Processo C‑174/04

Comissão das Comunidades Europeias

contra

República Italiana

«Incumprimento de Estado – Artigo 56.° CE – Suspensão automática dos direitos de voto em empresas privatizadas»

Conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas em 3 de Março de 2005 

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 2 de Junho de 2005 

Sumário do acórdão

Livre circulação de capitais – Restrições – Regulamentação nacional que limita os direitos de voto inerentes às participações de determinadas empresa públicas no capital de empresas que operam no sector da energia – Inadmissibilidade

(Artigo 56.° CE)

Não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.° CE um Estado‑Membro que mantém em vigor uma regulamentação que prevê a suspensão automática dos direitos de voto inerentes às participações que excedem o limite de 2% do capital social de empresas que operam nos sectores da electricidade e do gás, quando estas participações sejam adquiridas por empresas públicas não cotadas nos mercados financeiros regulamentados e que gozem no respectivo mercado nacional de uma posição dominante.

Efectivamente, essa regulamentação exclui no que respeita à categoria de empresas públicas a que se aplica uma participação efectiva na gestão e no controlo das empresas em causa e tem por efeito dissuadir em particular as empresas públicas estabelecidas noutros Estados‑Membros de adquirirem acções nessas empresas.

(cf. n.os 30, 42, disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

2 de Junho de 2005 (*)

«Incumprimento de Estado – Artigo 56.° CE – Suspensão automática dos direitos de voto em empresas privatizadas»

No processo C‑174/04,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 13 de Abril de 2004,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por E. Traversa e C. Loggi, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Italiana, representada por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por P. Gentili, avvocato dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann (relator), presidente de secção, K. Lenaerts, N. Colneric, K. Schiemann e E. Juhász, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 3 de Março de 2005,

profere o presente

Acórdão

1       Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias solicita que o Tribunal declare que o Decreto‑Lei (decreto‑legge) n.° 192, de 25 de Maio de 2001 (GURI n.° 120, de 25 de Maio de 2001, p. 4), convertido na Lei n.° 301, relativa às disposições urgentes para salvaguardar os procedimentos de liberalização e privatização de sectores específicos dos serviços públicos (legge n.° 301, recante «disposizioni urgenti per salvaguardare i processi di liberalizzazione e privatizzazione di specifici settori dei servizi pubblici»), de 20 de Julho de 2001 (GURI n.° 170, de 24 de Julho de 2001, p. 4, a seguir «Decreto‑Lei n.° 192/2001»), é incompatível com o artigo 56.° do Tratado CE na medida em que prevê a suspensão automática dos direitos de voto inerentes às participações que excedem o limite de 2% do capital social de sociedades que operam nos sectores da electricidade e do gás.

 Quadro jurídico

 Direito comunitário

2       O artigo 56.°, n.° 1, CE está redigido da seguinte forma:

«No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros.»

3       O anexo I da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1998, para a execução do artigo 67.° do Tratado (JO L 178, p. 5), contém a nomenclatura dos movimentos de capitais referidos no artigo 1.° desta directiva (a seguir «nomenclatura em anexo à Directiva 88/361»). Enumera nomeadamente os movimentos seguintes:

«I.      Investimentos directos [...]

1)      Criação e extensão de sucursais ou de empresas novas pertencentes exclusivamente ao investidor e aquisição integral de empresas existentes

2)      Participação em empresas novas ou existentes com vista a criar ou manter laços económicos duradouros

[...]»

4       De acordo com as notas explicativas que constam do anexo I da Directiva 88/361, entende‑se por «investimentos directos»:

«Os investimentos de qualquer natureza efectuados por pessoas singulares, empresas comerciais, industriais ou financeiras e que servem para criar ou manter relações duradouras e directas entre o investidor e o empresário ou a empresa a que se destinam esses fundos com vista ao exercício de uma actividade económica. Esta noção deve pois ser considerada na sua acepção mais lata.

[...]

No que se refere às empresas mencionadas no ponto I 2 da nomenclatura e que têm o estatuto de sociedades por acções, existe participação com carácter de investimentos directos, quando o lote de acções que se encontra na posse de uma pessoa singular, de uma outra empresa ou de qualquer outro detentor, dá a esses accionistas, quer por força no disposto na legislação nacional sobre as sociedades por acções, quer por qualquer outro modo, a possibilidade de participarem efectivamente na gestão dessa sociedade ou no seu controlo.

[...]»

5       A nomenclatura em anexo à Directiva 88/361 refere igualmente os movimentos seguintes:

«III. Operações sobre títulos normalmente transaccionados no mercado de capitais [...]

[...]

A.      Transacções sobre títulos do mercado de capitais

1)      Aquisição por não residentes de títulos nacionais negociados na Bolsa [...]

[...]

3)      Aquisição por não residentes de títulos nacionais não negociados na Bolsa [...]

[...]»

 Direito nacional

6       O artigo 1.°, primeiro e segundo parágrafos, do Decreto‑Lei n.° 192/2001 dispõe:

«Até à realização na União Europeia de um mercado totalmente aberto à concorrência nos sectores da electricidade e do gás, tendo em vista a salvaguarda dos processos de liberalização e de privatização em curso nesses sectores, a concessão ou transmissão das autorizações ou concessões previstas nos Decretos legislativos n.° 79, de 16 de Março de 1999, relativo à energia eléctrica, e n.° 164, de 23 de Maio de 2000, relativo ao mercado nacional de gás natural, decorrem nas condições indicadas no n.° 2 no que diz respeito às pessoas colectivas controladas directa ou indirectamente pelo Estado ou por outros serviços públicos, que detenham uma posição dominante no respectivo mercado nacional e não estejam cotadas em mercados financeiros regulamentados, que adquiram, directa ou indirectamente ou através de um terceiro, mesmo através de oferta pública a termo ou por via diferida, participações superiores a 2% do capital social de sociedades que operam nos referidos sectores, quer seja de forma directa ou através de sociedades controladas por aquelas ou a elas coligadas. O limite total de 2% é relativo à própria pessoa colectiva e ao grupo a que pertence, ou seja, a pessoa colectiva que exerce o controlo, mesmo que não tenha a forma jurídica de uma sociedade, as sociedades controladas e as sociedades controladas em conjunto, bem como as sociedades coligadas. Este limite refere‑se igualmente às pessoas colectivas que, directa ou indirectamente, incluindo por intermédio de sociedades controladas ou coligadas, de sociedades fiduciárias ou de interpostas pessoas, sejam partes, mesmo com terceiros, em acordos relativos ao exercício do direito de voto ou em acordos ou pactos entre accionistas.

Caso o limite indicado no n.° 1 seja excedido, a partir do momento da concessão ou da transmissão das autorizações ou concessões referidas nesse número, o direito de voto ligado às acções que excedam o limite é automaticamente suspenso e o mesmo não se tem conta para efeitos do quórum nas assembleias deliberativas. Os direitos de aquisição ou de subscrição a termo ou diferida também já não podem ser exercidos.»

 Procedimento pré‑contencioso

7       Por ofício de 23 de Outubro de 2002, a Comissão informou o Governo italiano de que considerava que o Decreto‑Lei n.° 192/2001, na medida em que prevê, para as sociedades que operam nos sectores da electricidade e do gás, a suspensão dos direitos de voto inerentes às participações superiores a 2% quando estas participações sejam adquiridas por empresas públicas, era contrário às disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais. Por conseguinte, convidou este governo a apresentar‑lhe as suas observações no prazo de dois meses.

8       O Governo italiano respondeu que, embora o Decreto‑Lei n.° 192/2001 constitua uma restrição à livre circulação de capitais, o mesmo representa, todavia, o único instrumento susceptível de proteger o mercado italiano contra formas de investimento que não respeitam os critérios da livre concorrência.

9       Considerando estas observações insuficientes para justificar semelhante regulamentação, a Comissão dirigiu, em 11 de Julho de 2003, um parecer fundamentado à República Italiana, convidando‑a a dar‑lhe cumprimento num prazo de dois meses.

10     Não tendo o Governo italiano respondido ao parecer fundamentado, a Comissão decidiu intentar no Tribunal de Justiça a presente acção.

 Quanto à acção

 Argumentos das partes

11     Remetendo para os acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2002, Comissão/Portugal (C‑367/98, Colect., p. I‑4731); Comissão/França (C‑483/99, Colect., p. I‑4781); Comissão/Bélgica (C‑503/99, Colect., p. I‑4809); de 13 de Maio de 2003, Comissão/Espanha (C‑463/00, Colect., p. I‑4581), e Comissão/Reino Unido (C‑98/01, Colect., p. I‑4641), a Comissão alega que o Decreto‑Lei n.° 192/2001 introduz um tratamento diferenciado e restritivo dos investimentos efectuados por uma categoria particular de investidores e obsta, portanto, à livre circulação de capitais na Comunidade. Qualquer empresa pública de outro Estado‑Membro potencialmente interessada seria dissuadida por esta regulamentação de adquirir uma participação nas sociedades que operam nos sectores da electricidade e do gás, dado que ela ficaria impossibilitada de participar eficazmente nas decisões destas sociedades e de exercer influência na respectiva gestão.

12     O artigo 56.° CE não estabelece qualquer distinção entre medidas discriminatórias e não discriminatórias nem entre empresas públicas e privadas. Apesar de o referido artigo não definir o conceito de «movimentos de capitais», o investimento directo transfronteiriço insere‑se nesse conceito, em conformidade com a nomenclatura em anexo à Directiva 88/361. Caracteriza‑se, em particular, pela possibilidade de participar eficazmente na gestão de uma sociedade e no respectivo controlo. A aquisição de participações e o pleno exercício dos direitos de voto com os mesmos conexos são, portanto, abrangidos pelo conceito de «movimentos de capitais».

13     O Governo italiano conclui pela improcedência da acção.

14     O Decreto‑Lei n.° 192/2001 não introduz um tratamento discriminatório. Diz respeito às aquisições realizadas pelas empresas públicas nacionais do mesmo modo que às aquisições realizadas pelas empresas públicas de outros Estados‑Membros.

15     Aliás, a limitação do direito de voto não afecta em todos os casos a livre circulação de capitais. O Governo italiano invoca, a título de exemplo, os artigos 85.° a 97.° da Directiva 2001/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Maio de 2001, relativa à admissão de valores mobiliários à cotação oficial de uma Bolsa de valores e à informação a publicar sobre esses valores (JO L 184, p. 1), e 10.° da Directiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, relativa aos mercados de instrumentos financeiros, que altera as Directivas 85/611/CEE e 93/6/CEE do Conselho e a Directiva 2000/12/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Directiva 93/22/CEE do Conselho (JO L 145, p. 1), que deram directamente aplicação ao artigo 56.° CE. Estas disposições, que permitem igualmente uma limitação do direito de voto para evitar que um simples investimento de capital se transforme numa capacidade efectiva de controlo e de direcção de uma sociedade, não são em si mesmas incompatíveis com o princípio da livre circulação de capitais.

16     O Decreto‑Lei n.° 192/2001 está em conformidade com a livre circulação de capitais, principalmente pela razão de que o mesmo prossegue os objectivos comunitários formulados na comunicação da Comissão 13 de Março de 2001, intitulada «Realização do mercado interno da energia» [COM(2001) 125 final], em particular o de limitar a influência anticoncorrencial que as empresas públicas em situação de monopólio que assumam o controlo de empresas que operem nos sectores da electricidade e do gás podem exercer nos correspondentes mercados.

17     É certo que a abertura dos mercados dos Estados‑Membros nos sectores da electricidade e do gás progrediu consideravelmente no decurso destes últimos anos devido à regulamentação comunitária, em particular as Directivas 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade (JO 1997, L 27, p. 20), e 98/30/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho de 1998, relativa a regras comuns para o mercado do gás natural (JO L 204, p. 1).

18     Contudo, a transposição destas directivas para a ordem jurídica interna dos Estados‑Membros originou uma abertura assimétrica dos vários mercados nacionais. Certos Estados optaram por uma abertura do mercado mais ampla do que a prevista por estas directivas, outros limitaram‑se a abrir o respectivo mercado na estrita medida pelas mesmas imposta. No entanto, as medidas adoptadas a nível comunitário para remediar este desequilíbrio revelaram‑se insuficientes. Incumbe, portanto, não apenas às instituições comunitárias, mas também aos Estados‑Membros, lutar contra as assimetrias existentes na estrutura concorrencial do mercado em causa e as distorções de concorrência que poderão resultar de eventuais abusos.

19     Assim, o Decreto‑Lei n.° 192/2001 constitui o único instrumento que permite evitar que o mercado italiano seja objecto de ataques especulativos anticoncorrenciais por parte de entidades públicas que operam no mesmo sector noutros Estados‑Membros e são favorecidas pelas respectivas regulamentações nacionais.

20     O problema que se coloca no caso em apreço é diferente do colocado nos processos na origem dos acórdãos já referidos Comissão/Portugal, Comissão/França, Comissão/Bélgica, Comissão/Espanha e Comissão/Reino Unido. Nesses processos, as medidas nacionais controvertidas tiveram por objectivo em cada um dos casos manter a influência do Estado e impedir a liberalização. Pelo contrário, na medida em que tem unicamente por destinatárias as empresas públicas, o Decreto‑Lei n.° 192/2001 tem por objectivo excluir a influência estatal. Consequentemente, os critérios enunciados nos acórdãos já referidos não podem ser transpostos para o presente caso.

21     Além disso, o referido decreto‑lei tem carácter temporário. Aplica‑se unicamente até à realização de um mercado interno plenamente liberalizado nos sectores do gás e da electricidade.

22     Por último, aplicando‑se exclusivamente às empresas públicas que gozem no respectivo mercado nacional de uma posição dominante, o mesmo limita‑se às medidas estritamente necessárias e proporcionais.

23     Segundo a Comissão, todos estes argumentos carecem de relevância.

24     Os Estados‑Membros não podem sobrepor‑se à competência da Comunidade na matéria. Não cabe aos governos nacionais, mas sim à Comissão, como guardiã dos Tratados, zelar pela boa aplicação das disposições comunitárias em causa e opor‑se a eventuais infracções à livre concorrência. As medidas unilaterais adoptadas por certos Estados‑Membros, sob o pretexto de evitar distorções nos seus próprios mercados, introduzem, pelo contrário, essas distorções no conjunto do mercado comunitário, o que não pode aceitar‑se. Ora, as medidas nacionais em causa no caso em apreço têm carácter estritamente proteccionista.

25     Por outro lado, não se pode alegar a insuficiência da regulamentação comunitária. Esta regulamentação foi mesmo reforçada recentemente por várias medidas, em particular as Directivas 2003/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade e que revoga a Directiva 96/92/CE (JO L 176, p. 37), e 2003/55/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Directiva 98/30/CE (JO L 176, p. 57).

 Apreciação do Tribunal de Justiça

26     Há que recordar, a título preliminar, que o artigo 56.°, n.° 1, CE põe em prática a livre circulação de capitais entre os Estados‑Membros e entre os Estados‑Membros e países terceiros. Para este efeito, prevê, no âmbito das disposições do capítulo do Tratado intitulado «Os capitais e os pagamentos», que são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros.

27     Embora o Tratado não defina os conceitos de movimentos de capitais e de pagamentos, é pacífico que a Directiva 88/361, conjuntamente com a nomenclatura que lhe está anexa, tem valor indicativo para definir o conceito de movimentos de capitais (v. acórdãos Comissão/Reino Unido, já referido, n.° 39, e de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C‑222/97, Colect., p. I‑1661, n.os 20 e 21).

28     Com efeito, os pontos I e III da nomenclatura em anexo à Directiva 88/361 e as notas explicativas aí incluídas indicam que o investimento directo sob a forma de participação numa empresa através da detenção de acções e a aquisição de títulos no mercado de capitais constituem movimentos de capitais na acepção do artigo 56.° CE. Nos termos das referidas notas explicativas, o investimento directo, em especial, caracteriza‑se pela possibilidade de participação efectiva na gestão de uma sociedade e no seu controlo.

29     À luz destas considerações, há que examinar se o Decreto‑Lei n.° 192/2001, que prevê a suspensão automática dos direitos de voto inerentes às participações superiores a 2% do capital social de sociedades que operam nos sectores da electricidade e do gás, quando estas participações sejam adquiridas por empresas públicas não cotadas nos mercados financeiros regulamentados e que gozem de uma posição dominante, constitui uma restrição aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros.

30     A este respeito, há que concluir que a suspensão dos direitos de voto, prevista pelo referido decreto, exclui para a categoria de empresas públicas a que se refere uma participação efectiva na gestão e no controlo das empresas italianas que operam nos mercados da electricidade e do gás. Uma vez que o objectivo prosseguido pelo Decreto‑Lei n.° 192/2001 é o de evitar «ataques anticoncorrenciais por parte de entidades públicas que operam no mesmo sector noutros Estados‑Membros», o mesmo tem por efeito dissuadir em particular as empresas públicas estabelecidas noutros Estados‑Membros de adquirirem acções nas empresas italianas que operam no sector da energia.

31     Decorre do que precede que a suspensão dos direitos de voto prevista pelo Decreto‑Lei n.° 192/2001 constitui uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 56.° CE.

32     Esta conclusão não pode ser infirmada pelo facto de a regulamentação em causa se aplicar unicamente a uma categoria de empresas que gozem no seu mercado nacional de uma posição dominante. Com efeito, as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais não estabelecem qualquer distinção entre as empresas privadas e as empresas públicas nem entre empresas que gozam de uma posição dominante e as que não gozam dessa posição.

33     Além disso, o Governo italiano não pode sustentar que, uma vez que são compatíveis com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais as disposições da Directiva 2004/39 que prevêem, sob certas condições, uma limitação dos direitos de voto inerentes a determinadas acções, o mesmo vale para o Decreto‑Lei n.° 192/2001. Esta directiva, que foi adoptada no quadro da liberdade de estabelecimento e não, contrariamente ao que afirma o Governo italiano, no do artigo 56.° CE, insere‑se num contexto diferente e muito específico, ou seja, a admissão de valores mobiliários à cotação oficial. As limitações do direito de voto são aí previstas exclusivamente a título de penalidade pelo desrespeito das disposições legislativas. Estas limitações não são, por conseguinte, contrariamente ao Decreto‑Lei n.° 192/2001, de natureza a dissuadir as empresas de outros Estados‑Membros de efectuarem investimentos em certas empresas nacionais. Aliás, no que toca aos artigos 85.° a 97.° da Directiva 2001/34, estes prevêem unicamente obrigações de informação quando da aquisição e da cessão de uma participação significativa numa sociedade cotada na Bolsa, bem como a obrigação de os Estados‑Membros preverem penalidades apropriadas em caso de desrespeito dessas obrigações. As medidas que os Estados‑Membros adoptaram a esse respeito não relevam no contexto do presente processo.

34     Há ainda que examinar se a restrição à livre circulação de capitais pode ser justificada face às disposições do Tratado.

35     A este respeito, há que recordar que a livre circulação de capitais, enquanto princípio fundamental do Tratado, só pode ser limitada por uma regulamentação nacional se esta se justificar pelas razões referidas no artigo 58.°, n.° 1, CE ou por razões imperiosas de interesse geral. Além disso, para ser desse modo justificada, a regulamentação nacional deve ser adequada a garantir a realização do objectivo que prossegue e não ultrapassar o que é necessário para que seja alcançado, a fim de respeitar o princípio da proporcionalidade (v. acórdãos Comissão/Bélgica, já referido, n.° 45, e de 7 de Setembro de 2004, Manninen, C‑319/02, Colect., p. I‑7498, n.° 29).

36     O Governo italiano alega que, através dos processos de liberalização e privatização, os mercados da energia na Itália foram abertos à concorrência. O Decreto‑Lei n.° 192/2001 destina‑se a salvaguardar condições de concorrência sãs e equitativas nesses mercados. O mesmo permite evitar que, na expectativa de uma liberalização efectiva do sector da energia na Europa, o mercado italiano seja objecto de ataques anticoncorrenciais por parte de empresas públicas que operam no mesmo sector noutros Estados‑Membros e são favorecidas por uma regulamentação nacional que as manteve numa posição privilegiada. A aquisição do controlo de empresas que operam nos mercados italianos da electricidade e do gás por tais empresas públicas poderá anular os esforços das autoridades italianas para abrir o sector da energia à concorrência.

37     A este propósito, como o Tribunal já declarou, o interesse no reforço da estrutura concorrencial do mercado em causa em geral não pode constituir uma justificação válida para restrições à livre circulação de capitais (v. acórdão Comissão/Portugal, já referido, n.° 52).

38     Em qualquer caso, são aplicáveis as disposições do Regulamento (CE) n.° 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas (JO L 24, p. 1). Há que, para esse efeito, recordar que a regulamentação nacional em causa se aplica exclusivamente às empresas públicas que gozem já de uma posição dominante no respectivo mercado nacional. Ora, em conformidade com o artigo 2.°, n.° 3, do Regulamento n.° 139/2004, a Comissão proíbe as concentrações de dimensão comunitária que entravem significativamente uma concorrência efectiva no mercado comum ou numa parte substancial deste, «em particular em resultado […] do reforço de uma posição dominante» preexistente.

39     O Governo italiano remete ainda para a necessidade de assegurar o fornecimento de energia no território italiano.

40     Apesar de a necessidade de garantir o aprovisionamento em energia poder, em certas condições, justificar restrições às liberdades fundamentais do Tratado (v. acórdãos de 10 de Julho de 1984, Campus Oil e o., 72/83, Recueil, p. 2727, n.os 34 e 35, e Comissão/Bélgica, já referido, n.° 46), o Governo italiano não demonstrou como é que a limitação dos direitos de voto que se aplica exclusivamente a uma categoria específica de empresas públicas é indispensável para alcançar o objectivo em causa. Em particular, não explicou a razão pela qual é necessário que as acções das empresas que operam no sector da energia na Itália sejam detidas por accionistas privados ou por accionistas públicos cotados nos mercados financeiros regulamentados para que as empresas em causa possam garantir um aprovisionamento suficiente e ininterrupto de electricidade e gás no mercado italiano.

41     Por conseguinte, o Governo italiano não demonstrou que o Decreto‑Lei n.° 192/2001 é indispensável para assegurar o aprovisionamento de energia no interior do país.

42     Há, portanto, que declarar que, ao manter em vigor o Decreto‑Lei n.° 192/2001 que prevê a suspensão automática dos direitos de voto inerentes às participações superiores a 2% do capital social de empresas que operam nos sectores da electricidade e do gás, quando estas participações sejam adquiridas por empresas públicas não cotadas nos mercados financeiros regulamentados e que gozem no respectivo mercado nacional de uma posição dominante, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.° CE.

 Quanto às despesas

43     Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se tal tiver sido requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Italiana e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      Ao manter em vigor o Decreto‑Lei (decreto‑legge) n.° 192, de 25 de Maio de 2001, convertido na Lei n.° 301, relativa às disposições urgentes para salvaguardar os procedimentos de liberalização e privatização de sectores específicos dos serviços públicos (legge n.° 301, recante disposizioni urgenti per salvaguardare i processi di liberalizzazione e privatizzazione di specifici settori dei servizi pubblici), de 20 de Julho de 2001, que prevê a suspensão automática dos direitos de voto inerentes às participações superiores a 2% do capital social de empresas que operam nos sectores da electricidade e do gás, quando estas participações sejam adquiridas por empresas públicas não cotadas nos mercados financeiros regulamentados e que gozem no respectivo mercado nacional de uma posição dominante, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.° CE.

2)      A República Italiana é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: italiano.