ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

21 de Junho de 1974 ( *1 )

No processo 2/74,

que tem por objecto um pedido apresentado ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Conseil d'État da Bélgica, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Jean Reyners, «docteur en droit», administrador de empresas, residente em Woluwé-Saint-Lambert (Bruxelas),

e

Estado belga, representado pelo ministro da Justiça,

parte interveniente:

Ordem Nacional dos Advogados da Bélgica,

uma decisão a título prejudicial, relativa à interpretação dos artigos 52.o e 55.o do Tratado CEE, em relação com o decreto real, de 24 de Agosto de 1970, que estabelece uma derrogação ao requisito de nacionalidade previsto no artigo 428.o do «Code judiciaire», relativo ao título e ao exercício da profissão de advogado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, A. M. Donner e M. Sørensen, presidentes de secção, R. Monaco, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, H. Kutscher, C. O'Dálaigh e A. J. Mackenzie Stuart, juízes,

advogado-geral: H. Mayras

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por decisão de 21 de Dezembro de 1973, registada na Secretaria do Tribunal em 9 de Janeiro de 1974, o Conseil d'État da Bélgica apresenta, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, duas questões respeitantes à interpretação dos artigos 52.o e 55.o do Tratado CEE, relativos ao direito de estabelecimento, em relação com o exercício da profissão de advogado.

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um recurso interposto por um cidadão neerlandês, possuidor do diploma legal que confere habilitação para o acesso à profissão de advogado na Bélgica, o qual se encontra afastado deste exercício, em razão da sua nacionalidade, por força do Decreto Real, de 24 de Agosto de 1970, relativo ao título e ao exercício da profissão de advogado (Moniteur belge, 1970, p. 9060).

Quanto à interpretação do artigo 52.o do Tratado CEE

3

O Conseil d'État pretende saber se o artigo 52.o do Tratado CEE é, desde o ter- mo do período de transição, uma «disposição directamente aplicável», não obstante a inexistência das directivas previstas nos artigos 54.o, n.o 2, e 57.o, n.o 1, do Tratado.

4

Os Governos belga e irlandês alegaram, com base em fundamentos amplamente concordantes, que não se pode reconhecer tal eficácia ao artigo 52.o

5

Considerado no contexto do capítulo relativo ao direito de estabelecimento, para o qual é remetido de forma expressa pelos termos «no âmbito das disposições seguintes», este artigo apenas se limitaria, em razão da complexidade da matéria, a enunciar um princípio cuja implementação está necessariamente subordinada a um conjunto de disposições complementares, comunitárias e nacionais, previstas pelos artigos 54.o e 57.o

6

A forma adoptada pelo Tratado para estes actos de implementação — estabelecimento de um «programa geral», executado por sua vez mediante a adopção de um conjunto de directivas — confirmaria que o artigo 52.o não tem eficácia directa.

7

Não caberia ao juiz exercer um poder de apreciação reservado às instituições legislativas da Comunidade e dos Estados-membros.

8

Esta argumentação é, no essencial, partilhada pelos governos britânico e luxemburguês, bem como pela Ordem Nacional dos Advogados da Bélgica, parte interveniente em processo principal.

9

O recorrente no processo principal, pelo seu lado, observa que está apenas em causa, no seu caso, uma discriminação em razão da nacionalidade, na medida em que está sujeito a condições de admissão à profissão de advogado que não são aplicáveis aos nacionais belgas.

10

A este respeito, o artigo 52.o constituiria uma disposição clara e completa, susceptível de ter eficácia directa.

11

O Governo alemão, apoiado no essencial pelo Governo neerlandês, recordando o acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de Junho de 1966, no processo 57/65, Lütticke (Colect. 1965-1968, p. 361), considera que as disposições que impõem aos Estados-membros uma obrigação que estes devem executar num prazo determinado é directamente aplicável quando, no momento da expiração deste prazo, a obrigação não foi cumprida.

12

No termo do período de transição, os Estados-membros já não teriam assim a possibilidade de manter as restrições à liberdade de estabelecimento, constituindo o artigo 52.o, a partir dessa data, uma disposição por si só completa e juridicamente perfeita.

13

Nestas condições, o «programa geral» e as directivas previstas pelo artigo 54.o apenas teriam sido relevantes durante o período de transição, uma vez que a liberdade de estabelecimento estaria plenamente realizada no termo desse período.

14

A Comissão, apesar das dúvidas manifestadas sobre a eficácia directa da disposição submetida a interpretação — em razão, tanto da remissão pelo Tratado para o «programa geral» e para as directivas de aplicação como em razão do conteúdo de determinadas directivas de liberalização já adoptadas, que não estabelecem integralmente uma igualdade de tratamento perfeita —, considera todavia que o artigo 52.o teria, no mínimo, uma eficácia directa parcial, na medida em que proíbe de forma específica as discriminações em razão da nacionalidade.

15

O artigo 7o do Tratado, que integra a parte relativa aos «princípios» da Comunidade, estabelece que, no âmbito de aplicação do Tratado e sem prejuízo das suas disposições especiais, «é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade».

16

O artigo 52.o assegura a implementação desta disposição geral no domínio especial do direito de estabelecimento.

17

Através da expressão «no âmbito das disposições seguintes», o referido artigo remete para o conjunto do capítulo relativo ao direito de estabelecimento e requer, consequentemente, que seja interpretado nesse âmbito geral.

18

Após ter estabelecido que «suprimir-se-ão gradualmente, durante o período de transição, as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-membro no território de outro Estado-membro», o artigo 52.o enuncia o princípio fundamental nesta matéria, dispondo que a liberdade de estabelecimento compreende o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício «nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais».

19

Com vista à realização progressiva deste objectivo durante o período de transição, o artigo 54.o prevê a elaboração, pelo Conselho, de um «programa geral» e, para a implementação deste programa, a adopção de directivas destinadas a realizar a liberdade de estabelecimento para as diferentes actividades em causa.

20

Para além destas medidas de liberalização, o artigo 57o prevê directivas destinadas a assegurar o reconhecimento mútuo de diplomas, certificados e outros títulos e, de forma geral, a coordenação das legislações em matéria de estabelecimento e de exercício das actividades não assalariadas.

21

Resulta do que antecede que, no sistema do capítulo relativo ao direito de estabelecimento, o «programa geral» e as directivas previstas pelo Tratado são destinados a cumprir duas funções: a primeira, eliminar, durante o período de transição, os obstáculos à realização da liberdade de estabelecimento, a segunda, introduzir, na legislação dos Estados-membros, um conjunto de disposições destinadas a facilitar o exercício efectivo dessa liberdade, com o objectivo de favorecer a interpenetração económica e social no interior da Comunidade no domínio das actividades não assalariadas.

22

É este segundo objectivo que visam, por um lado, determinadas disposições do artigo 54.o, n.o 3, relativas nomeadamente à colaboração entre as administrações nacionais competentes e à adaptação dos processos e práticas administrativas e, por outro lado, o conjunto das disposições do artigo 57.o

23

A eficácia das disposições do artigo 52.o deve ser determinada no âmbito deste sistema.

24

A norma do tratamento nacional constitui uma das disposições jurídicas fundamentais da Comunidade.

25

Ao remeter para um conjunto de disposições legislativas efectivamente aplicadas pelo país de estabelecimento aos seus próprios nacionais, esta norma é, por essência, susceptível de ser directamente invocada pelos nacionais de todos os outros Estados-membros.

26

Estabelecendo no termo do período de transição a realização da liberdade de estabelecimento, o artigo 52.o prevê assim uma obrigação de resultado concreta, cuja execução devia ser facilitada, mas não condicionada, pela implementação de um programa de medidas progressivas.

27

O facto de este carácter progressivo não ter sido respeitado, deixa intacta a própria obrigação, uma vez decorrido o prazo estabelecido para a sua execução.

28

Tal interpretação é conforme com o artigo 8.o, n.o 7, do Tratado, nos termos do qual o termo do período de transição constitui a data limite para a entrada em vigor de todas as disposições previstas pelo Tratado e para a concretização do conjunto de realizações que o estabelecimento do mercado comum comporta.

29

Não se poderá invocar, contra tal eficácia, a circunstância de o Conselho não ter adoptado as directivas previstas pelos artigos 54.o e 57.o, ou ainda o facto de determinadas directivas efectivamente adoptadas não terem realizado plenamente o objectivo de não discriminação constante do artigo 52.o

30

Com efeito, depois do termo do período de transição, as directivas previstas pelo capítulo relativo ao direito de estabelecimento tornaram-se supérfluas para a implementação da norma do tratamento nacional, na medida em que esta é doravante consagrada pelo próprio Tratado com eficácia directa.

31

Estas directivas não perderam, contudo, relevância, pois conservam um importante âmbito de aplicação no domínio das medidas destinadas a favorecer o exercício efectivo do direito de livre estabelecimento.

32

Deve assim responder-se à questão apresentada que, desde o termo do período de transição, o artigo 52.o do Tratado é uma disposição directamente aplicável, não obstante a eventual inexistência, num determinado domínio, das directivas previstas nos artigos 54.o, n.o 2, e 57.o, n.o 1, do Tratado.

Quanto à interpretação do artigo 55.o, primeiro parágrafo, do Tratado CEE

33

O Conseil d'État pretende ainda ver esclarecido o sentido da expressão «actividades que, num Estado-membro, estejam ligadas, mesmo ocasionalmente, ao exercício da autoridade pública» do artigo 55.o, primeiro parágrafo.

34

Trata-se de saber, mais precisamente, se no seio de uma profissão como a de advogado são exceptuadas da aplicação do capítulo relativo ao direito de estabelecimento apenas as actividades inerentes a essa profissão que estejam ligadas ao exercício da autoridade pública, ou se essa profissão seria exceptuada no seu conjunto, em razão de compreender actividades ligadas ao exercício dessa autoridade.

35

O Governo luxemburguês e a Ordem Nacional dos Advogados da Bélgica consideram que a profissão de advogado estaria, no seu conjunto, subtraída às normas do Tratado em matéria de direito de estabelecimento, devido a estar ligada organicamente ao funcionamento do serviço público da justiça.

36

Tal situação resultaria tanto da organização legal da actividade forense, que comporta um conjunto de condições de admissão e uma disciplina rigorosas, como das funções exercidas pelo advogado no âmbito do processo judiciário onde a sua participação seria, em larga medida, obrigatória.

37

Estas actividades, que fariam do advogado um auxiliar indispensável da justiça, constituiriam um conjunto coerente, cujos elementos não poderiam ser dissociados.

38

O recorrente na causa principal, pelo seu lado, alega que, quando muito, apenas determinadas actividades do advogado estariam ligadas ao exercício da autoridade pública e que unicamente essas seriam assim abrangidas pela excepção estabelecida pelo artigo 55.o ao princípio da liberdade de estabelecimento.

39

Para os governos alemão, belga, britânico, irlandês e neerlandês, bem como para a Comissão, a excepção do artigo 55.o limita-se apenas às actividades que, no seio das diferentes profissões interessadas, estejam efectivamente ligadas ao exercício da autoridade pública, sob condição que sejam dissociáveis do exercício normal da profissão.

40

Subsistem todavia algumas divergências entre os governos mencionados no que diz respeito à natureza das actividades exceptuadas do princípio da liberdade de estabelecimento, tendo em consideração a diferente organização da profissão de advogado de um Estado-membro para outro.

41

Em particular, o Governo alemão considera que, em razão da participação obrigatória do advogado em determinados actos judiciais, nomeadamente em matéria penal ou de direito público, a profissão de advogado e o exercício da autoridade pública estão de tal forma ligados que haveria que exceptuar da liberalização, no mínimo, largos sectores dessa profissão.

42

Nos termos do artigo 55.o, primeiro parágrafo, são exceptuadas da aplicação das disposições do capítulo relativo ao direito de estabelecimento «as actividades que, num Estado-membro, estejam ligadas, mesmo ocasionalmente, ao exercício da autoridade pública».

43

Tendo em consideração o carácter fundamental, no sistema do Tratado, da liberdade de estabelecimento e da norma do tratamento nacional, as derrogações admitidas pelo artigo 55 o, primeiro parágrafo, não podem assumir um alcance que ultrapasse o objectivo para o qual essa cláusula de excepção foi prevista.

44

O artigo 55.o, primeiro parágrafo, deve permitir aos Estados-membros, nos casos em que determinadas funções que implicam o exercício da autoridade pública estejam ligadas a uma das actividades não assalariadas previstas pelo artigo 52 o, excluírem o acesso dos não nacionais às referidas funções.

45

Tal exigência é plenamente satisfeita quando a exclusão daqueles nacionais é limitada às actividades que, por si só consideradas, constituem uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública.

46

A extensão da derrogação prevista pelo artigo 55.o a toda uma profissão apenas seria admissível no caso em que as actividades assim caracterizadas se encontrassem de tal forma ligadas a esse exercício que a liberalização do estabelecimento teria por efeito impor ao Estado-membro interessado a obrigação de admitir o exercício, mesmo ocasional, por parte de não nacionais, de funções inerentes à autoridade pública.

47

Não se pode, em contrapartida, admitir tal extensão quando, no âmbito de uma profissão liberal, actividades que estejam eventualmente ligadas ao exercício da autoridade pública constituam um elemento cindível do conjunto da actividade profissional em causa.

48

Na ausência de qualquer directiva, adoptada nos termos do artigo 57.o, visando harmonizar as disposições nacionais relativas, em especial, à profissão de advogado, o exercício desta continua a ser regulado pelo direito dos vários Estados-membros.

49

A eventual aplicação das restrições à liberdade de estabelecimento previstas pelo artigo 55.o, primeiro parágrafo, deve assim ser apreciada separadamente, em relação a cada Estado-membro, à luz das disposições nacionais aplicáveis à organização e exercício dessa profissão.

50

Tal apreciação deve, todavia, ter em consideração o carácter comunitário dos limites estabelecidos pelo artigo 55.o às excepções autorizadas ao princípio da liberdade de estabelecimento, a fim de evitar que o efeito útil do Tratado seja afastado por disposições unilaterais dos Estados-membros.

51

As prestações profissionais que impliquem contactos, mesmo regulares e orgânicos, com os órgãos jurisdicionais, mediante a participação, mesmo obrigatória, no seu funcionamento, não constituem, porém, uma participação no exercício cia autoridade pública.

52

Em particular, não se poderão considerar como uma participação nessa autoridade as actividades mais típicas da profissão de advogado, tais como a consultadoria e a assistência jurídica, assim como a representação e a defesa das partes em juízo, mesmo quando a intervenção ou a assistência do advogado são obrigatórias, ou constituem objecto de uma exclusividade estabelecida pela lei.

53

Com efeito, o exercício destas actividades não interfere com a apreciação da autoridade judicial e o livre exercício do poder jurisdicional.

54

Há assim que responder à questão apresentada que a excepção à liberdade de estabelecimento prevista pelo artigo 55.o, primeiro parágrafo, deve limitar-se às actividades visadas pelo artigo 52.o que, em si próprias, implicam uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública.

55

No âmbito de uma profissão liberal como a de advogado, em nenhuma circunstância se pode atribuir essa qualificação a actividades tais como a consultadoria e a assistência jurídica, ou a representação e a defesa das partes em justiça, mesmo se o exercício destas actividades constitui o objecto de uma obrigação ou de uma exclusividade estabelecidas pela lei.

Quanto às despesas

56

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino da Bélgica, Governo da República Federal da Alemanha, Governo da Irlanda, Governo do Grão-Ducado do Luxemburgo, Governo do Reino dos Países Baixos, Governo do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis.

57

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o Conseil d'État da Bélgica, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Conseil d'État da Bélgica, Secção Administrativa, Terceira Secção, por decisão de 21 de Setembro de 1973, declara:

 

1)

Desde o termo do período de transição, o artigo 52.o do Tratado CEE é uma disposição directamente aplicável, não obstante a eventual inexistência, num determinado domínio, das directivas previstas nos artigos 54.o, n.o 2, e 57.o, n.o 1, do Tratado.

 

2)

A excepção à liberdade de estabelecimento prevista pelo artigo 55.o, primeiro parágrafo, do Tratado CEE, deve limitar-se às actividades visadas pelo artigo 52.o que, por si só, implicam uma participação directa e específica no exercício da autoridade pública; no âmbito de uma profissão liberal como a de advogado, não se pode atribuir aquela qualificação a actividades tais como a consultadoria e a assistência jurídica, ou a representação e a defesa das partes em juízo, mesmo se o exercício das referidas actividades constitui o objecto de uma obrigação ou de uma exclusividade estabelecidas pela lei.

 

Lecourt

Donner

Sørensen

Monaco

Mertens de Wilmars

Pescatore

Kutscher

O'Dálaigh

Mackenzie Stuart

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de Junho de 1974

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: francês