ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

18 de dezembro de 2014 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Crédito ao consumo — Diretiva 2008/48/CE — Obrigação de informações pré‑contratuais — Obrigação de verificar a solvabilidade do mutuário — Ónus da prova — Meios de prova»

No processo C‑449/13,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo tribunal d’instance d’Orléans (França), por decisão de 5 de agosto de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de agosto de 2013, no processo

CA Consumer Finance SA

contra

Ingrid Bakkaus,

Charline Bonato, com o apelido de solteira Savary,

Florian Bonato,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente de secção, K. Jürimäe, J. Malenovský, M. Safjan, A. Prechal (relatora), juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 10 de julho de 2014,

vistas as observações apresentadas:

em representação da CA Consumer Finance SA, por B. Soltner, avocat,

em representação do Governo francês, por D. Colas e S. Menez, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por A. Rubio González, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por M. Owsiany‑Hornung e M. Van Hoof, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de setembro de 2014,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 5.° e 8.° da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho (JO L 133, p. 66, e — retificações — JO 2009, L 207, p. 14, JO 2010, L 199, p. 40, e JO 2011, L 234, p. 46).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de litígios que opõem a CA Consumer Finance SA (a seguir «CA CF»), por um lado, a I. Bakkaus e, por outro, a C. Bonato, com o apelido de solteira Savary, e a F. Bonato (a seguir, conjuntamente, «mutuários») a respeito de pedidos de pagamento de quantias em dívida por empréstimos pessoais que esta sociedade lhes tinha concedido e em relação às quais os mutuários estão em situação de falta de pagamento.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 7, 9, 19, 24 e 26 a 28 da Diretiva 2008/48 têm a seguinte redação:

«(7)

A fim de facilitar o surgimento de um mercado interno do crédito aos consumidores que funcione corretamente, é necessário prever um quadro comunitário harmonizado em determinados domínios essenciais. […]

[…]

(9)

A harmonização plena é necessária para garantir que todos os consumidores da Comunidade beneficiem de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para instituir um verdadeiro mercado interno. Por conseguinte, os Estados‑Membros não deverão ser autorizados a manter nem a introduzir outras disposições para além das estabelecidas na presente diretiva. Todavia, esta restrição só será aplicável nos casos em que existam disposições harmonizadas na presente diretiva. Caso não existam essas disposições harmonizadas, os Estados‑Membros deverão continuar a dispor da faculdade de manter ou introduzir legislação nacional. […]

[…]

(19)

Para que possam tomar as suas decisões com pleno conhecimento de causa, os consumidores deverão receber informações adequadas, que possam levar consigo e apreciar, sobre as condições e o custo do crédito, bem como sobre as suas obrigações, antes da celebração do contrato de crédito. Para garantir a maior transparência possível e para permitir a comparabilidade das ofertas, estas informações deverão incluir, nomeadamente, a taxa anual de encargos efetiva global aplicável ao crédito e determinada da mesma forma em toda a Comunidade. […]

[…]

(24)

É necessário que o consumidor seja exaustivamente informado antes da celebração do contrato de crédito, independentemente de haver ou não um intermediário envolvido na comercialização do crédito. Por conseguinte, de um modo geral, os requisitos de informação pré‑contratual deverão também ser aplicáveis aos intermediários de crédito. […]

[…]

(26)

[…] Num mercado de crédito em expansão, é especialmente importante que os mutuantes não concedam empréstimos de modo irresponsável ou não concedam crédito sem uma prévia verificação da solvabilidade e que os Estados‑Membros efetuem a supervisão necessária para evitar tal comportamento e determinem as sanções necessárias para punir os mutuantes que adotem tal comportamento. […] [O]s mutuantes deverão ser responsáveis por verificar, individualmente, a solvabilidade do consumidor. Para o efeito, deverão ser autorizados a utilizar informações prestadas pelo consumidor não só durante a preparação do contrato de crédito em causa, mas também durante uma relação comercial de longa data. As autoridades dos Estados‑Membros poderão também dar instruções e orientações adequadas aos mutuantes. Também os consumidores deverão agir com prudência e respeitar as suas obrigações contratuais.

(27)

Apesar de ter recebido as informações pré‑contratuais, o consumidor pode ainda ter necessidade de assistência suplementar para determinar, de entre o leque de produtos propostos, qual o contrato de crédito que melhor se adequa às suas necessidades e à sua situação financeira. Por conseguinte, os Estados‑Membros deverão garantir que os mutuantes prestem essa assistência relativamente aos produtos de crédito que oferecem ao consumidor. Sempre que tal se revele necessário, a informação pré‑contratual relevante, bem como as características essenciais dos produtos propostos, deverão ser explicadas ao consumidor de forma personalizada, de modo que este possa compreender os efeitos daí decorrentes para a sua situação económica. Se for caso disso, esse dever de prestar assistência ao consumidor deverá igualmente ser aplicável aos intermediários de crédito. Os Estados‑Membros deverão poder determinar quando e em que medida essas explicações deverão ser dadas ao consumidor, tendo em conta o contexto particular em que o crédito é oferecido, a necessidade de assistência ao consumidor e a natureza de cada produto de crédito.

(28)

A fim de avaliar a solvabilidade de um consumidor, o mutuante deverá também consultar as bases de dados relevantes; as circunstâncias de facto e de direito podem exigir que tais consultas sejam de âmbito variável. […]»

4

O artigo 5.o da Diretiva 2008/48, intitulado «Informações pré‑contratuais», estabelece nos seus n.os 1, primeiro parágrafo, e 6:

«1.   Em tempo útil, antes de o consumidor se encontrar obrigado por um contrato de crédito ou uma oferta, o mutuante e, se for caso disso, o intermediário de crédito devem, com base nos termos e nas condições do crédito oferecidas pelo mutuante e, se for caso disso, nas preferências expressas pelo consumidor e nas informações por este fornecidas, dar ao consumidor as informações necessárias para comparar diferentes ofertas, a fim de tomar uma decisão com conhecimento de causa quanto à celebração de um contrato de crédito. Tais informações, em papel ou noutro suporte duradouro, devem ser prestadas através do formulário sobre ‘Informação Normalizada Europeia em matéria de Crédito aos Consumidores’ constante do anexo II. Considera‑se que o mutuante cumpriu os requisitos de informação previstos no presente número e nos n.os 1 e 2 do artigo 3.o da Diretiva 2002/65/CE se tiver fornecido a ‘Informação Normalizada Europeia em matéria de Crédito aos Consumidores’.

[…]

6.   Os Estados‑Membros devem garantir que os mutuantes e, se for caso disso, os intermediários de crédito forneçam explicações adequadas ao consumidor, de modo a colocá‑lo numa posição que lhe permita avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às suas necessidades e situação financeira, eventualmente fornecendo as informações pré‑contratuais previstas no n.o 1, explicando as características essenciais dos produtos propostos e os efeitos específicos que possam ter para o consumidor, incluindo as consequências da falta de pagamento pelo consumidor. Os Estados‑Membros podem adaptar a forma e a extensão em que esta assistência é prestada, bem como identificar quem a presta, às circunstâncias específicas da situação na qual se propõe o contrato de crédito, a quem é proposto e ao tipo de crédito oferecido.»

5

O artigo 8.o desta diretiva, com a epígrafe «Obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor», prevê no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados‑Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição.»

6

O artigo 22.o da referida diretiva, com a epígrafe «Harmonização e caráter imperativo da presente diretiva», dispõe no seus n.os 2 e 3:

«2.   Os Estados‑Membros devem assegurar que o consumidor não possa renunciar aos direitos que lhe são conferidos por força das disposições da legislação nacional que dão cumprimento ou correspondem à presente diretiva.

3.   Os Estados‑Membros devem assegurar, além disso, que as disposições que venham a aprovar para dar cumprimento à presente diretiva não possam ser contornadas em resultado da redação dos contratos, em especial integrando levantamentos ou contratos de crédito sujeitos ao âmbito de aplicação da presente diretiva em contratos de crédito cujo caráter ou objetivo permitiria evitar a aplicação desta.»

Direito francês

7

A Lei n.o 2010‑737, de 1 de julho de 2010, relativa à reforma do crédito ao consumo (JORF de 2 de julho de 2010, p. 12001), que visa transpor a Diretiva 2008/48 para o direito interno francês, foi incluída nos artigos L. 311‑1 e seguintes do Código do consumo.

8

O artigo L. 311‑6 desse código dispõe:

«I.

Previamente à celebração do contrato de crédito, o mutuante ou o intermediário do crédito deverão fornecer ao mutuário, por escrito ou noutro suporte duradouro, as informações necessárias para comparar diferentes ofertas e que lhe permitam compreender claramente, tendo em conta as suas preferências, o alcance do seu compromisso.

[…]

II.

Quando o consumidor solicitar a celebração de um contrato de crédito no local de venda, o mutuante deve garantir que o formulário de informação mencionado em I lhe é entregue nesse local.»

9

O artigo L. 311‑8 do referido código enuncia:

«O mutuante ou o intermediário de crédito devem fornecer ao mutuário as explicações necessárias que lhe permitam avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às suas necessidades e situação financeira, designadamente com base nas informações contidas no formulário referido no artigo L. 311‑6. Deverá chamar a atenção do mutuário para as características essenciais do ou dos créditos propostos e para os efeitos específicos que esses créditos possam ter na sua situação financeira, incluindo em caso de falta de pagamento. Essas informações serão prestadas, se for caso disso, com base nas preferências expressas pelo mutuário.

[…]»

10

O artigo L. 311‑9 do mesmo código tem a seguinte redação:

«Antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante verificará a solvabilidade do mutuário, com base em informações suficientes, incluindo as fornecidas por este último a pedido do mutuante. O mutuante consultará o ficheiro previsto no artigo L. 333‑4, nas condições previstas pelo decreto referido no artigo L. 333‑5.»

11

O artigo L. 311‑48, segundo e terceiro parágrafos, do Código do consumo prevê:

«Quando o mutuante não cumprir com as obrigações fixadas nos artigos L. 311‑8 e L. 311‑9, perde o direito aos juros, na totalidade ou na proporção fixada pelo julgador. […]

O mutuário é responsável apenas pelo reembolso do capital de acordo com o calendário previsto, bem como, se for o caso, pelo pagamento dos juros não perdidos pelo mutuante. As somas recebidas a título de juros, que vencem juros à taxa de juro legal a partir do dia do seu pagamento, serão restituídas pelo mutuante ou imputadas no capital que permanecer em dívida.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

Em 5 de maio de 2011, os cônjuges Bonato celebraram com a CA CF, por intermédio de um comerciante, um contrato de crédito relativo à aquisição de um veículo automóvel, no montante de 20900 euros, a uma taxa anual fixa de 6,40% e uma taxa anual efetiva global de 7,685%.

13

Em 15 de julho de 2011, I. Bakkaus celebrou com a CA CF um contrato relativo a um crédito pessoal no montante de 20000 euros, a uma taxa fixa anual de 7,674% e uma taxa anual efetiva global de 7,950%.

14

Tendo os reembolsos destes empréstimos cessado, a CA CF demandou os mutuários no tribunal d’instance d’Orléans, para efeitos de condenação dos mesmos no pagamento do montante do saldo dos referidos empréstimos, acrescido de juros.

15

O órgão jurisdicional de reenvio suscitou oficiosamente o fundamento relativo a uma eventual perda do direito aos juros, prevista no segundo parágrafo do artigo L. 311‑48 do Código do consumo, uma vez que a CA CF não apresentou nas audiências a ficha de informações pré‑contratuais que devia ter sido entregue aos mutuários nem qualquer outro documento que permitisse demonstrar que cumpriu a respeito destes o seu dever de informação e de verificação da sua solvabilidade.

16

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que a Diretiva 2008/48 e a Lei n.o 2010‑737, que visa transpor esta diretiva para o direito francês, impõem aos mutuantes obrigações de informação e de explicação que permitam ao mutuário efetuar uma escolha informada sobre o compromisso da subscrição do crédito. No entanto, nenhuma disposição da referida diretiva ou daquela lei fixa regras relativas ao ónus e meios da prova de cumprimento das obrigações que incumbem aos mutuantes.

17

No que diz respeito à obrigação de o mutuante entregar aos consumidores uma ficha de «Informação Normalizada Europeia em matéria de Crédito aos Consumidores», o órgão jurisdicional de reenvio refere que, no caso, a CA CF não apresentou essa ficha. Esta sociedade não apresentou documentos relativos ao seu dever de explicação nem se pronunciou sobre essa falta de justificação. O referido órgão jurisdicional salienta, no entanto, que o contrato assinado por I. Bakkaus continha a seguinte cláusula‑tipo: «Eu, abaixo assinada Bakkaus Ingrid declaro ter recebido e tomado conhecimento da ficha de informações europeia normalizada». O referido órgão jurisdicional de reenvio considera que uma cláusula destas é suscetível de criar dificuldades caso tenha por efeito inverter, em detrimento do consumidor, o ónus da prova. Considera ainda que este tipo de cláusula pode assim dificultar ou mesmo impossibilitar o exercício do direito do consumidor de contestar o pleno cumprimento das obrigações que incumbem ao mutuante.

18

No que respeita à verificação da solvabilidade dos mutuários, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que embora, no processo que diz respeito a I. Bakkaus, a CA CF tenha apresentado uma ficha de rendimentos assinada por esta, bem como justificações dos rendimentos que lhe tinham sido comunicadas pela interessada, o mesmo não se verifica no processo relativo ao casal Bonato.

19

Nestas condições, o tribunal d’instance d’Orléans decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve a Diretiva [2008/48] ser interpretada no sentido de que [incumbe] ao mutuante demonstrar o cumprimento correto e pleno das obrigações que lhe incumbem no momento da elaboração e do cumprimento de um contrato de crédito, resultantes do direito nacional que transpôs a [mesma] diretiva?

2)

A Diretiva [2008/48] opõe‑se a que a prova do cumprimento correto e pleno das obrigações que incumbem ao mutuante possa ser produzida exclusivamente através de uma cláusula‑tipo inserida no contrato de crédito em que o consumidor reconhece que o mutuante cumpriu as suas obrigações, sem que esse cumprimento seja corroborado pelos documentos apresentados pelo mutuante e entregues ao mutuário?

3)

Deve o artigo 8.o da Diretiva [2008/48] ser interpretado no sentido de que se opõe a que a verificação da solvabilidade do consumidor seja efetuada apenas com base nas informações declaradas pelo consumidor, sem confirmação efetiva destas informações através de outros documentos?

4)

Deve o artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva [2008/48] ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que o mutuante forneceu explicações adequadas ao consumidor se não tiver verificado previamente a situação financeira e as necessidades deste?

Deve o artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva [2008/48] ser interpretado no sentido de que se opõe a que as explicações adequadas fornecidas ao consumidor resultem apenas das informações contratuais mencionadas no contrato de crédito, sem formalização num documento específico?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira e segunda questões

20

Com a primeira e segunda questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, em primeiro lugar, se a Diretiva 2008/48 deve ser interpretada no sentido de que incumbe ao mutuante fazer a prova da execução correta e completa das obrigações pré‑contratuais previstas nos artigos 5.° e 8.° desta diretiva e que resultam do direito nacional que a transpõe e, em segundo lugar, se a inclusão de uma cláusula‑tipo no contrato de crédito, relativa ao reconhecimento por parte do consumidor da execução das obrigações do mutuante, não corroborada por documentos emitidos pelo mutuante e enviados ao mutuário, é prova suficiente da execução correta das obrigações pré‑contratuais de informação que incumbem ao mutuante.

21

A título preliminar, importa sublinhar que as obrigações pré‑contratuais visadas nessas questões contribuem para a realização do objetivo prosseguido pela Diretiva 2008/48, que consiste, como resulta dos seus considerandos 7 e 9, em prever, em matéria de crédito aos consumidores, uma harmonização plena e imperativa em determinados domínios essenciais, que é considerada necessária para garantir que todos os consumidores da União beneficiam de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para facilitar o surgimento de um mercado interno que funcione corretamente em matéria de crédito ao consumo (v. acórdão LCL Le Crédit Lyonnais, C‑565/12, EU:C:2014:190, n.o 42).

22

No entanto, no que diz respeito, em primeiro lugar, ao ónus da prova do respeito das obrigações de o mutuante fornecer informações adequadas ao consumidor e verificar a sua solvabilidade, previstas nos artigos 5.° e 8.° da Diretiva 2008/48, e, em segundo lugar, aos meios de prova do respeito destas obrigações, há que observar que esta diretiva não inclui nenhuma disposição a esse respeito.

23

Segundo jurisprudência constante, não havendo regulamentação da União na matéria, os meios processuais destinados a salvaguardar os direitos que para os sujeitos de direito decorrem do direito da União dependem da ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros, na condição, porém, de não serem menos favoráveis do que as que regulam situações análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e de não tornarem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., designadamente, acórdão Specht e o., C‑501/12 a C‑506/12, C‑540/12 e C‑541/12, EU:C:2014:2005, n.o 112 e jurisprudência aí referida).

24

Relativamente ao princípio da equivalência, refira‑se que o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento que permita suscitar dúvidas quanto à conformidade da legislação em causa no processo principal com esse princípio.

25

No que respeita ao princípio da efetividade, importa recordar que cada situação em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional impossibilita ou dificulta excessivamente a aplicação do direito da União deve ser analisada tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na sua tramitação e nas suas particularidades perante as várias instâncias nacionais (acórdão Kušionová, C‑34/13, EU:C:2014:2189, n.o 52 e jurisprudência aí referida).

26

No caso em apreço, no que diz respeito à legislação nacional em causa no processo principal, importa recordar que não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se quanto à interpretação de disposições de direito interno, incumbindo essa missão exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio.

27

Todavia, importa precisar que o respeito deste último princípio ficaria comprometido caso o ónus da prova da não execução das obrigações previstas nos artigos 5.° e 8.° da Diretiva 2008/48 recaísse sobre o consumidor. Com efeito, este último não dispõe dos meios que lhe permitam provar que o mutuante, por um lado, não lhe forneceu as informações previstas no artigo 5.o desta diretiva e, por outro, não verificou a sua solvabilidade.

28

Em contrapartida, a efetividade do exercício dos direitos conferidos pela Diretiva 2008/48 é assegurada por uma regra nacional segundo a qual o mutuante tem, em princípio, de demonstrar em juízo a boa execução dessas obrigações pré‑contratuais. Essa regra visa garantir, como foi recordado no n.o 21 do presente acórdão, a proteção do consumidor, sem prejudicar desmesuradamente o direito do mutuante a um processo equitativo. Com efeito, conforme salientou o advogado‑geral no n.o 35 das suas conclusões, um mutuante diligente deve ter consciência da necessidade de recolha e conservação das provas de execução das obrigações de informação e de explicação que lhe incumbem.

29

No que diz respeito à cláusula‑tipo que figura no contrato de crédito celebrado por I. Bakkaus, a mesma não compromete a efetividade dos direitos reconhecidos pela Diretiva 2008/48 embora, em virtude do direito nacional, esta cláusula implique apenas que o mutuário atesta a entrega que lhe foi feita da ficha de Informação Normalizada Europeia.

30

A este respeito, resulta do artigo 22.o, n.o 3, da Diretiva 2008/48 que esse tipo de cláusula não pode permitir ao mutuante contornar as suas obrigações. Assim, essa cláusula‑tipo constitui um indício que incumbe ao mutuante corroborar através de um ou mais elementos de prova relevantes. Por outro lado, o consumidor deve ter sempre a possibilidade de alegar que não recebeu a referida ficha ou que esta não permitia ao mutuante cumprir as obrigações de informações pré‑contratuais que lhe incumbem.

31

Em contrapartida, embora uma cláusula‑tipo destas comporte, por força do direito nacional, o reconhecimento pelo consumidor da plena e correta execução das obrigações pré‑contratuais que incumbem ao mutuante, implica, consequentemente, uma inversão do ónus da prova da execução das referidas obrigações suscetível de comprometer a efetividade dos direitos reconhecidos pela Diretiva 2008/48. Assim, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o valor probatório desta cláusula‑tipo compromete a possibilidade de tanto o consumidor como o julgador porem em causa a correta execução das obrigações de informação e de verificação pré‑contratuais que incumbem ao mutuante.

32

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que as disposições da Diretiva 2008/48 devem ser interpretadas no sentido de que:

por um lado, se opõem a uma legação nacional segundo a qual o ónus da prova da não execução das obrigações previstas nos artigos 5.° e 8.° da Diretiva 2008/48 recai sobre o consumidor e,

por outro, se opõem a que, em razão de uma cláusula‑tipo, o julgador deva considerar que o consumidor reconheceu a plena e correta execução das obrigações pré‑contratuais que incumbem ao mutuante, uma vez que assim tal cláusula implica uma inversão do ónus da prova da execução das referidas obrigações suscetível de comprometer a efetividade dos direitos reconhecidos pela Diretiva 2008/48.

Quanto à terceira questão

33

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 8.o da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que a avaliação da solvabilidade do consumidor seja efetuada apenas a partir das informações por este declaradas, sem que se proceda a um controlo efetivo destas informações através de outros elementos.

34

Resulta do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48 que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante deve avaliar a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, fornecidas, se for caso disso, por este último e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante.

35

A este respeito, o considerando 26 da referida diretiva enuncia que os mutuantes deverão ser responsáveis por verificar, individualmente, a solvabilidade do consumidor e deverão ser autorizados a utilizar informações prestadas pelo consumidor não só durante a preparação do contrato de crédito mas também durante uma relação comercial de longa data. Assim, esta obrigação visa responsabilizar os mutuantes e evitar a concessão de empréstimos a consumidores insolventes.

36

A Diretiva 2008/48 não enuncia de maneira exaustiva as informações com base nas quais o mutuante deve avaliar a solvabilidade do consumidor nem precisa se essas informações devem ser controladas e de que maneira o devem ser. Pelo contrário, a redação do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48, lido à luz do seu considerando 26, confere uma margem de apreciação ao mutuante para efeitos de determinar se as informações de que dispõe são suficientes ou não para atestar a solvabilidade do consumidor e se as deve verificar através de outros elementos.

37

Daí resulta que, em primeiro lugar, o mutuante deve apreciar, em cada caso e tendo em conta as circunstâncias particulares do mesmo, se as referidas informações são adequadas e em número suficiente para efeitos de avaliação da solvabilidade do consumidor. A este respeito, o caráter suficiente das referidas informações pode variar segundo as circunstâncias da celebração do contrato de crédito, a situação pessoal do consumidor ou o montante que este visa. Esta verificação pode fazer‑se através de documentos comprovativos da sua situação financeira, mas não é de excluir que o mutuante possa ter em conta o conhecimento prévio da situação financeira do candidato ao empréstimo de que já disponha. No entanto, simples declarações sem fundamento feitas por um consumidor não podem, por si só, ser consideradas suficientes caso não sejam acompanhadas de documentos comprovativos.

38

Em segundo lugar, e sem prejuízo do segundo período do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48, segundo o qual os Estados‑Membros podem manter, na sua legislação, a obrigação de o mutuante consultar uma base de dados, a Diretiva 2008/48 não impõe aos mutuantes que controlem sistematicamente a veracidade das informações fornecidas pelo consumidor. Em função das circunstâncias próprias de cada caso, o mutuante pode considerar suficientes as informações que lhe são fornecidas pelo consumidor ou considerar que é necessário obter a confirmação dessas informações.

39

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado, por um lado, no sentido de que não se opõe a que a verificação da solvabilidade do consumidor seja efetuada apenas a partir das informações por este fornecidas, desde que essas informações sejam em número suficiente e que as meras declarações deste sejam acompanhadas de documentos comprovativos, e, por outro lado, que não impõe ao mutuante proceder a controlos sistemáticos das informações fornecidas pelo consumidor.

Quanto à quarta questão

40

Com a sua quarta questão, que contém duas partes, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em primeiro lugar, se o artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que o mutuante forneceu explicações adequadas ao consumidor se não tiver verificado previamente a situação financeira e as necessidades deste. Em segundo lugar, esse órgão jurisdicional pergunta se esta disposição deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que as explicações adequadas fornecidas ao consumidor resultem apenas das informações contratuais referidas no contrato de crédito, sem que tenha sido apresentado um documento específico.

41

No que diz respeito à primeira parte desta questão, resulta do artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva 2008/48 e do seu considerando 27 que, apesar de ter recebido as informações pré‑contratuais, que devem ser fornecidas nos termos do artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva, o consumidor pode, antes de celebrar o contrato de crédito, ter necessidade de assistência suplementar para determinar qual o contrato de crédito que melhor se adequa às suas necessidades e à sua situação financeira. O mutuante deve, portanto, fornecer explicações adequadas e personalizadas ao consumidor que lhe permitam avaliar se o contrato de crédito proposto se adapta às suas necessidades e situação financeira, eventualmente fornecendo informações pré‑contratuais, explicando as características essenciais dos produtos propostos e os efeitos específicos que possam ter na sua situação, incluindo as consequências da falta de pagamento pelo consumidor.

42

Assim, esta obrigação de fornecimento de explicações adequadas tem por objeto permitir ao consumidor aderir a um tipo de contrato de empréstimo em total conhecimento de causa.

43

Em contrapartida, como já salientado no n.o 35 do presente acórdão, a obrigação de verificar a solvabilidade do consumidor, prevista no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48, visa responsabilizar os mutuantes e evitar a concessão de empréstimos a consumidores insolventes.

44

O artigo 5.o desta diretiva assim como o seu artigo 8.o visam proteger e assegurar a todos os consumidores da União um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses.

45

Apesar de estas duas obrigações terem caráter pré‑contratual, uma vez que se impõem antes da celebração do contrato de crédito, não resulta da redação nem dos objetivos dos artigos 5.° e 8.° da Diretiva 2008/48 que a avaliação da situação financeira e das necessidades do consumidor deva ser realizada antes do fornecimento das explicações adequadas. Em princípio, não existe ligação entre as duas obrigações resultantes destes artigos da referida diretiva. O mutuante está em condições de dar explicações ao consumidor, baseadas unicamente nos elementos que este lhe forneceu, a fim de que o consumidor se decida a respeito de um tipo de contrato de crédito, sem que seja obrigado a verificar antecipadamente a sua solvabilidade. No entanto, o mutuante deve ter em conta a avaliação da solvabilidade do consumidor, na medida em que essa avaliação necessite de uma adaptação das explicações fornecidas.

46

No que diz respeito à segunda parte desta quarta questão, importa recordar que resulta do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48 que as obrigações em matéria de informação previstas neste artigo têm um caráter pré‑contratual. Consequentemente, não podem ser cumpridas na fase da celebração do contrato de crédito. Mas devem sê‑lo em tempo útil, através da comunicação ao consumidor, antes da celebração desse contrato, das explicações previstas no artigo 5.o, n.o 6, da referida diretiva.

47

No que diz respeito às modalidades de cumprimento da obrigação de explicações que incumbe ao mutuante, o artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva 2008/48, contrariamente ao n.o 1 do mesmo artigo, não precisa sob que forma as explicações adequadas a que se refere devem ser fornecidas ao mutuário. Portanto, não resulta da redação desse n.o 6 nem do objetivo por este prosseguido que as referidas explicações devam ser fornecidas num documento específico e não está excluído que essas explicações possam ser dadas oralmente pelo mutuante ao consumidor, no decurso de uma entrevista.

48

Todavia, os Estados‑Membros podem, nos termos da segunda frase do n.o 6 do artigo 5.o desta diretiva, especificar a obrigação de fornecer explicações adequadas que incumbe ao mutuante. A questão da forma sob a qual estas devem ser fornecidas ao consumidor está, consequentemente, abrangida pelo direito nacional.

49

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido de que, embora não se oponha a que o mutuante forneça explicações adequadas ao consumidor antes de ter verificado a sua situação financeira e as suas necessidades, pode acontecer que a verificação da solvabilidade do consumidor necessite de uma adaptação das explicações adequadas fornecidas, que devem ser comunicadas ao consumidor em tempo útil, antes da assinatura do contrato de crédito, sem todavia impor a elaboração de um documento específico.

Quanto às despesas

50

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

As disposições da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores e que revoga a Diretiva 87/102/CEE do Conselho, devem ser interpretadas no sentido de que:

por um lado, se opõem a uma legislação nacional segundo a qual o ónus da prova da não execução das obrigações previstas nos artigos 5.° e 8.° da Diretiva 2008/48 recai sobre o consumidor e,

por outro, se opõem a que, em razão de uma cláusula‑tipo, o julgador deva considerar que o consumidor reconheceu a plena e correta execução das obrigações pré‑contratuais que incumbem ao mutuante, uma vez que assim tal cláusula implica uma inversão do ónus da prova da execução das referidas obrigações suscetível de comprometer a efetividade dos direitos reconhecidos pela Diretiva 2008/48.

 

2)

O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado, por um lado, no sentido de que não se opõe a que a verificação da solvabilidade do consumidor seja efetuada apenas a partir das informações por este fornecidas, desde que essas informações sejam em número suficiente e que as meras declarações deste sejam acompanhadas de documentos comprovativos, e, por outro lado, que não impõe ao mutuante proceder a controlos sistemáticos das informações fornecidas pelo consumidor.

 

3)

O artigo 5.o, n.o 6, da Diretiva 2008/48 deve ser interpretado no sentido de que, embora não se oponha a que o mutuante forneça explicações adequadas ao consumidor antes de ter verificado a sua situação financeira e as suas necessidades, pode acontecer que a verificação da solvabilidade do consumidor necessite de uma adaptação das explicações adequadas fornecidas, que devem ser comunicadas ao consumidor em tempo útil, antes da assinatura do contrato de crédito, sem todavia impor a elaboração de um documento específico.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.