CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 13 de setembro de 2017 ( 1 )

Processo C‑419/16

Sabine Simma Federspiel

contra

Provincia Autonoma di Bolzano

Equitalia Nord SpA

[pedido de decisão prejudicial do Tribunale di Bolzano/Landesgericht Bozen (Itália)]

«Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Médicos — Diretiva 75/363/CEE — Reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico — Aquisição do título de médico especialista — Remuneração durante o período de formação — Obrigação de trabalhar no serviço público de saúde durante um período não inferior a cinco anos, no prazo de dez anos a contar da obtenção da especialização — Artigos 45.o e 49.o TFUE — Conceito de limitação — Justificação — Proporcionalidade»

I. Introdução

1.

O presente processo tem origem num diferendo entre Sabine Simma Federspiel (a seguir «S. Federspiel») e a Provincia Autonoma di Bolzano (Província Autónoma de Bolzano, Itália; a seguir «Província»), relativo à restituição do montante de 68515,24 euros, acrescido dos juros legais.

2.

S. Federspiel recebeu da Província uma bolsa de estudos para formação médica de especialidade a tempo inteiro na Universidade de Innsbruck, na Áustria. Para beneficiar da bolsa que lhe permitiria especializar‑se em neurologia e psiquiatria, S. Federspiel assinou uma declaração na qual se comprometia a trabalhar no serviço público de saúde da Província durante, pelo menos, cinco anos após a conclusão da sua especialização na Áustria. Aceitou ainda que, em caso de incumprimento total desse compromisso, a Província podia obter a restituição de um montante até 70% do valor da bolsa concedida.

3.

Neste contexto, coloca‑se a questão de saber se o direito da União se opõe a uma condição estabelecida no direito nacional que sujeita a concessão de uma bolsa de especialização a cinco anos de serviço no serviço público de saúde da Província e, em caso de incumprimento, à obrigação de restituir uma parte da bolsa recebida. Mais especificamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se essa condição é compatível, por um lado, com a Diretiva 75/363/CEE ( 2 ), e, por outro, com o artigo 45.o TFUE.

4.

Assim, o presente processo oferece ao Tribunal de Justiça uma oportunidade para definir os limites das obrigações emergentes daquela diretiva e para reexaminar a questão de saber o que constitui uma restrição das liberdades fundamentais consagradas nos Tratados.

II. Quadro jurídico

A.  Direito da União

5.

A Diretiva 75/363 coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às atividades de médico. Estabelece os critérios que os Estados‑Membros devem observar na organização de formação médica nos respetivos territórios.

6.

O primeiro considerando da Diretiva 75/363 explica que, para realizar o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico, tal como o determina a Diretiva 75/362 ( 3 ), a similitude das formações nos Estados‑Membros permite limitar a coordenação neste domínio à exigência do respeito de normas mínimas, deixando aos Estados‑Membros, quanto ao resto, a liberdade de organizarem o respetivo ensino.

7.

O segundo considerando esclarece que, para assegurar o reconhecimento mútuo dos títulos de médico especialista e a fim de colocar todos os profissionais nacionais dos Estados‑Membros em plano de igualdade na União, se afigura necessária uma certa coordenação das condições de formação do médico especialista. Nesse sentido, o mesmo considerando explica que é conveniente prever, para o efeito, critérios mínimos relativos quer ao acesso à formação especializada, quer à duração mínima desta, ao seu modo de ensino e ao lugar onde deve ser efetuada, bem como ao controlo a que deve ser submetida. O considerando especifica ainda que tais critérios só dizem respeito às especialidades comuns a todos os Estados‑Membros ou a dois ou mais Estados‑Membros.

8.

O artigo 1.o da Diretiva 75/363 estabelece os requisitos que os Estados‑Membros devem impor às pessoas que pretendam aceder à atividade de médico e exercê‑la.

9.

O artigo 2.o da diretiva fixa as condições mínimas que a formação de médico especialista deve satisfazer. Mais concretamente, o seu n.o 1 dispõe o seguinte:

«Os Estados‑Membros velarão por que a formação que conduz à obtenção de um diploma, certificado ou outro título de médico especialista satisfaça, pelo menos, as seguintes condições:

a)

Pressuponha a realização completa e com êxito de seis anos de estudos, no âmbito do ciclo de formação referido no artigo 1.o;

b)

Inclua um ensino teórico e prático;

c)

Seja efetuada a tempo inteiro e sob o controlo das autoridades ou organismos competentes, nos termos do ponto 1 do anexo;

d)

Seja efetuada num centro universitário, num centro hospitalar universitário ou, se for caso disso, em estabelecimento de cuidados de saúde reconhecido para o efeito pelas autoridades ou organismos competentes;

e)

Inclua uma participação pessoal do médico candidato a especialista na atividade e nas responsabilidades dos serviços em causa.»

10.

O anexo, que foi aditado à Diretiva 75/363 pela Diretiva 82/76, respeita às características da formação a tempo inteiro e a tempo parcial dos médicos especialistas. Dispõe o seguinte:

«1. Formação a tempo inteiro dos médicos especialistas

Esta formação é efetuada em postos específicos reconhecidos pelas autoridades competentes.

Esta formação exige a participação em todas as atividades médicas do departamento onde se efetua a formação, incluindo os períodos de banco, de tal modo que o candidato a especialista dedique a esta formação prática e teórica toda a sua atividade profissional durante toda a semana de trabalho e durante todo o ano, segundo as modalidades fixadas pelas autoridades competentes. Por consequência, tais postos serão objeto de remuneração adequada.

[…]»

11.

A Diretiva 75/763 foi substituída pela Diretiva 93/16/CEE ( 4 ), que agrupou várias diretivas no domínio da livre circulação dos médicos. Essa alteração legislativa não trouxe qualquer alteração substancial às disposições pertinentes para os presentes efeitos.

B.  Direito nacional

12.

O artigo 1.o da Legge provinciale 3 gennaio 1986 (Lei provincial n.o 1/1986, a seguir «medida impugnada») ( 5 ) estabelece o seguinte:

«1.

Dado que não existe na [Província] a possibilidade de obter especializações em medicina, o vereador provincial competente na matéria está autorizado, após deliberação da Giunta provinciale, a celebrar com universidades italianas e com organismos públicos austríacos competentes, nos termos do ordenamento desse Estado, convenções específicas nesta matéria, relativas à criação de lugares adicionais para a formação de médicos especialistas, tendo em conta, em qualquer caso, as normas estatais e provinciais em vigor.

2.

A convenção celebrada, nos termos do número anterior, com os organismos públicos austríacos pode prever que a Província pague eventualmente a esses organismos um montante não superior ao limite máximo do subsídio previsto no artigo 3.o, infra, no caso de estes procederem ao pagamento de uma bolsa equivalente a favor do médico em especialização.»

13.

O artigo 2.o, n.o 1, da medida impugnada dispõe:

«As necessidades de médicos especialistas para corresponder às exigências do serviço provincial de saúde são fixadas, para cada especialidade, pela Giunta provinciale, em função dos objetivos do plano provincial de saúde, após audição da Ordem dos Médicos e do Conselho provincial de saúde.»

14.

O artigo 3.o da medida impugnada prevê o seguinte:

«1.

A Giunta provinciale está autorizada a lançar concursos para a atribuição de bolsas de especialização a favor de médicos residentes na [Província], que estejam habilitados a exercer a profissão médica, com vista à obtenção da especialização nas especialidades necessárias a que se refere o artigo 2.o […]

2.

A atribuição das bolsas previstas no número anterior é feita a partir de uma classificação específica por diplomas, elaborada a partir de critérios a determinar por deliberação da Giunta provinciale. […]

3.

O montante da bolsa de especialização é determinado no anúncio de concurso e não pode, em qualquer caso, ser superior ao salário dos assistentes em formação do pessoal do serviço de saúde.

4.

Os beneficiários da bolsa de especialização cumprem o período de especialização nas estruturas hospitalares identificadas no anúncio de concurso.

[…]»

15.

O artigo 7.o da medida impugnada dispõe o seguinte:

«1.

Os beneficiários previstos no artigo 3.o ou no artigo 6.o, n.os 1 e 2, da presente lei devem comprometer‑se a trabalhar no serviço público de saúde da província de Bolzano durante um período a fixar por regulamento da Giunta provinciale. Este período não pode ser inferior a cinco anos e deve ser cumprido no prazo a fixar pelo mesmo regulamento.

2.

Em caso de incumprimento total ou parcial do compromisso previsto no número anterior, deverá ser restituída uma parte da bolsa de especialização ou contribuição financeira, acrescida de juros legais. A parte a restituir é determinada por deliberação da Giunta provinciale, com base num regulamento, e não pode ser superior a 70% da referida bolsa ou contribuição.»

16.

O regulamento de execução do artigo 7.o da medida impugnada, a saber, o Decreto n.o 6/1988 do presidente da Giunta provinciale ( 6 ), estipula o seguinte:

«1.

Os beneficiários das bolsas de especialização ou das contribuições previstos nos artigos 3.o e 6.o, parágrafos 1 e 2, da Lei provincial n.o 1, de 3 de janeiro de 1986, devem comprometer‑se a prestar cinco anos de serviço no serviço público de saúde da [Província], inclusivamente como médicos exercendo no âmbito de uma convenção, a cumprir no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização ou da conclusão do estágio.

2.

O pagamento das bolsas e contribuições está subordinado à apresentação de uma declaração específica do interessado em formulário próprio, com assinatura reconhecida, contendo o compromisso de cumprir a condição prevista no n.o 1.

3.

Os beneficiários são obrigados:

a)

A restituir até 70% da bolsa ou contribuição em caso de incumprimento total do compromisso previsto no parágrafo 1;

b)

A restituir até 14% da bolsa ou contribuição por cada ano, ou fração de ano superior a seis meses, de serviço não prestado, até um máximo de cinco anos, em caso de incumprimento parcial do mesmo compromisso.

4.

O incumprimento total ou parcial do compromisso previsto no n.o 1 é declarado por deliberação da Giunta provinciale, sob proposta do vereador provincial competente, que determina o montante da bolsa ou do contributo a restituir, dentro dos limites previstos no n.o 3, tendo em conta as eventuais justificações do interessado.

5.

Não se verifica incumprimento do compromisso previsto no n.o 1 quando o interessado demonstre ter apresentado um pedido de contratação pelo serviço público de saúde da [Província] e participado nos respetivos concursos, sendo aprovado, ou ter sido incluído nas listas de classificação para o regime convencionado, e não ter depois sido convidado a exercer a sua atividade no mesmo serviço.

6.

Os montantes devidos com base na deliberação da Giunta provinciale prevista no n.o 4 são cobrados mediante notificação do presidente da Giunta provinciale nos termos do Real Decreto n.o 639, de 14 de abril de 1910.»

III. Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

17.

S. Federspiel é uma cidadã italiana que recebeu uma bolsa de estudos da Província, para seguir uma formação de especialista em neurologia e psiquiatria na Universidade de Innsbruck (Áustria), no período compreendido entre 1992 e 2000.

18.

Dado que não existe na província de Bolzano uma faculdade de medicina que ofereça a possibilidade de obter especialização, a Província celebrou acordos, nos termos da medida impugnada, com universidades italianas e com organismos públicos austríacos, com vista à criação de lugares adicionais para a formação de médicos especialistas nesses países. Esses lugares nas universidades são remunerados pela Província, através de bolsas de estudos. Como contrapartida pelo pagamento das bolsas, a Província exige aos médicos em causa que exerça (ou, conforme o caso, que tome as medidas necessárias para esse efeito), após a especialização, no serviço público de saúde da Província, durante determinado período.

19.

Em 21 de dezembro de 1992, S. Federspiel assinou uma declaração pela qual se comprometeu a exercer a sua profissão, durante 5 anos, no serviço público de saúde da Província, no prazo de dez anos a contar da obtenção da especialização. Nos termos da declaração, em caso de incumprimento desse compromisso, teria de restituir até 70% do subsídio concedido. Em caso de incumprimento parcial, S. Federspiel teria de restituir até 14% do subsídio por cada ano ou fração de ano superior a seis meses de serviço não prestado.

20.

Depois de obter a especialização na Universidade de Innsbruck em 2000, S. Federspiel fixou a sua residência em Bregenz (Áustria), onde, desde essa data, exerce a sua profissão.

21.

Em 20 de fevereiro de 2013, a Administração da Província pediu a S. Federspiel que apresentasse um certificado que comprovasse que tinha exercido a sua atividade na Província, em conformidade com a declaração assinada em 1992. Em alternativa, foi‑lhe pedido que fizesse prova de que tinha apresentado um pedido de contratação pelo serviço público de saúde da Província e de que tinha sido aprovada ou incluída nas listas de classificação para o regime convencionado, mas não tinha sido posteriormente convidada a exercer a sua atividade no mesmo serviço.

22.

Em resposta a esse pedido, S. Federspiel informou a Província de que não tinha exercido medicina no serviço público de saúde da Província depois de concluir a especialização.

23.

Nos termos do despacho n.o 259/23.5, de 5 de agosto de 2013, do Assessore (vereador) do Governo provincial (a seguir «despacho»), a Administração da Província exigiu a restituição de 70% da remuneração recebida, ou seja, 68515,24 euros, a título de capital, acrescido de juros no montante de 51418,63 euros. Por outras palavras, foi‑lhe exigida a restituição de um montante total de 119933,87 euros.

24.

Perante o órgão jurisdicional de reenvio, S. Federspiel pede a anulação daquele despacho, com fundamento na sua incompatibilidade com o direito da União.

25.

Por ter dúvidas nesta matéria, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie, a título prejudicial, sobre as seguintes questões:

«1)

O artigo 2.o, n.o 1, alínea c), da [Diretiva 75/363], conforme alterado pela [Diretiva 82/76], e o anexo nele referido, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma norma de direito interno, como a aplicável no processo principal, que subordina o pagamento da remuneração atribuída aos médicos que fazem formação de especialidade à apresentação de uma declaração de compromisso do médico beneficiário de prestar pelo menos cinco anos de serviço no serviço público de saúde da [Província] no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização e que, em caso de incumprimento total dessa obrigação, permite expressamente à [Província], entidade que financia essa remuneração, obter a restituição de um montante até 70% do subsídio concedido, acrescido de juros legais calculados a partir do momento em que a Administração pagou cada uma das prestações?

2)

Em caso de resposta negativa à primeira questão, o princípio da livre circulação dos trabalhadores, previsto no artigo 45.o TFUE, opõe‑se a uma norma de direito interno, como a aplicável no processo principal, que subordina o pagamento da remuneração atribuída aos médicos que fazem formação de especialidade à apresentação de uma declaração de compromisso do médico beneficiário de prestar pelo menos cinco anos de serviço no serviço público de saúde da [Província] no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização e que, em caso de incumprimento total dessa obrigação, permite expressamente à [Província], entidade que financia essa remuneração, obter a restituição de um montante até 70% do subsídio concedido, acrescido de juros legais calculados a partir do momento em que a Administração pagou cada uma das prestações?»

26.

Foram apresentadas observações escritas por S. Federspiel, pela Província e pela Comissão, tendo todas essas partes apresentado alegações orais na audiência realizada em 15 de junho de 2017.

IV. Análise

A.  Contexto

27.

Não existe na Província nenhuma faculdade de medicina que proporcione a formação de especialização necessária para assegurar a contratação de pessoal médico especialista na província bilingue (italiano e alemão) de Bolzano. Por essa razão, a Província financia a especialização noutras províncias de Itália, na Alemanha e na Áustria. Através do financiamento concedido pela Província, foram criados lugares adicionais na Universidade de Innsbruck, inter alia, para médicos que tenham obtido bolsas de estudos atribuídas pela Província para concluírem a formação de especialista nessa universidade.

28.

Todavia, a atribuição de bolsas de estudo pela Província está sujeita a uma condição. O médico beneficiário é obrigado a trabalhar (ou, conforme o caso, a ter tomado as medidas necessárias para esse efeito) durante, pelo menos, cinco anos no serviço público de saúde da Província, no prazo de dez anos a contar da obtenção da especialização financiada pela Província. Além disso, caso não sejam tomadas as medidas necessárias para trabalhar na Província, esta, na qualidade de entidade que financia a remuneração, pode exigir até 70% do montante da bolsa paga, juntamente com juros legais calculados a partir do momento em que a Administração pagou cada prestação (a seguir «condição em causa»).

29.

Essa condição — e a sua compatibilidade com o direito derivado (primeira questão) e com o direito primário (segunda questão) — constitui o cerne do presente processo.

30.

Conforme explicarei adiante, a condição em causa é compatível com o direito da União.

B.  Primeira questão prejudicial

31.

Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pergunta se a Diretiva 75/363 se opõe a uma disposição de direito interno que sujeita a atribuição de uma bolsa a formação de especialista à condição em causa.

32.

Na minha perspetiva, a Diretiva 75/363 não pode valer a S. Federspiel. Para explicar as razões, é necessário ter presente a razão de ser Diretiva 75/363 e o regime instituído por essa diretiva.

1.  A razão de ser da Diretiva 75/363: reconhecimento mútuo de qualificações para assegurar a livre circulação dos médicos

33.

A Diretiva 75/363 — e a Diretiva 93/19, que lhe sucedeu — foram adotadas para assegurar o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico na União Europeia. Para atingir esse objetivo, a diretiva estabelece a coordenação e a harmonização mínima da legislação dos Estados‑Membros nesse domínio. Mais especificamente, visa harmonizar as condições relativas à especialização e ao acesso às diferentes especialidades médicas, com vista ao reconhecimento mútuo dos títulos de médico especialista.

34.

Dito muito simplesmente, a diretiva estabelece determinadas regras que os Estados‑Membros devem respeitar na organização dos seus programas de formação médica.

35.

No tocante à especialização médica nos domínios abrangidos pela Diretiva 75/363 ( 7 ), o artigo 2.o estabelece os critérios relativos ao acesso à formação especializada, à duração mínima desta, ao seu modo de ensino e ao lugar onde deve ser efetuada, bem como ao controlo a que deve ser submetida.

36.

Esses critérios visam assegurar que, sem uma harmonização plena dos programas de formação, os títulos de médico possam ser mutuamente reconhecidos e os cidadãos da União estejam em pé de igualdade na União Europeia no campo da medicina ( 8 ). Portanto, a diretiva tem por objetivo facilitar a livre circulação dos cidadãos da União que exercem uma profissão médica. Dito de outro modo, constitui um veículo para fomentar a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços no campo da medicina.

37.

Para esse efeito específico, o anexo da Diretiva 75/363 descreve as características da formação a tempo inteiro dos médicos especialistas. É nesse contexto que é enunciada a obrigação geral de proporcionar uma «remuneração adequada». Essa obrigação constitui um corolário lógico do objetivo de que a formação seja uma ocupação a tempo inteiro. Na verdade, de acordo com o anexo, o candidato a especialista deve dedicar à formação prática e teórica toda a sua atividade profissional durante toda a semana de trabalho e durante todo o ano.

38.

Evidentemente, isso não seria possível sem remuneração adequada.

39.

Conforme o Tribunal de Justiça já afirmou, a obrigação estabelecida na Diretiva 75/363 de remunerar de forma adequada a formação de especialidade é necessária para evitar que os candidatos a especialistas não remunerados tenham de aceitar outros trabalhos para pagar a formação, comprometendo‑a ( 9 ). Nesse sentido, a remuneração adequada constitui uma condição prévia indispensável para o reconhecimento mútuo das qualificações profissionais nos Estados‑Membros ( 10 ).

40.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça também reconheceu que a Diretiva 75/363 não identifica a instituição que deve pagar a remuneração nem define remuneração «adequada» ou os métodos de determinação dessa remuneração ( 11 ). Dado o silêncio da diretiva nessas matérias, os Estados‑Membros gozam de ampla margem de apreciação a esse respeito.

41.

Mais especificamente, o Tribunal de Justiça concluiu que a Diretiva 75/363 impõe aos Estados‑Membros uma obrigação clara e incondicional de remuneração da formação de especialidade. No entanto, deixa as condições em que essa remuneração deve ser atribuída à apreciação do Estado‑Membro ( 12 ).

42.

Isso remete‑me ao caso em apreço.

2.  Caso em análise

43.

As dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio acerca da compatibilidade da condição em causa com a Diretiva 75/363 decorrem do facto de a bolsa concedida pela Província para formação, a tempo inteiro, de médico especialista na Universidade de Innsbruck estar sujeita a uma condição: se o beneficiário da bolsa não cumprir o compromisso de trabalhar durante, pelo menos, cinco anos no serviço público de saúde da Província no prazo de dez anos a contar da conclusão da formação como especialista, esta tem o direito de exigir a restituição de 70% do montante da bolsa. Nesse sentido, poder‑se‑ia dizer que esses 70% constituem apenas um empréstimo que deve ser reembolsado depois de o médico concluir o programa de formação médica. Dessa perspetiva, seria possível alegar que a bolsa concedida não cumpre o requisito de remuneração «adequada» da formação de especialidade a tempo inteiro estabelecido na Diretiva 75/363.

44.

Porém, essa conclusão assenta numa falácia.

45.

Para começar, S. Federspiel concluiu a sua formação médica de especialidade na Universidade de Innsbruck, na Áustria. Pôde fazê‑lo graças a um acordo entre a Província e o Land Tirol. Em conformidade com esse acordo, foram criados lugares adicionais na Universidade de Innsbruck, reservados para os médicos que tenham recebido uma bolsa atribuída pela Província para formação de especialidade nessa universidade.

46.

Resulta da decisão de reenvio que a Província pagou à clínica universitária de Innsbruck o subsídio de especialização. Na prática, esses montantes foram pagos a S. Federspiel pela clínica universitária, que foi posteriormente reembolsada pela Província. Além disso, foi confirmado na audiência que os custos relativos à formação foram repartidos entre a Universidade de Innsbruck e a Província: na audiência, S. Federspiel reconheceu que a Província contribuiu para os custos da formação em cerca de 39% do montante anual total. O restante foi suportado pela Universidade de Innsbruck.

47.

Conforme já referido anteriormente, a Diretiva 75/363 estabelece regras que os Estados‑Membros devem observar na organização da formação médica nos seus territórios. A lógica subjacente a essas regras consiste em assegurar que os títulos de médico assim obtidos possam ser reconhecidos noutros Estados‑Membros. Por razões óbvias, só o Estado‑Membro em que a formação tem lugar pode adotar as medidas necessárias à observância das obrigações que decorrem da diretiva, uma vez que os Estados‑Membros não têm autoridade perante a organização da formação noutros Estados‑Membros.

48.

Não encontro na Diretiva 75/363 nada que corrobore a tese de que esta também regula eventuais convenções entre os Estados‑Membros (ou entre Estados‑Membros e países terceiros, como foi o caso da Itália e da Áustria até 1995) sobre o acesso à formação médica de especialidade noutro Estado e os acordos financeiros subjacentes a essa cooperação.

49.

Para preservar a coerência interna do sistema de coordenação estabelecido pela Diretiva 75/363, a obrigação prevista no anexo da mesma diretiva de assegurar a remuneração adequada dos candidatos a especialistas durante o programa de formação deve recair sobre o Estado‑Membro em que a formação tem lugar.

50.

No caso presente, esse Estado‑Membro é — depois da sua adesão à então Comunidade Europeia, em 1995 — a Áustria.

51.

Conforme observou o Tribunal de Justiça, a remuneração imposta pela diretiva é atribuída a título de recompensa e de reconhecimento do trabalho prosseguido. Destina‑se aos médicos especialistas em formação que participam na totalidade das atividades médicas do departamento onde a formação é efetuada ( 13 ). Isso visa assegurar, conforme já referido, que o especialista em formação dedique todo o seu tempo à formação prática e teórica, sem necessidade de recorrer a um trabalho suplementar.

52.

Trata‑se, por sua vez, de um requisito prévio da comparabilidade e do reconhecimento mútuo.

53.

Nada nos autos sugere que não seja esse o caso no presente processo. Pelo contrário: todas as partes que apresentaram observações, incluindo S. Federspiel, concordam que a remuneração que esta recebeu pela conclusão da sua formação de especialidade na Áustria foi suficiente para esse efeito.

54.

Mesmo que S. Federspiel tivesse alegado que a remuneração que recebeu (seja da Província, da Universidade de Innsbruck ou de ambas) durante o programa de formação não era adequada na aceção da Diretiva 75/363, não deixa de ser verdade que o Estado‑Membro responsável, nos termos da diretiva, por assegurar que o candidato a especialista recebe uma remuneração adequada é o Estado‑Membro em que a especialização tem lugar.

55.

Por outras palavras, a Diretiva75/363 não pode afetar a validade da condição em causa ( 14 ).

56.

Um resultado contrário alargaria artificialmente o âmbito de aplicação da Diretiva 75/363 para lá da intenção do legislador. É importante referir que, conforme o preâmbulo da Diretiva 75/363 deixa claro ( 15 ), esta diretiva não foi adotada para harmonizar a formação médica além do que é necessário para o reconhecimento mútuo dos diplomas e certificados, nem para limitar a margem de apreciação dos Estados‑Membros para determinarem as condições aplicáveis à remuneração da formação a tempo inteiro. Como é evidente, a Áustria usou plenamente essa prerrogativa através do acordo de financiamento celebrado com a Província.

57.

Além disso, correndo o risco de afirmar uma evidência, em nenhuma circunstância pode existir responsabilidade conjunta dos Estados‑Membros pelo cumprimento das obrigações decorrentes da diretiva, conforme foi sugerido pela Comissão na audiência. Isso é assim independentemente das especificidades do acordo destinado a assegurar que o candidato a especialista recebe uma remuneração adequada. Escusado será dizer que aceitar que um Estado‑Membro pudesse ser responsabilizado por não assegurar que outro Estado‑Membro cumpra as obrigações decorrentes de uma diretiva teria consequências profundas sobre um conjunto de princípios fundamentais do direito da União, designadamente o efeito direto e a responsabilidade do Estado.

58.

Por conseguinte, considero que há que responder à primeira questão prejudicial que a Diretiva 75/363 não se opõe, nas circunstâncias do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, a uma disposição de direito interno que subordina o pagamento da remuneração atribuída aos médicos que fazem formação de especialidade à obrigação de trabalhar pelo menos cinco anos no serviço público de saúde da Província no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização.

59.

Analisarei agora a segunda questão, que aborda a compatibilidade da condição em causa à luz do direito primário da União.

C.  Segunda questão prejudicial

60.

Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a condição em causa é compatível com o Tratado FUE. A esse respeito, o órgão jurisdicional de reenvio refere especificamente o princípio da livre circulação dos trabalhadores consagrado no artigo 45.o TFUE.

61.

A título preliminar, resulta claramente da decisão de reenvio que S. Federspiel reside e exerce a sua profissão em Bregenz (Áustria). Não é claro, porém, se o faz na qualidade de médica assalariada ou independente. No entanto, conforme a Comissão corretamente salientou, essa informação não reveste importância fundamental. Na verdade, a análise das medidas nacionais nos termos do artigo 45.o ou do artigo 49.o TFUE (liberdade de estabelecimento) permanece a mesma.

62.

Para esse efeito, importa, a título preliminar, determinar se a condição em causa constitui uma restrição à livre circulação. Em caso de resposta afirmativa, cumpre decidir se essa restrição pode ser justificada e se é proporcional ao objetivo prosseguido.

1.  A condição em causa constitui uma restrição?

63.

Tal como o órgão jurisdicional de reenvio, as partes que apresentaram observações partem do princípio de que a condição em causa constitui uma restrição à livre circulação. Contudo, discordam quanto à questão de saber se essa restrição é justificada.

64.

É certo que a condição em causa (uma obrigação de trabalhar a tempo inteiro como especialista no serviço público de saúde da Província durante, pelo menos, cinco anos nos dez anos subsequentes à obtenção da especialização ou, em alternativa, de restituir até 70% do montante recebido, acrescido de juros legais) parece, à primeira vista, constituir inequivocamente uma restrição ao direito de livre circulação do médico em causa.

65.

Com efeito, segundo a definição ampla e totalmente abrangente do Tribunal de Justiça, as disposições que impedem ou dissuadem um cidadão de um Estado‑Membro de abandonar o seu país de origem para exercer o seu direito de livre circulação constituem entraves a essa liberdade, mesmo que se apliquem de forma neutra e independentemente da nacionalidade dos trabalhadores. O Tribunal de Justiça acrescentou ainda que o artigo 45.o TFUE limita a aplicação das regras nacionais que entravam a livre circulação dos nacionais de um Estado‑Membro que desejem exercer uma atividade assalariada noutro Estado‑Membro ( 16 ).

66.

A aplicação desse critério ao caso vertente afigura‑se, reconhecidamente, uma tarefa simples. Ainda que não obste formalmente a que o médico exerça a sua atividade noutro Estado‑Membro, a condição em causa torna essa perspetiva menos atraente durante o período de dez anos subsequente à conclusão da especialização. Na verdade, a condição em causa visa garantir que os beneficiários das bolsas cumpram o compromisso de trabalhar na Província durante, pelo menos, cinco anos após a conclusão da especialização.

67.

Não obstante, gostaria de expressar desde já as minhas dúvidas sobre a possibilidade de interpretar a condição em causa como uma restrição à livre circulação.

68.

Tal como as declarações do Tribunal de Justiça, que devem ser sempre entendidas no seu contexto, a condição em causa não deve ser considerada isoladamente. Deve ser analisada no contexto mais amplo da medida impugnada. Vista dessa perspetiva, a condição em causa faz parte de uma medida mais ampla e, por conseguinte, está intrinsecamente associada à criação de lugares adicionais de formação médica de especialidade fora da Província. Esses lugares, que não teriam sido disponibilizados sem o financiamento da Província, são oferecidos aos beneficiários das bolsas sob a condição em causa. Assim, ao oferecer aos médicos a oportunidade de se tornarem médicos especialistas (noutro Estado‑Membro), a medida impugnada constitui uma condição prévia (mais do que uma restrição) da livre circulação dos médicos especialistas ( 17 ). Nesse contexto, a condição em causa constitui simplesmente a contrapartida (futura e incerta ( 18 )) da oportunidade oferecida pela Província, sem esquecer que esta não pode beneficiar do trabalho do candidato a especialista durante o programa de formação.

69.

Embora analítica e teoricamente relevante, a questão de saber se a condição em causa constitui uma restrição à livre circulação não é, em rigor, determinante para a resolução do caso em apreço. Assim o demonstra o facto de nem o órgão jurisdicional de reenvio nem as partes que apresentaram observações terem, conforme referi acima, suscitado a questão. Tendo presente essas considerações, o caso em apreço não se presta a uma discussão mais teórica sobre os alicerces normativos do conceito de restrição e, mais especificamente, sobre a abordagem mais adequada à identificação de restrições em diferentes domínios do direito relativo à liberdade de circulação ( 19 ).

70.

Esclarecido esse ponto, mesmo que a condição em causa constitua uma restrição à livre circulação, isso não implica automaticamente a sua exclusão segundo as regras da União relativas à livre circulação. De acordo com a fórmula bem reconhecida, as restrições à liberdade de estabelecimento, aplicáveis sem discriminação em razão da nacionalidade, podem ser justificadas por razões imperiosas de interesse geral, desde que sejam adequadas para garantir a realização do objetivo por elas prosseguido e não ultrapassem o necessário para alcançar esse objetivo ( 20 ).

71.

Na falta de indicação nos autos de que a condição em causa é aplicada de forma discriminatória, analisarei de imediato a possível justificação e proporcionalidade da referida condição.

2.  Justificação

72.

A Província explica que a condição em causa protege e promove a saúde pública. Mais especificamente, prossegue o objetivo de garantir à população local uma assistência médica especializada de qualidade elevada, equilibrada e acessível a todos. Simultaneamente, a condição em causa visa evitar um risco significativo para a estabilidade financeira do sistema da segurança social. Além disso, a Província alega que a condição em causa é necessária para assegurar a prestação de assistência especializada nas duas línguas oficiais da província bilingue.

73.

No domínio da saúde pública e da prestação de serviços de saúde, os Estados‑Membros gozam de uma ampla margem de apreciação. Em princípio, portanto, e para preservar um certo grau de autonomia regulamentar, os Estados‑Membros podem limitar a livre prestação de serviços por razões de saúde pública ( 21 ).

74.

Por exemplo, o Tribunal de Justiça já declarou que o objetivo de manutenção de um serviço médico e hospitalar equilibrado e acessível a todos pode ser abrangido por derrogações fundadas em razões de saúde pública, na medida em que contribui para a realização de um nível elevado de proteção da saúde ( 22 ). O Tribunal de Justiça também já reconheceu que, para alcançar um nível elevado de proteção da saúde pública, o Estado‑Membro tem a faculdade de planificar a organização do seu sistema de saúde. Essa política tem de prosseguir um objetivo duplo. Por um lado, a planificação deve «garantir no território do Estado‑Membro em questão uma acessibilidade suficiente e permanente a uma gama equilibrada de cuidados de qualidade». Por outro lado, os Estados‑Membros têm de «garantir um controlo dos custos e de evitar, na medida do possível, qualquer desperdício de recursos financeiros, técnicos e humanos» ( 23 ).

75.

No caso em apreço, a Província alega que a condição em causa constitui a medida mais adequada para garantir a prestação de assistência médica especializada na Província, tanto em alemão como em italiano, e não excede o necessário para prosseguir esse objetivo.

76.

A questão que se coloca, portanto, é a de saber se essa alegação corresponde à verdade.

3.  Proporcionalidade

77.

Apesar de, em última instância, competir ao órgão jurisdicional de reenvio a apreciação da proporcionalidade da condição em causa, farei as observações que se seguem acerca dos elementos que esse órgão jurisdicional deve ter em conta na sua análise.

78.

No meu entender, a condição em causa estabelece um justo equilíbrio entre a restrição dos direitos de livre circulação que decorre da medida impugnada e a necessidade coletiva de manutenção de um sistema de saúde equilibrado e eficaz.

79.

A esse respeito, observe‑se, a título preliminar, que a análise da proporcionalidade (entendida no sentido de que inclui a avaliação da adequação e da proporcionalidade sensu stricto) tem de assentar numa avaliação global das circunstâncias em que a legislação restritiva, como a que está em causa no presente processo, foi adotada e aplicada.

80.

O Tribunal de Justiça já afirmou repetidamente que, no domínio da saúde pública, importa reconhecer aos Estados‑Membros uma margem de apreciação. Isso deve‑se essencialmente ao facto de incumbir ao Estado‑Membro decidir o nível a que pretende assegurar a proteção da saúde pública e o modo como esse nível deve ser alcançado ( 24 ).

81.

Tendo isso presente, devem ser observados os seguintes pontos no tocante à apreciação dos diferentes aspetos da proporcionalidade.

82.

Em primeiro lugar, afigura‑se‑me que a medida é adequada para a prossecução do objetivo de proteção e promoção da saúde pública.

83.

Por um lado, a Província financiou a criação de lugares adicionais para a formação médica de especialidade na Universidade de Innsbruck. Esses lugares estão reservados para os médicos que receberam bolsas atribuídas pela Província. Por outro lado, é inquestionável que a condição em causa incentiva os médicos especialistas que beneficiaram de tais bolsas a trabalhar na Província. Nesta perspetiva, parece‑me claro que a condição em causa, como parte da medida impugnada, contribui para garantir a existência de um número suficiente de médicos especialistas na Província.

84.

Em segundo lugar, no tocante à necessidade e razoabilidade da medida impugnada, concordo com a Comissão e com a Província.

85.

Uma obrigação que se resume à prestação de serviço remunerado na Província durante cinco anos, no prazo de dez anos a contar da obtenção da especialização afigura‑se razoável.

86.

Com efeito, importa ter presente que, não obstante assegurar que os médicos em causa recebem uma remuneração durante a formação de especialidade, a Província não pode beneficiar do trabalho dos candidatos a especialista durante o programa de formação.

87.

Além disso, não deve ser ignorado o facto de essa obrigação estar limitada no tempo, em dois aspetos diferentes. Por um lado, é exigido ao médico que preste serviço na Província durante um período mínimo de cinco anos. Por outro, essa obrigação incide sobre os primeiros dez anos após a conclusão do programa de formação e, portanto, afeta predominantemente médicos que estão em início de carreira.

88.

A obrigação de trabalhar na Província é ainda atenuada pelo facto de ser necessário que exista uma vaga disponível na Província e que essa vaga seja oferecida ao médico, em tempo oportuno. Isso parece assegurar de forma adequada que a condição em causa só seja invocada em caso de necessidade de médicos especialistas: pode depreender‑se dos autos e das explicações da Província na audiência que esta só recorre ao serviço dos médicos com base na condição em causa na medida em que exista uma necessidade efetiva num determinado campo da medicina especializada.

89.

Consequentemente, a Província criou, graças à medida impugnada, uma reserva de médicos que podem ser requisitados para trabalhar em caso de necessidade. Caso não existam vagas disponíveis, o médico é livre de seguir a sua carreira sem restrições.

90.

Em terceiro lugar, no que respeita à existência de medidas alternativas menos restritivas, é inegável que os trabalhadores qualificados podem também ser persuadidos por meios financeiros a trabalhar na Província. Todavia, não é de excluir que tal medida possa ter um impacto significativo no erário público. A esse respeito, basta salientar que o Tribunal de Justiça não tem ignorado os argumentos relativos à necessidade do controlo de custos na prestação dos serviços de saúde pública ( 25 ).

91.

Nesse contexto, importa não esquecer que existe na Província um regime linguístico específico. A necessidade de assegurar que a assistência médica de elevada qualidade esteja disponível em ambas as línguas provavelmente dificulta a contratação de médicos especialistas qualificados. Tendo isso presente, é difícil conceber alternativas à medida impugnada que possam igualmente assegurar que a Província pode contratar um número suficiente de especialistas habilitados a exercer a sua atividade em alemão e em italiano.

92.

Por último, em jeito de conclusão, refira‑se que, para prosseguir o objetivo da medida impugnada, a saber, garantir a existência na Província de assistência médica pública especializada em ambas as línguas oficiais, é lógico que a criação de lugares adicionais para a formação de especialidade na Áustria de beneficiários de bolsas concedidas pela Província esteja associada a um mecanismo de garantia do cumprimento dos termos do acordo. Caso contrário, não faria sentido que a Província «adquirisse» lugares de formação de especialidade na Universidade de Innsbruck.

93.

A esse respeito, afigura‑se que as dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio sobre a compatibilidade da condição em causa com o direito da União decorrem, pelo menos em parte, do facto de o montante total a restituir por S. Federspiel exceder o montante da bolsa de especialização recebida. Em caso de incumprimento do compromisso de trabalhar na Província, é exigido ao beneficiário da bolsa que pague, além de 70% do montante recebido, juros legais contados a partir da data de pagamento de cada prestação. Por conseguinte, tal como acontece com S. Federspiel, pode ser exigido ao médico em causa que restitua um montante nominalmente bastante superior ao montante inicialmente pago.

94.

A esse respeito, bastará referir que, em caso de incumprimento do compromisso de prestação de serviço na Província, apenas é exigida ao médico a restituição de 70% do montante da bolsa. A essa luz, o médico recebe efetivamente 30% do montante da bolsa, sem qualquer contrapartida. Acresce que obtém uma especialização médica que, é seguro afirmar, facilitará o exercício da livre circulação. Por outro lado, devo sublinhar que não há qualquer indicação de que os juros cobrados não sejam razoáveis. A obrigação de pagamento de juros (legais) é devida simplesmente a título de mora no pagamento e, como tal, constitui uma consequência lógica do incumprimento da obrigação (contratual) de procurar trabalho na Província ou, em alternativa, de restituir o montante da bolsa atempadamente.

95.

Consequentemente, há que responder à segunda questão prejudicial que os artigos 45.o e 49.o TFUE não se opõem a uma disposição de direito interno, como a aplicável no processo principal, que subordina o pagamento da remuneração dos médicos que fazem formação de especialidade à obrigação de prestar pelo menos cinco anos de serviço no serviço público de saúde da Província no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização e que, em caso de incumprimento total dessa obrigação, permite expressamente à Província, entidade que financia essa remuneração, obter a restituição de um montante até 70% do subsídio concedido, acrescido de juros legais.

V. Conclusão

96.

À luz dos argumentos expostos, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Tribunale di Bolzano/Landesgericht Bozen (Itália) do seguinte modo:

A Diretiva 75/363/CEE do Conselho, de 16 de junho de 1975, que tem por objetivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às atividades de médico, conforme alterada pela Diretiva 82/76/CEE do Conselho, de 26 de janeiro de 1982, que altera a Diretiva 75/362/CEE que tem por objetivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efetivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços, bem como a Diretiva 75/363, não se opõe, nas circunstâncias do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, a uma disposição de direito interno que subordina o pagamento da remuneração atribuída aos médicos que fazem formação de especialidade à obrigação de trabalhar pelo menos cinco anos no serviço público de saúde da Província no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização e que, em caso de incumprimento total dessa obrigação, permite expressamente à Província, entidade que financia essa remuneração, obter a restituição de um montante até 70% do subsídio concedido, acrescido de juros legais.

Os artigos 45.o e 49.o TFUE não se opõem a uma disposição de direito interno, como a aplicável no processo principal, que subordina o pagamento da remuneração dos médicos que fazem formação de especialidade à obrigação de prestar pelo menos cinco anos de serviço no serviço público de saúde da Província no prazo de dez anos a contar da data de obtenção da especialização e que, em caso de incumprimento total dessa obrigação, permite expressamente à Província, entidade que financia essa remuneração, obter a restituição de um montante até 70% do subsídio concedido, acrescido de juros legais.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Diretiva do Conselho, de 16 de junho de 1975, que tem por objetivo a coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas às atividades de médico (JO 1975, L 167, p. 14; EE 06 F1 p. 197), conforme alterada pela Diretiva 82/76/CEE do Conselho, de 26 de janeiro de 1982, que altera a Diretiva 75/362/CEE que tem por objetivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efetivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços, bem como a Diretiva 75/363 (JO 1982, L 43, p. 21; EE 06 F2 p. 128).

( 3 ) Diretiva do Conselho, de 16 de junho de 1975, que tem por objetivo o reconhecimento mútuo dos diplomas, certificados e outros títulos de médico e que inclui medidas destinadas a facilitar o exercício efetivo do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços (JO 1975, L 167, p. 1; EE 06 F1 p. 186).

( 4 ) Diretiva do Conselho, de 5 de abril de 1993, destinada a facilitar a livre circulação dos médicos e o reconhecimento mútuo dos seus diplomas, certificados e outros títulos (JO 1993, L 165, p. 1).

( 5 ) N. 1. (B.U. 14 gennaio 1986, n.o 2).

( 6 ) Decreto del Presidente della giunta provinciale 29 marzo 1988, n.o 6.

( 7 ) A neurologia e a psiquiatria estão abrangidas pela Diretiva 75/363, nos termos do artigo 7.o da Diretiva 75/362.

( 8 ) V., a esse respeito, acórdão de 25 de fevereiro de 1999, Carbonari e o. (C‑131/97, EU:C:1999:98, n.o 38).

( 9 ) V. acórdão de 25 de fevereiro de 1999, Carbonari e o., C‑131/97, EU:C:1999:98, n.o 40.

( 10 ) V. acórdãos de 25 de fevereiro de 1999, Carbonari e o., C‑131/97, EU:C:1999:98, n.os 42 e 43, e de 3 de outubro de 2000, Gozza e o., C‑371/97, EU:C:2000:526, n.o 34.

( 11 ) V., para esse efeito, acórdãos de 25 de fevereiro de 1999, Carbonari e o. (C‑131/97, EU:C:1999:98, n.o 45), e de 3 de outubro de 2000, Gozza e o. (C‑371/97, EU:C:2000:526, n.o 36).

( 12 ) V. acórdão de 25 de fevereiro de 1999, Carbonari e o. (C‑131/97, EU:C:1999:98, n.os 44 e 45). V., também, acórdão de 3 de outubro de 2000, Gozza e o. (C‑371/97, EU:C:2000:526, n.o 34).

( 13 ) V. acórdão de 3 de outubro de 2000, Gozza e o. (C‑371/97, EU:C:2000:526, n.o 43).

( 14 ) A esse respeito, devo clarificar que, para efeitos da aplicação da Diretiva 75/363, é totalmente irrelevante se, na realidade, o candidato a especialista recebe a bolsa diretamente da Província ou através da universidade em que a especialização é efetuada (como acontece no caso presente).

( 15 ) V., em especial, o primeiro considerando da Diretiva 75/363.

( 16 ) V., designadamente, acórdãos de 15 de dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, EU:C:1995:463, n.os 94 a 96 e jurisprudência referida); de 27 de janeiro de 2000, Graf (C‑190/98, EU:C:2000:49, n.os 21 e 22); e de 16 de março de 2010, Olympique Lyonnais (C‑325/08, EU:C:2010:143, n.os 33 e 34 e jurisprudência referida).

( 17 ) Ainda que o estabelecimento de um paralelismo direto possa ser falacioso, recordo que, em determinadas circunstâncias, o Tribunal de Justiça considerou que o efeito restritivo da medida nacional impugnada era demasiado remoto, incerto ou insignificante para constituir uma restrição à livre circulação na aceção das disposições pertinentes do Tratado. V., por exemplo, acórdão de 27 de janeiro de 2000, Graf (C‑190/98, EU:C:2000:49, n.o 25). V., também, acórdãos de 7 de março de 1990, Krantz (C‑69/88, EU:C:1990:97, n.o 11), e de 23 de outubro de 2007, Morgan e Bucher (C‑11/06 e C‑12/06, EU:C:2007:626, n.o 32).

( 18 ) V. n.o 88, infra.

( 19 ) A propósito da coerência inerente à conceção (ou conceções) das potenciais restrições na jurisprudência do Tribunal de Justiça, ver Azoulai, L., «La formule de l’entrave»in Azoulai, L. (E.), L’entrave dans le droit du marché intérieur, Bruylant, Bruxelas, 2011, pp. 1‑21.

( 20 ) V., designadamente, acórdãos de 30 de novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, EU:C:1995:411, n.o 37); de 10 de março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, EU:C:2009:141, n.o 44); de 19 de maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o. (C‑171/07 e C‑172/07, EU:C:2009:316, n.o 25); e de 1 de junho de 2010, Blanco Pérez e Chao Gómez (C‑570/07 e C‑571/07, EU:C:2010:300, n.o 61).

( 21 ) Acórdão de 28 de abril de 1998, Kohll (C‑158/96, EU:C:1998:171, n.o 45). V., também, inter alia, acórdãos de 16 de maio de 2006, Watts (C‑372/04, EU:C:2006:325, n.o 104); de 10 de março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, EU:C:2009:141, n.o 46); e de 19 de maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o. (C‑171/07 e C‑172/07, EU:C:2009:316, n.o 27).

( 22 ) Acórdão de 28 de abril de 1998, Kohll (C‑158/96, EU:C:1998:171, n.o 50).

( 23 ) V., designadamente, acórdão de 5 de outubro de 2010, Comissão/França (C‑512/08, EU:C:2010:579, n.o 33).

( 24 ) V., por exemplo, acórdãos de 11 de setembro de 2008, Comissão/Alemanha (C‑141/07, EU:C:2008:492, n.o 51 e jurisprudência referida); e de 10 de março de 2009, Hartlauer (C‑169/07, EU:C:2009:141, n.o 30).

( 25 ) V., entre outros, acórdãos de 13 de maio de 2003, Müller‑Fauré e van Riet (C‑385/99, EU:C:2003:270, n.o 80); de 16 de maio de 2006, Watts (C‑372/04, EU:C:2006:325, n.o 109); e de 19 de maio de 2009, Apothekerkammer des Saarlandes e o. (C‑171/07 e C‑172/07, EU:C:2009:316, n.o 33).