ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

29 de Fevereiro de 1968 ( *1 )

No processo 24/67,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, pelo Gerechtshof da Haia, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Parke, Davis and Co.

e

Probei, Reese, Beintema-Interpharm e Centrafarm,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 85.o, n.o 1, e 86.o, conjugados com os artigos 26.o e 222.o, do Tratado que institui a CEE, a respeito dos direitos cuja tutela o titular duma patente concedida num Estado-membro pode pedir aos tribunais,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: R. Lecourt, presidente, A. M. Donner e W. Strauß, presidentes de secção, A. Trabucchi e R. Monaco, juízes,

advogado-geral: K. Roemer

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

Por acórdão de 30 de Junho de 1967, entrado no Tribunal em 6 de Julho, o Gerechtshof (tribunal de segunda instância) da Haia apresentou ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177o do Tratado que institui a CEE, duas questões relativas à interpretação dos artigos 85 o, n.o 1, e 86.o

Resulta dos elementos considerados pelo órgão jurisdicional a quo que as questões colocadas dizem respeito ao exercício dos direitos inerentes, segundo a lei neerlandesa, a uma patente de invenção que protege nos Países Baixos uma especialidade farmacêutica em relação à importação para este Estado dum produto análogo fabricado noutro Estado-membro, no qual as especialidades farmacêuticas não podem ser objecto de patente.

Na primeira questão, solicita-se ao Tribunal que declare se a noção de práticas proibidas que resulta dos artigos 85 o, n.o 1, e 86.o, eventualmente conjugados com os artigos 36.o e 222.o do Tratado, abrange a acção do titular duma patente de invenção concedida num Estado-membro, quando, ao abrigo desta patente, solicita aos órgãos juridicionais nacionais que impeçam qualquer comercialização no território deste Estado dum produto proveniente dum Estado-membro que não concede o direito exclusivo de fabricar e vender esse produto.

Na segunda questão, o órgão jurisdicional a quo pergunta se a eventual aplicação dos artigos acima referidos pode ser afectada pelo facto do representante do titular da patente oferecer o produto com patente registada a ura preço superior ao do produto análogo sem patente, proveniente de outro Estado-membro.

As regras nacionais relativas à protecção da propriedade industrial ainda não foram objecto de unificação no âmbito da Comunidade.

Na falta dessa unificação, o carácter nacional da protecção da propriedade industrial e as divergências entre as legislações relativas a esta matéria podem criar obstáculos quer à livre circulação dos produtos com patente, quer ao mecanismo da concorrência no interior do mercado comum.

No âmbito das disposições relativas à livre circulação de produtos, as proibições e restrições de importação justificadas por razões de protecção da propriedade industrial são admitidas pelo artigo 36.o, mas com a reserva expressa de que «não devem constituir nem um meio de discriminação arbitrária, nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros».

Por motivos idênticos, o exercício dos direitos que decorrem duma patente concedida em conformidade com a legislação dum Estado-membro não constitui em si mesmo uma infracção às normas de concorrência estabelecidas pelo Tratado.

Nos termos do n.o 1 do artigo 85.o do Tratado são proibidos por incompatíveis com o mercado comum «todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas» susceptíveis de afectar o comércio entre Estados-membros e que tenham por objecto ou por efeito alterar o mecanismo da concorrência.

Se a generalidade dos termos utilizados indica o objectivo de atingir sem distinção todas as categorias de acordos descritos nesta disposição, o carácter restritivo desta é incompatível com qualquer extensão da proibição nela prevista para além das três categorias de acordos taxativamente enumeradas.

A patente da invenção, considerada em si própria e independentemente de qualquer convenção de que possa ser objecto, não se assemelha a nenhuma destas categorias, antes resulta dum estatuto legal concedido por um Estado relativamente aos produtos que respondam a certos critérios e escapa, por isso, aos elementos contratuais ou de concertação exigidos pelo n.o 1 do artigo 85.o

Em contrapartida, não está excluído que as disposições deste artigo possam ter aplicação se a utilização duma ou várias patentes, concertada entre empresas, conduzir à criação duma situação susceptível de se enquadrar no âmbito das noções de acordos entre empresas, decisões de associações de empresas ou práticas concertadas na acepção do n.o 1 do artigo 85.o

Todavia, apesar das alusões feitas a uma tal situação no decurso do processo e cuja apreciação compete ao Gerechtshof (tribunal de segunda instância) da Haia, o texto das questões colocadas e o estado do processo não permitem ao Tribunal de Justiça considerar esta hipótese.

Nos termos do artigo 86.o do Tratado é proibido «na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste».

O facto proibido exige, por isso, a verificação de três elementos: a existência de uma posição dominante, a sua exploração abusiva e a possibilidade de o comércio entre Estados-membros poder ser afectado.

Embora a patente de invenção confira ao seu titular uma protecção especial no âmbito de um Estado, daí não resulta que o exercício dos direitos assim conferidos implique a verificação dos três elementos citados.

Só poderia ser de outra forma se a utilização da patente degenerasse numa exploração abusiva dessa protecção.

Aliás, num domínio comparável, o artigo 36.o do Tratado, depois de dispor que os artigos 30.o a 34.o não obstam às restrições de importação ou de exportação justificadas designadamente por razões de protecção da propriedade industrial e comercial, precisa, como já foi observado, que estas restrições «não devem constituir nem um meio de discriminação arbitrária, nem qualquer restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros».

Em consequência, relevando a existência do direito de patente actualmente apenas da legislação interna, só o seu uso poderia ser abrangido pelo direito comunitário no caso de o mesmo contribuir para uma posição dominante cuja exploração abusiva fosse susceptível de afectar o comércio entre os Estados-membros.

Sem excluir que o preço de venda do produto protegido possa ser considerado como elemento de apreciação duma eventual exploração abusiva, o preço mais elevado do produto com patente em relação ao do produto sem patente não constitui necessariamente abuso.

Resulta dos elementos considerados, por um lado, que os direitos conferidos por um Estado-membro ao titular de uma patente de invenção não são afectados pelas proibições previstas nos artigos 85o, n.o 1, e 86.o do Tratado e, por outro, que o exercício desses direitos não pode em si mesmo ser abrangido nem pelo n.o 1 do artigo 85o, desde que não exista qualquer acordo, decisão ou prática concertada referidas por esta disposição, nem pelo artigo 86.o, desde que não haja qualquer abuso de posição dominante e, finalmente, o preço mais elevado de venda do produto com patente, relativamente ao produto sem patente proveniente doutro Estado-membro, não constitui necessariamente abuso.

Quanto as despesas

As despesas efectuadas pela Comissão da CEE e pelos Governos neerlandês, alemão e francês, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete ao Gerechtshof da Haia decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

vistos os autos,

visto o relatório do juiz-relator,

vistas as observações das partes no processo principal, da Comissão da CEE e dos Governos neerlandês, alemão e francêsa, que intervieram nos termos do artigo 20.o do Estatuto do Tribunal,

ouvidas as conclusões do advogado-geral,

vistos os artigos 30.o a 34.o, 36.o, 85.o, 86.o, 177.o e 222o do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia,

visto o Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da Comunidade Económica Europeia,

visto o Regulamento Processual do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que Lhe foram submetidas pelo Gerechtshof da Haia, por acórdão de 30 de Junho de 1967, declara:

 

1)

Os direitos conferidos por um Estado-membro ao titular de uma patente de invenção não são afectados pelas proibições referidas nos artigos 85.o, n.o 1, e 86.o do Tratado.

 

2)

O exercício desses direitos não pode em si próprio estar abrangido nem pelo n.o 1 do artigo 85.o, desde que não exista qualquer acordo, decisão ou prática concertada visados por esta disposição, nem pelo artigo 86.o, desde que não haja qualquer exploração abusiva duma posição dominante.

 

3)

O preço mais elevado de venda do produto com patente relativamente ao do produto sem patente proveniente doutro Estado-membro, não constitui necessariamente um abuso.

 

4)

Compete ao Gerechtshof da Haia decidir quanto às despesas.

 

Lecourt

Donner

Strauß

Trabucchi

Monaco

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 29 de Fevereiro de 1968.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

R. Lecourt


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.