ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

20 de dezembro de 2017 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Transportes rodoviários — Períodos de repouso do condutor — Regulamento (CE) n.o 561/2006 — Artigo 8.o, n.os 6 e 8 — Possibilidade de gozar os períodos de repouso diário e os períodos de repouso semanal reduzido fora do local de afetação e no veículo — Exclusão dos períodos de repouso semanal regular»

No processo C‑102/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), por decisão de 4 de fevereiro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de fevereiro de 2016, no processo

Vaditrans BVBA

contra

Belgische Staat,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: E. Levits, presidente de secção, M. Berger (relatora) e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Vaditrans BVBA, por F. Vanden Bogaerde, advocaat,

em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck e J. Van Holm, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e A. Lippstreu, na qualidade de agentes,

em representação do Governo estónio, por K. Kraavi‑Käerdi, na qualidade de agente,

em representação do Governo espanhol, por V. Ester Casas, na qualidade de agente,

em representação do Governo francês, por R. Coesme e D. Colas, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

em representação do Parlamento Europeu, por L.G. Knudsen, M. Menegatti e R. van de Westelaken, na qualidade de agentes,

em representação do Conselho da União Europeia, por R. Wiemann e K. Michoel, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J. Hottiaux e F. Wilman, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 2 de fevereiro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento (CE) n.o 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.o 3821/85 e (CE) n.o 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.o 3820/85 do Conselho (JO 2006, L 102, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a Vaditrans BVBA e o Belgische Staat (Estado belga), a respeito da anulação do Koninklijk besluit tot wijziging van het koninklijk besluit van 19 juli 2000 betreffende de inning en de consignatie van een som bij het vaststellen van sommige inbreuken inzage het vervoer over de weg (Decreto Real que altera o Decreto Real de 19 de julho de 2000 relativo à cobrança e consignação de uma quantia em caso de constatação de algumas infrações relativas ao transporte rodoviário), de 19 de abril de 2014 (Moniteur belge de 11 de junho de 2014, p. 44159) (a seguir «Decreto Real de 19 de abril de 2014») que prevê, nomeadamente, uma sanção de 1800 euros a pagar pelos condutores dos camiões que gozem os seus períodos de repouso semanal obrigatório no seu veículo e não noutro local.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos dos considerandos 1, 17, 26 e 27 do Regulamento n.o 561/2006:

«(1)

No setor dos transportes rodoviários, o Regulamento (CEE) n.o 3820/85 do Conselho, de 20 de dezembro de 1985, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários [JO 1985, L 370, p. 1; EE 07 F4 p. 21], procurou harmonizar as condições de concorrência entre modos de transporte terrestre, principalmente no que se refere ao setor rodoviário, e melhorar as condições de trabalho e a segurança rodoviária. Os progressos alcançados nestes domínios deverão ser salvaguardados e ampliados.

[…]

(17)

O presente regulamento pretende melhorar as condições sociais dos empregados abrangidos pelo mesmo, bem como a segurança rodoviária em geral. Este objetivo é alcançado sobretudo mediante as disposições relativas aos tempos de condução máximos por dia, por semana e por períodos de duas semanas consecutivas, a disposição que impõe um período de repouso semanal regular aos condutores pelo menos uma vez em cada período de duas semanas consecutivas e as disposições que preveem que em caso algum o período de repouso diário poderá ser menor do que um período ininterrupto de nove horas. […]

[…]

(26)

Os Estados‑Membros deverão determinar o regime das sanções aplicáveis às violações do presente regulamento e assegurar a sua aplicação. As referidas sanções deverão ser eficazes, proporcionadas, dissuasivas e não discriminatórias. A possibilidade de imobilização do veículo em caso de infração grave deverá também ser incluída no âmbito comum das medidas que os Estados‑Membros podem aplicar. As disposições contidas no presente regulamento relativas às sanções ou ações penais não deverão afetar as regras nacionais relativas ao ónus da prova.

(27)

No interesse de uma execução clara e eficaz, é desejável assegurar disposições uniformes sobre a responsabilização das empresas transportadoras e dos condutores por infrações ao presente regulamento. Essa responsabilização poderá resultar em sanções de caráter penal, civil ou administrativo, consoante o regime aplicável em cada Estado‑Membro.»

4

O artigo 1.o desse regulamento prevê:

«O presente regulamento estabelece regras em matéria de tempos de condução, pausas e períodos de repouso para os condutores envolvidos no transporte rodoviário de mercadorias e de passageiros, visando harmonizar as condições de concorrência entre modos de transporte terrestre, especialmente no setor rodoviário, e melhorar as condições de trabalho e a segurança rodoviária. O presente regulamento pretende igualmente promover uma melhoria das práticas de controlo e aplicação da lei pelos Estados‑Membros e das práticas laborais no setor dos transportes rodoviários.»

5

O artigo 4.o do referido regulamento define, nas alíneas g) e h), o período de repouso diário e semanal:

«g)

“Período de repouso diário”: período diário durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo e que compreende um “período de repouso diário regular” ou um “período de repouso diário reduzido”.

“período de repouso diário regular”: período de repouso de, pelo menos, 11 horas. Em alternativa, este período de repouso diário regular pode ser gozado em dois períodos, o primeiro dos quais deve ser um período ininterrupto de, pelo menos, 3 horas e o segundo um período ininterrupto de, pelo menos, 9 horas;

“período de repouso diário reduzido”: período de repouso de, pelo menos, 9 horas, mas menos de 11 horas;

h)

“Período de repouso semanal”: período semanal durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo e que compreende um “período de repouso semanal regular” ou um “período de repouso semanal reduzido”:

“período de repouso semanal regular”: período de repouso de, pelo menos, 45 horas;

“período de repouso semanal reduzido”: período de repouso de menos de 45 horas, que pode, nas condições previstas no n.o 6 do artigo 8.o, ser reduzido para um mínimo de 24 horas consecutivas».

6

O artigo 8.o, n.o 6, do mesmo regulamento dispõe:

«Em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor deve gozar pelo menos:

dois períodos de repouso semanal regular, ou

um período de repouso semanal regular e um período de repouso semanal reduzido de, no mínimo, 24 horas — todavia, a redução deve ser compensada mediante um período de repouso equivalente, gozado de uma só vez, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão.

O período de repouso semanal deve começar o mais tardar no fim de seis períodos de 24 horas a contar do fim do período de repouso semanal anterior.»

7

O artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 enuncia:

«Caso o condutor assim o deseje, os períodos de repouso diário e os períodos de repouso semanal reduzido fora do local de afetação podem ser gozados no veículo, desde que este esteja equipado com instalações de dormida adequadas para cada condutor e não se encontre em andamento.»

8

O artigo 18.o desse regulamento dispõe:

«Os Estados‑Membros adotarão as disposições necessárias à aplicação do presente regulamento.»

9

O artigo 19.o, n.o 1, do referido regulamento prevê:

«Os Estados‑Membros devem determinar o regime de sanções aplicável às violações do disposto no presente regulamento e no Regulamento (CEE) n.o 3821/85 e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a sua aplicação. Essas sanções devem ser eficazes, proporcionadas, dissuasivas e não discriminatórias. Nenhuma infração ao presente regulamento e ao Regulamento (CEE) n.o 3821/85 será sujeita a mais de uma sanção ou processo […]».

Direito belga

10

O Relatório ao Rei que antecede o Decreto Real de 19 de abril de 2014 indica que este se inscreve no quadro de um plano de ação adotado pelo Conseil des ministres [Conselho de Ministros] em 28 de novembro de 2013 para lutar contra o destacamento fraudulento na Bélgica de trabalhadores nacionais da União Europeia, fenómeno conhecido sob a denominação de «dumping social».

11

O Decreto Real de 19 de abril de 2014 prevê, por um lado, um agravamento da coima por violação da obrigação de ter no veículo a guia de remessa e, por outro, uma coima por violação da proibição de gozar o período de repouso semanal regular no veículo.

12

O artigo 2.o do Decreto Real de 19 de abril de 2014 dispõe:

«No anexo 1, apêndice 1, do [Decreto Real de 19 de julho de 2000], é aditado à alínea c), Tempos de condução e períodos de repouso, um ponto 8, com a seguinte redação:

8

O período de repouso semanal regular que é obrigatório gozar no momento do controlo é gozado no veículo.

‑ Regulamento (CE) n.o 561/2006, artigo 8.o, n.os 6 e 8

‑ AETR, artigo 8.o

1 800 EUR

»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13

A Vaditrans, uma empresa de transportes estabelecida na Bélgica, interpôs, em 8 de agosto de 2014, no Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica) um recurso de anulação do Decreto Real de 19 de abril de 2014, nos termos do qual pode ser aplicada uma coima de 1800 euros quando o condutor de um camião gozar o seu repouso semanal regular no veículo.

14

Em apoio do seu recurso, a Vaditrans alega que o artigo 2.o do Decreto Real de 19 de abril de 2014 é incompatível com o princípio da legalidade das penas, uma vez que esta disposição sanciona o gozo do período de repouso semanal regular no veículo, ao passo que o Regulamento n.o 561/2006 não prevê essa proibição.

15

Em contrapartida, o Estado belga, representado pelo ministre de la Mobilité [Ministro da Mobilidade], considera que resulta claramente do Regulamento n.o 561/2006 que um condutor não pode gozar o seu período de repouso semanal regular no seu veículo.

16

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio constata que o Decreto Real de 19 de abril de 2014 se baseia no princípio, enunciado, nomeadamente, no artigo 8.o, n.os 6 e 8, do referido regulamento, segundo o qual um condutor está proibido de gozar o seu período de repouso semanal regular no seu veículo. Sem se pronunciar ainda quanto ao mérito da questão, o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe uma dúvida quanto à procedência desta tese e que se trata de uma questão de interpretação do direito da União, para a qual o Tribunal de Justiça é competente.

17

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio considera que se colocam mais duas questões, que também não aprecia, em função da resposta dada pelo Tribunal de Justiça à primeira questão acima referida. Na sua opinião, em caso de resposta afirmativa do Tribunal de Justiça, há que determinar se o Regulamento n.o 561/2006 é compatível com o princípio da legalidade das penas enunciado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). Em caso de resposta negativa, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se um Estado‑Membro pode introduzir, no seu direito interno, uma proibição como a que está em causa no processo principal.

18

Nestas circunstâncias, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento [n.o 561/2006] ser interpretado no sentido de que os períodos de repouso semanal regular referidos no artigo 8.o, n.o 6, do mesmo regulamento não podem ser gozados no veículo?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, o artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento [n.o 561/2006], lido em conjugação com o artigo 19.o do mesmo regulamento, viola o princípio da legalidade em direito penal consagrado no artigo 49.o da [Carta], pelo facto de as referidas disposições do Regulamento [n.o 561/2006] não preverem expressamente a proibição de gozar no veículo os períodos de repouso semanal regular referidos no artigo 8.o, n.o 6, do mesmo regulamento?

3)

Em caso de resposta negativa à primeira questão, o Regulamento [n.o 561/2006] permite que os Estados‑Membros prevejam, no respetivo direito interno, que é proibido gozar no veículo os períodos de repouso semanal regular referidos no artigo 8.o, n.o 6, do mesmo regulamento?

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

19

No que se refere à primeira questão, os Governos belga, alemão, francês e austríaco, bem como a Comissão Europeia, consideram que o artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 não permite que um condutor goze os períodos de repouso semanal regular no seu veículo. Em contrapartida, a Vaditrans e os Governos estónio e espanhol defendem a tese contrária.

20

A este respeito, cabe recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, deve ter‑se em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (v., nomeadamente, acórdão de 6 de julho de 2017, Air Berlin, C‑290/16, EU:C:2017:523, n.o 22 e jurisprudência referida) e, neste caso, a génese dessa regulamentação (acórdão de 1 de julho de 2015, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland, C‑461/13, EU:C:2015:433, n.o 30).

21

No que se refere, em primeiro lugar, aos termos do artigo 8.o, n.o 6, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 561/2006, há que observar que esta disposição prevê que, em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor deve gozar, pelo menos, dois períodos de repouso semanal regular ou um período de repouso semanal regular e um período de repouso semanal reduzido, mediante o cumprimento de certos requisitos.

22

O artigo 8.o, n.o 6, segundo parágrafo, do referido regulamento dispõe que o período de repouso semanal deve começar o mais tardar no fim de seis períodos de 24 horas a contar do fim do período de repouso semanal anterior.

23

Por último, o artigo 8.o, n.o 8, do referido regulamento prevê que, caso o condutor assim o deseje, os períodos de repouso diário e os períodos de repouso semanal reduzido fora do local de afetação podem ser gozados no veículo, desde que este esteja equipado com instalações de dormida adequadas para cada condutor e não se encontre em andamento.

24

O artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento n.o 561/2006 deve ser interpretado à luz do artigo 4.o desse regulamento, uma vez que este último artigo define os termos utilizados no referido regulamento.

25

O artigo 4.o, alínea f), do Regulamento n.o 561/2006 define «repouso» como o «período ininterrupto durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo».

26

O artigo 4.o, alínea g), do referido regulamento precisa o conceito de «período de repouso diário» como o «período diário durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo» e precisa que este compreende um «período de repouso diário regular» e um «período de repouso diário reduzido», antes de definir esses dois conceitos.

27

Segundo o artigo 4.o, alínea h), do mesmo regulamento, o «período de repouso semanal» é definido com sendo «o período semanal durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo» e que, além disso, este conceito compreende um «período de repouso semanal regular» e um «período de repouso semanal reduzido». Mais precisamente, o «período de repouso semanal regular» é definido como o «período de repouso de, pelo menos, 45 horas», ao passo que o «período de repouso semanal reduzido» designa o «período de repouso de menos de 45 horas, que pode, nas condições previstas no n.o 6 do artigo 8.o [do Regulamento n.o 561/2006], ser reduzido para um mínimo de 24 horas consecutivas».

28

Por conseguinte, o artigo 4.o, alíneas g) e h), do Regulamento n.o 561/2006 estabelece uma distinção na utilização respetiva dos conceitos de período de repouso diário e de período de repouso semanal, na medida em que estes podem ser regulares ou reduzidos.

29

Esta distinção está igualmente prevista no artigo 8.o, n.o 6, do referido regulamento, que se refere, no seu primeiro parágrafo, tanto ao período de repouso semanal regular como ao período de repouso semanal reduzido. Em contrapartida, o segundo parágrafo dessa disposição limita‑se a fazer referência ao «período de repouso semanal» abarcando, deste modo, os dois conceitos precedentes.

30

O artigo 8.o, n.o 8, do mesmo regulamento retoma a distinção estabelecida no artigo 4.o, alíneas g) e h), fazendo referência aos «períodos de repouso diário», que compreendem os períodos de repouso diário regular e reduzido, e aos «períodos de repouso semanal reduzido».

31

Uma vez que o artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 visa expressamente os períodos de repouso diário e os períodos de repouso semanal reduzido, daí resulta que um condutor não pode gozar o período de repouso semanal regular no veículo.

32

Com efeito, se o legislador da União tivesse querido visar, no artigo 8.o, n.o 8, do referido regulamento, simultaneamente os períodos de repouso semanal regular e os períodos de repouso semanal reduzido, podia ter‑se limitado a utilizar os termos «período de repouso semanal» para englobar os dois tipos de períodos de repouso.

33

Além disso, se todos os períodos de repouso de um condutor pudessem ser gozados no veículo, a distinção feita no artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 não faria sentido e esta disposição perderia assim o seu efeito útil.

34

Esta interpretação do artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 é corroborada pela génese desta disposição, na medida em que permite, através das alterações feitas à mesma, evidenciar a vontade do legislador da União.

35

Com efeito, pelos motivos mais amplamente desenvolvidos pelo advogado‑geral nos n.os 45 a 51 das suas conclusões, o processo de adoção do artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 permite concluir que o referido legislador tinha manifestamente a vontade de excluir os períodos de repouso semanal regular do âmbito de aplicação desta disposição.

36

Assim, há que constatar que a proposta inicial da Comissão relativa ao artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 [inicialmente artigo 8.o, n.o 6, v. Proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, COM(2001) 573 final, de 12 de outubro de 2001 (JO 2002, C 51 E, p. 234)] visava todos os períodos de repouso, ou seja, tanto os períodos de repouso diário como os períodos de repouso semanal, desde que o veículo, por um lado, estivesse equipado com instalações de dormida adequadas para cada condutor e, por outro, não se encontrasse em andamento.

37

Contudo, tendo o Parlamento Europeu suprimido, na Resolução legislativa de 14 de janeiro de 2003, sobre uma proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários (JO 2004, C 38 E, p. 152), a referência aos períodos de repouso semanal do texto da referida disposição pelo facto de que, sem essa alteração, o novo regime criaria uma situação inadequada, nomeadamente, do ponto de vista da higiene e do bem‑estar dos condutores, a Comissão apresentou um compromisso propondo que só o repouso semanal reduzido fora do local de afetação pudesse ser gozado no veículo [v. artigo 8.o, n.o 6, e ponto 26 da exposição de motivos, COM(2003) 0490 final].

38

O Conselho da União Europeia retomou esta abordagem na Posição Comum e, embora o Parlamento pretendesse mais uma vez proceder a uma alteração [Resolução legislativa do Parlamento Europeu, de 13 de abril de 2005, referente à posição comum adotada pelo Conselho tendo em vista a aprovação de um regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários e que altera os Regulamentos (CEE) n.o 3821/85 e (CE) n.o 2135/98 (JO 2006, C 33 E, p. 424)], essa abordagem foi finalmente seguida no projeto comum aprovado pelo Comité de Conciliação (Doc PE‑CONS 3671/3/05 VER 3, de 31 de janeiro de 2006; Resolução legislativa do Parlamento Europeu, de 2 de fevereiro de 2006; Doc 7580/06, de 21 de março de 2006) cuja redação foi reproduzida no artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006.

39

Em segundo lugar, no que respeita ao contexto em que o artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006 se inscreve, há que salientar que este confirma a interpretação que precede.

40

Com efeito, como resulta dos n.os 21 a 33 do presente acórdão, algumas disposições do Regulamento n.o 561/2006, no caso em apreço, o artigo 4.o, alíneas f) e g), e o artigo 8.o, n.o 6, desse regulamento que definem os conceitos que figuram no artigo 8.o, n.o 8, do referido regulamento, opõem‑se a qualquer outra interpretação sob pena de pôr em causa a estrutura que liga essas diferentes disposições.

41

Em terceiro lugar, no que respeita à finalidade do artigo 8.o, n.o 8, do Regulamento n.o 561/2006, é forçoso constatar que este corrobora igualmente a interpretação adotada nos n.os 31 a 33 do presente acórdão.

42

Deste modo, nos termos de uma jurisprudência constante, em conformidade com o considerando 17 e o artigo 1.o do referido regulamento, este tem por objetivo melhorar as condições de trabalho do pessoal do setor rodoviário, melhorar a segurança rodoviária em geral e harmonizar as condições de concorrência do transporte rodoviário (v., nomeadamente, acórdãos de 9 de fevereiro de 2012, Urbán, C‑210/10, EU:C:2012:64, n.o 25; de 9 de junho de 2016, Eurospeed, C‑287/14, EU:C:2016:420, n.os 38 e 39 e jurisprudência referida; e de 19 de outubro de 2016, EL‑EM‑2001, C‑501/14, EU:C:2016:777, n.o 21).

43

A interpretação segundo a qual o artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento n.o 561/2006 proíbe que o condutor goze os períodos de repouso semanal regular no veículo visa manifestamente atingir os objetivos desse regulamento, que consistem na melhoria das condições de trabalho dos condutores e da segurança rodoviária. A justificação avançada pelo Parlamento na Resolução legislativa de 14 de janeiro de 2003 confirma esta constatação.

44

A este respeito, deve igualmente salientar‑se que, mesmo que, como a Comissão defendeu no seu Parecer de 27 de junho de 2005 [COM(2005) 0301 final], a conceção dos veículos tenha melhorado consideravelmente nos 20 anos que antecederam o seu parecer e que a conceção das cabinas tenha certamente ainda conhecido desenvolvimentos nos últimos anos, não há dúvida de que uma cabina de camião não parece constituir um local de repouso adaptado a períodos de repouso mais longos do que os períodos de repouso diário e os períodos de repouso semanal reduzido. Os condutores devem ter a possibilidade de passar o seu período de repouso semanal regular num local que possua condições de alojamento adaptadas e adequadas.

45

Neste contexto, há igualmente que observar que, se o artigo 8.o do Regulamento n.o 561/2006 devesse ser interpretado no sentido de que os períodos de repouso semanal regular podem ser gozados pelo condutor no seu veículo, isso implicaria que um condutor poderia gozar todos os seus períodos de repouso na cabine do veículo. Assim, nesse caso, os períodos de repouso desse condutor seriam gozados num local que não reúne condições de alojamento adaptadas. Ora, tal interpretação do artigo 8.o do Regulamento n.o 561/2006 não é suscetível de contribuir para a realização do objetivo de melhorar as condições de trabalho dos condutores prosseguido por esse regulamento.

46

A Vaditrans e o Governo estónio alegam que tal interpretação pode ter por consequência a eventual deterioração das condições em que os condutores podem gozar os períodos de repouso semanal. Além disso, poderia ser difícil fazer prova do cumprimento deste requisito, uma vez que a carga administrativa dos condutores de veículos aumentaria consideravelmente.

47

A este respeito, há que constatar que, embora sendo certo que o Regulamento n.o 561/2006 não contém nenhuma disposição que regule explicitamente a maneira como o condutor do veículo deve gozar os seus períodos de repouso semanal regular, não é menos certo que considerações como as avançadas pela Vaditrans e o Governo estónio não podem, como salienta o advogado‑geral no n.o 62 das suas conclusões, justificar o incumprimento das disposições imperativas do referido regulamento respeitantes aos períodos de repouso dos condutores.

48

Em face do exposto, há que responder à primeira questão submetida que o artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento n.o 561/2006 deve ser interpretado no sentido de que um condutor não pode gozar no seu veículo os períodos de repouso semanal regular previstos no referido artigo 8.o, n.o 6.

Quanto à segunda questão

49

No que se refere à segunda questão, a Vaditrans e o Governo espanhol, propondo que se responda afirmativamente a esta questão, alegam que, na ausência de regras explícitas quanto a este ponto, interpretar o Regulamento n.o 561/2006 no sentido de que este se opõe a que um condutor goze os períodos de repouso semanal regular no veículo constituiria uma interpretação a contrario ou, por analogia, proibida pelo princípio da legalidade.

50

A este respeito, deve recordar‑se que o princípio da legalidade dos delitos e das penas (nullum crimen, nulla poena sine lege), tal como consagrado, nomeadamente, no artigo 49.o, n.o 1, da Carta, que constitui uma expressão particular do princípio geral da segurança jurídica, dispõe que ninguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional.

51

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esse princípio exige que uma regulamentação da União defina claramente as infrações e as penas que as punem. Este requisito está preenchido quando a pessoa interessada pode saber, a partir da redação da disposição pertinente e, se necessário, recorrendo à interpretação que lhe é dada pelos tribunais, quais os atos e omissões pelos quais responde penalmente (v., nomeadamente, acórdãos de 3 de junho de 2008, Intertanko e o., C‑308/06, EU:C:2008:312, n.o 71, e de 22 de outubro de 2015, AC‑Treuhand/ComissãoC‑194/14 P, EU:C:2015:717, n.o 40 e jurisprudência referida).

52

O princípio da legalidade dos delitos e das penas não pode, pois, ser interpretado no sentido de que proscreve a clarificação gradual das regras da responsabilidade penal pela interpretação judiciária casuística, desde que o resultado seja razoavelmente previsível no momento em que a infração foi cometida, atendendo, designadamente, à interpretação então acolhida na jurisprudência relativa à disposição legal em causa (acórdão de 22 de outubro de 2015, AC‑Treuhand/Comissão, C‑194/14 P, EU:C:2015:717, n.o 41 e jurisprudência referida)

53

Ora, há que observar, como resulta da resposta dada à primeira questão, que o artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento n.o 561/2006 contém uma proibição de gozar os períodos de repouso semanal regular no veículo sem que esta disposição contenha em si mesma qualquer sanção. O artigo 19.o deste regulamento também não determina qualquer sanção, mas, em contrapartida, impõe aos Estados‑Membros a obrigação de preverem sanções aplicáveis às violações do disposto nesse regulamento e de tomarem todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação dessas sanções.

54

Essas sanções devem, como resulta, de resto, igualmente do considerando 26 do Regulamento n.o 561/2006, ser eficazes, proporcionadas, dissuasivas e não discriminatórias. Embora o artigo 19.o desse regulamento imponha aos Estados‑Membros o preenchimento de requisitos adicionais a respeito das regras a estabelecer relativas às sanções aplicáveis às violações do referido regulamento, esses requisitos não têm, contudo, incidência na natureza das sanções, o que é confirmado pelo considerando 27 do mesmo regulamento segundo o qual, em caso de violação desse regulamento, os Estados‑Membros podem aplicar sanções de caráter penal, civil ou administrativo.

55

A este respeito, resulta de jurisprudência constante que, quando um regulamento da União não contenha qualquer disposição específica que preveja uma sanção em caso de violação desse regulamento ou remeta, a esse respeito, para as disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais, o artigo 4.o, n.o 3 do Tratado UE impõe aos Estados‑Membros que tomem todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito da União. Para esse efeito, embora mantenham a escolha das sanções, os Estados‑Membros devem, nomeadamente, velar para que as violações do direito da União sejam punidas em condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes e que, de qualquer forma, confiram à sanção um caráter efetivo, proporcionado e dissuasivo (v., nomeadamente, acórdãos de 10 de julho de 1990, Hansen, C‑326/88, EU:C:1990:291, n.o 17, e de 27 de março de 2014, LCL Le Crédit Lyonnais, C‑565/12, EU:C:2014:190, n.o 44 e jurisprudência referida).

56

Neste contexto, cabe salientar que, várias vezes, o Tribunal de Justiça interpretou atos de direito derivado que impõem aos Estados‑Membros a obrigação de prever sanções para assegurar a aplicação eficaz desses mesmos atos à luz do princípio da legalidade dos delitos e das penas. Deste modo, segundo essa jurisprudência, uma diretiva não pode, por si só e independentemente de uma lei interna adotada por um Estado‑Membro para a sua aplicação, criar ou agravar a responsabilidade penal de quem a viole (v., nomeadamente, acórdão de 7 de janeiro de 2004, X, C‑60/02, EU:C:2004:10, n.o 61).

57

Resulta igualmente dessa jurisprudência que o raciocínio adotado pelo Tribunal de Justiça relativamente às diretivas é transponível para os regulamentos, a saber, normas que, por natureza, não necessitam de medidas nacionais de transposição, quando esses regulamentos atribuem aos Estados‑Membros competência para adotarem as sanções das infrações aos comportamentos proibidos pelos mesmos (v., neste sentido, acórdão de 7 de janeiro de 2004, X, C‑60/02, EU:C:2004:10, n.o 62).

58

Por conseguinte, uma vez que, em conformidade com o Regulamento n.o 561/2006, incumbe aos Estados‑Membros a adoção de sanções pelas infrações a esse regulamento, estes últimos dispõem de uma margem de apreciação no que se refere à natureza das sanções aplicáveis (v., neste sentido, acórdão de 9 de junho de 2016, Eurospeed, C‑287/14, EU:C:2016:420, n.o 34).

59

Daqui resulta que o exame da segunda questão submetida não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do Regulamento n.o 561/2006 à luz do princípio da legalidade em matéria penal tal como enunciado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta.

Quanto à terceira questão

60

Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à terceira questão.

Quanto às despesas

61

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

1)

O artigo 8.o, n.os 6 e 8, do Regulamento (CE) n.o 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.o 3821/85 e (CE) n.o 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.o 3820/85 do Conselho, deve ser interpretado no sentido de que um condutor não pode gozar no seu veículo os períodos de repouso semanal regular previstos no referido artigo 8.o, n.o 6.

 

2)

O exame da segunda questão submetida não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade do Regulamento n.o 561/2006 à luz do princípio da legalidade em matéria penal tal como enunciado no artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.