sentido mais amplo, os princípios da adjudicação dos contratos públicos, nomeadamente os princípios da igualdade de tratamento e da transparência, previstos tanto no artigo 10.o da Diretiva 2004/17 como no artigo 2.o da Diretiva 2004/18, e o princípio da proporcionalidade.

Quanto às questões prejudiciais

43

Com as suas duas questões prejudiciais, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União, nomeadamente o artigo 51.o da Diretiva 2004/18, os princípios relativos à adjudicação dos contratos públicos, entre os quais figuram os princípios da igualdade de tratamento e da transparência previstos no artigo 10.o da Diretiva 2004/17 e no artigo 2.o da Diretiva 2004/18, e o princípio da proporcionalidade devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que estabelece um mecanismo de retificação do processo, nos termos do qual a entidade adjudicante pode, no âmbito de um processo de adjudicação de um contrato público, convidar qualquer proponente cuja proposta padeça de irregularidades substanciais, na aceção da referida legislação, a regularizar a sua proposta, sem prejuízo do pagamento de uma sanção pecuniária, cujo montante elevado, fixado antecipadamente pela entidade adjudicante e garantido pela caução provisória, não pode ser adaptado em função da gravidade da irregularidade sanada.

44

Em primeiro lugar, importa recordar que o artigo 51.o da Diretiva 2004/18 prevê que, no âmbito de um processo de adjudicação de um contrato público, a entidade adjudicante pode convidar os operadores económicos a complementar ou a explicitar os certificados e documentos apresentados em aplicação dos artigos 45.o a 50.o da referida diretiva.

45

Esta disposição limita‑se assim a prever a simples possibilidade de a entidade adjudicante convidar os proponentes que apresentam uma proposta no âmbito de um concurso público a complementar ou a explicitar a documentação a apresentar para a apreciação das condições de admissibilidade da sua proposta, que demonstre a sua capacidade económica e financeira e os seus conhecimentos ou capacidades profissionais e técnicas. Nem esta nem nenhuma outra disposição da Diretiva 2004/18 esclarecem sobre as modalidades em que essa regularização pode ser efetuada ou sobre as condições a que, eventualmente, pode estar sujeita.

46

Daqui resulta que, no âmbito das medidas de transposição da Diretiva 2004/18 que os Estados‑Membros devem adotar, estes são, em princípio, como salientou o advogado‑geral no n.o 57 das conclusões, livres não só de prever essa possibilidade de regularização das propostas no seu direito nacional (v., neste sentido, Acórdão de 24 de maio de 2016, MT Højgaard e Züblin, C‑396/14, EU:C:2016:347, n.o 35), mas também de a regulamentar.

47

A este título, os Estados‑Membros podem portanto decidir subordinar essa possibilidade de regularização ao pagamento de uma sanção pecuniária, como prevê, no presente caso, o artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos.

48

Todavia, quando implementam a possibilidade prevista no artigo 51.o da Diretiva 2004/18, os Estados‑Membros devem assegurar que não fique comprometida a realização dos objetivos prosseguidos por esta diretiva e não seja prejudicado nem o efeito útil das suas disposições nem o de outras disposições e princípios relevantes do direito da União, especialmente os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação, da transparência e da proporcionalidade (v., nesse sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Falk Pharma, C‑410/14, EU:C:2016:399, n.o 34).

49

Importa igualmente recordar que o artigo 51.o da Diretiva 2004/18 não pode ser interpretado como permitindo à entidade adjudicante aceitar quaisquer retificações às omissões que, segundo as disposições expressas dos documentos do concurso, devem conduzir à exclusão do proponente (Acórdãos de 6 de novembro de 2014, Cartiera dell’Adda, C‑42/13, EU:C:2014:2345, n.o 46, e de 10 de novembro de 2016, Ciclat, C‑199/15, EU:C:2016:853, n.o 30).

50

Em segundo lugar, ainda que a Diretiva 2004/17 não contenha uma disposição equivalente ao artigo 51.o da Diretiva 2004/18, o Tribunal de Justiça declarou que nenhuma destas duas diretivas se opõe a que os dados relativos à proposta de um concorrente possam ser corrigidos ou completados pontualmente, no caso de necessitarem obviamente de uma clarificação, ou para se eliminar erros materiais manifestos, desde que seja respeitado um determinado número de exigências (Acórdãos de 29 de março de 2012, SAG ELV Slovensko e o., C‑599/10, EU:C:2012:191, n.o 40, e de 11 de maio de 2017, Archus e Gama, C‑131/16, EU:C:2017:358, n.o 29 e jurisprudência referida).

51

O Tribunal de Justiça decidiu assim, nomeadamente, que um pedido de clarificação não pode suprir a falta de um documento ou de uma informação cuja comunicação era requerida pelos documentos do concurso, estando a entidade adjudicante obrigada a observar estritamente os critérios que ela própria fixou (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de outubro de 2013, Manova, C‑336/12, EU:C:2013:647, n.o 40, e de 11 de maio de 2017, Archus e Gama, C‑131/16, EU:C:2017:358, n.o 33).

52

Com efeito, esse pedido não pode conduzir à apresentação, por um proponente em causa, do que se revelaria, na realidade, ser uma nova proposta (Acórdãos de 29 de março de 2012, SAG ELV Slovensko e o., C‑599/10, EU:C:2012:191, n.o 40, e de 11 de maio de 2017, Archus e Gama, C‑131/16, EU:C:2017:358, n.o 31).

53

Em terceiro lugar, importa recordar que, em conformidade com o princípio da proporcionalidade, que constitui um princípio geral do direito da União e que a adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros deve respeitar, como resulta tanto do considerando 9 da Diretiva 2004/17 como do considerando 2 da Diretiva 2004/18, as medidas adotadas pelos Estados‑Membros não devem exceder o necessário para alcançar esse objetivo (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 2008, Michaniki, C‑213/07, EU:C:2008:731, n.os 48 e 61; de 19 de maio de 2009, Assitur, C‑538/07, EU:C:2009:317, n.os 21 e 23; de 23 de dezembro de 2009, Serrantoni e Consorzio stabile edili, C‑376/08, EU:C:2009:808, n.o 33, e de 22 de outubro de 2015, Impresa Edilux e SICEF, C‑425/14, EU:C:2015:721, n.o 29).

54

É à luz das considerações precedentes que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, o único competente para apurar e apreciar os factos dos litígios nos processos principais, analisar se, tendo em conta as circunstâncias desses dois processos, as regularizações solicitadas pelas entidades adjudicantes tinham por objeto a apresentação de documentos cuja falta deveria levar à exclusão dos proponentes ou se, pelo contrário, constituíam, com toda a evidência, simples pedidos de clarificação de propostas que necessitavam de ser pontualmente corrigidas ou completadas ou de ser objeto de uma correção de erros materiais manifestos.

55

Dito isto, importa declarar que, como salientou o advogado‑geral nos n.os 60 e 61 das conclusões, o próprio conceito de irregularidade substancial, que não está definido no artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, não se afigura compatível nem com o disposto no artigo 51.o da Diretiva 2004/18 nem com os requisitos a que está subordinada a clarificação de uma proposta no âmbito de um contrato público abrangido pela Diretiva 2004/17, por força da jurisprudência do Tribunal de Justiça recordada nos n.os 49 a 52 do presente acórdão.

56

Daqui resulta que o mecanismo da retificação do processo previsto no artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos não pode ser aplicado no caso de a proposta apresentada pelo proponente não poder ser regularizada ou clarificada na aceção da jurisprudência recordada nos n.os 49 a 52 do presente acórdão e que, por conseguinte, nenhuma sanção lhe pode ser aplicada nesse caso.

57

Nestas circunstâncias, só na hipótese de o órgão jurisdicional de reenvio chegar à conclusão de que os pedidos de regularização ou de clarificação formulados pelas entidades adjudicantes cumprem os requisitos recordados nos n.os 49 a 52 do presente acórdão é que lhe compete analisar a questão de saber se as sanções pecuniárias aplicadas nos dois processos principais, em aplicação do artigo 38.o, n.o 2‑bis, do Código dos Contratos Públicos, respeitaram o princípio da proporcionalidade.

58

No entanto, chamado a dar respostas úteis às questões do órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça tem competência para lhe fornecer indicações baseadas nos autos do processo principal e nas observações escritas e orais que lhe foram apresentadas, suscetíveis de lhe permitir decidir (v., neste sentido, Acórdãos de 30 de março de 1993, Thomas e o., C‑328/91, EU:C:1993:117, n.o 13; de 14 de março de 2017, G4S Secure Solutions, C‑157/15, EU:C:2017:203, n.o 36; e de 21 de setembro de 2017, SMS Group, C‑441/16, EU:C:2017:712, n.o 48).

59

No caso vertente, há que declarar que, em conformidade com o artigo 38.o, n.o 2‑bis do Código dos Contratos Públicos, é à entidade adjudicante que incumbe fixar, nos limites da moldura definida nesta disposição, o montante da sanção pecuniária suscetível de ser aplicada ao proponente chamado a regularizar a sua proposta.

60

O órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a atentar no facto de a sanção pecuniária ser fixada antecipadamente pela entidade adjudicante e de o seu montante ser elevado e não poder ser adaptado em função da gravidade da irregularidade sanada. Por outro lado, esclarece que a instauração dessa sanção é justificada pela necessidade, por um lado, de responsabilizar os proponentes, assim incitados a preparar com cuidado e diligência a sua proposta, e, por outro, de compensar o encargo adicional que representa qualquer regularização para a entidade adjudicante.

61

A este respeito, importa salientar, em primeiro lugar, que a fixação antecipada, pela entidade adjudicante, do montante da sanção no anúncio de concurso responde, certamente, como salientou a Comissão nas suas observações escritas, às exigências que decorrem dos princípios da igualdade de tratamento entre os proponentes, da transparência e da segurança jurídica, na medida em que permite objetivamente evitar qualquer tratamento discriminatório ou arbitrário destes pela referida entidade adjudicante.

62

No entanto, não é menos verdade que a aplicação automática da sanção assim antecipadamente fixada, independentemente da natureza das regularizações efetuadas pelo proponente negligente e, portanto, igualmente sem fundamentação individualizada, não se afigura compatível com as exigências decorrentes do respeito pelo princípio da proporcionalidade.

63

Em segundo lugar, importa salientar que a aplicação de uma sanção pecuniária constitui, é certo, um meio adequado para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos pelo Estado‑Membro, ligados à necessidade, por um lado, de responsabilizar os proponentes pela apresentação das suas propostas e, por outro, de compensar o encargo financeiro que qualquer regularização pode representar para a entidade adjudicante.

64

Todavia, como salientou o advogado‑geral no n.o 74 das conclusões, montantes de sanções como os fixados nos anúncios de concurso pelas entidades adjudicantes nos dois processos principais afiguram‑se manifestamente desproporcionados enquanto tal, tendo em conta os limites a que se devem ater tanto a regularização de uma proposta nos termos do artigo 51.o da Diretiva 2004/18 como a clarificação de uma proposta no âmbito da Diretiva 2004/17. Esse é, especialmente, o caso de uma sanção como a aplicada pela entidade adjudicante no processo C‑523/16, que se afigura manifestamente excessiva à luz dos factos imputados, a saber, a falta de assinatura de uma declaração de compromisso relativa à designação da sociedade que lidera o grupo que apresenta a proposta.

65

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas da forma seguinte:

O direito da União, nomeadamente o artigo 51.o da Diretiva 2004/18, os princípios relativos à adjudicação dos contratos públicos, entre os quais figuram os princípios da igualdade de tratamento e da transparência previstos no artigo 10.o da Diretiva 2004/17 e no artigo 2.o da Diretiva 2004/18, e o princípio da proporcionalidade devem ser interpretados no sentido de que não se opõem, em princípio, a uma legislação nacional que estabelece um mecanismo de retificação do processo, nos termos do qual a entidade adjudicante pode, no âmbito do processo de adjudicação de um contrato público, convidar qualquer proponente cuja proposta padeça de irregularidades substanciais, na aceção da referida legislação, a regularizar a sua proposta, sem prejuízo do pagamento de uma sanção pecuniária, desde que o montante desta sanção se mantenha compatível com o princípio da proporcionalidade, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

Em contrapartida, estas mesmas disposições e princípios devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que estabelece um mecanismo de retificação do processo, em aplicação do qual a entidade adjudicante pode exigir a um proponente, através do pagamento pelo mesmo de uma sanção pecuniária, que sane a falta de um documento que, segundo as disposições expressas dos documentos do contrato, deve conduzir à sua exclusão, ou que elimine as irregularidade que afetam a sua proposta de uma forma que as correções ou alterações operadas correspondam à apresentação de uma nova proposta.

Quanto às despesas

66

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

 

O direito da União, nomeadamente o artigo 51.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, os princípios relativos à adjudicação dos contratos públicos, entre os quais figuram os princípios da igualdade de tratamento e da transparência previstos no artigo 10.o da Diretiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, e no artigo 2.o da Diretiva 2004/18, e o princípio da proporcionalidade devem ser interpretados no sentido de que não se opõem, em princípio, a uma legislação nacional que estabelece um mecanismo de retificação do processo, nos termos do qual a entidade adjudicante pode, no âmbito do processo de adjudicação de um contrato público, convidar qualquer proponente cuja proposta padeça de irregularidades substanciais, na aceção da referida legislação, a regularizar a sua proposta, sem prejuízo do pagamento de uma sanção pecuniária, desde que o montante desta sanção se mantenha compatível com o princípio da proporcionalidade, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

 

Em contrapartida, estas mesmas disposições e princípios devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que estabelece um mecanismo de retificação do processo, em aplicação do qual a entidade adjudicante pode exigir a um proponente, através do pagamento pelo mesmo de uma sanção pecuniária, que sane a falta de um documento que, segundo as disposições expressas dos documentos do contrato, deve conduzir à sua exclusão, ou que elimine as irregularidade que afetam a sua proposta de uma forma que as correções ou alterações operadas correspondam à apresentação de uma nova proposta.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.