52003DC0259

Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu e ao banco central Europeu - Aplicação aos serviços financeiros dos nºs 4 a 6 do artigo 3º da Directiva relativa ao comércio electrónico /* COM/2003/0259 final */


COMUNICAÇÃO DA COMISSÃO AO CONSELHO, AO PARLAMENTO EUROPEU E AO BANCO CENTRAL EUROPEU - APLICAÇÃO AOS SERVIÇOS FINANCEIROS DOS NºS 4 A 6 DO ARTIGO 3º DA DIRECTIVA RELATIVA AO COMÉRCIO ELECTRÓNICO

1. INTRODUÇÃO

A presente comunicação tem por objectivo explicar, no domínio específico dos serviços financeiros, os mecanismos instaurados pelos nºs 4 a 6 do artigo 3º da Directiva relativa ao comércio electrónico [1].

[1] Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e Conselho de 8 de Junho de 2000. JO L 178 de 17 de Julho de 2000, p. 1.

A comunicação justifica-se, no caso dos serviços financeiros, pelo facto de alguns Estados-Membros, desde a adopção da Directiva relativa ao comércio electrónico e, nomeadamente, durante as negociações da Directiva relativa à comercialização à distância dos serviços financeiros, terem expresso as suas preocupações relativamente à aplicação plena e global da denominada cláusula do "mercado interno", no domínio dos serviços financeiros. Esses Estados-Membros consideraram que, na pendência de uma maior convergência em determinados domínios (como as regras de conduta para os serviços de investimento ou os fundos não harmonizados), deveriam ter a possibilidade, não obstante a Directiva relativa ao comércio electrónico, de impor algumas das suas regras aos novos serviços prestados por via electrónica. Esse período de transição, que teria resultado numa derrogação - embora temporária - da Directiva, foi rejeitado pela Comissão e pela maioria dos Estados-Membros.

Por esta ocasião, a Comissão sublinhou que os nºs 4, 5 e 6 do artigo 3º da Directiva relativa ao comércio electrónico ofereciam garantias suficientes aos Estados-Membros que pretendessem adoptar medidas, caso a caso, contra um fornecedor de serviços que pusesse em perigo um dos objectivos de interesse geral abrangidos pelo nº 4, alínea a) i, do artigo 3º da Directiva, ou que representasse um grave risco para a concretização deste objectivo.

O objectivo da presente comunicação é o de fornecer uma assistência aos Estados-Membros que pretendam utilizar estes mecanismos. Não constitui de modo algum um documento interpretativo. Além disso, não incide sistematicamente em todos os aspectos constantes dos nºs 4 a 6, do artigo 3º da Directiva, mas apenas naqueles em que a Comissão verificou uma necessidade de explicação e de assistência.

Esta comunicação não impõe qualquer obrigação jurídica aos Estados-Membros. Não afecta a posição que a Comissão possa vir a tomar sobre as mesmas matérias se a experiência adquirida, incluindo a jurisprudência do tribunal, a levem a rever algumas das posições expressas no presente documento.

A Comissão vai igualmente empreender, com os Estados-Membros, a identificação dos domínios em que poderia revelar-se necessária uma maior convergência das regulamentações nacionais. Neste contexto, a Comissão vai analisar as necessidades de harmonização em alguns sectores em que as regulamentações nacionais continuam a ser divergentes, dando origem a potenciais problemas em termos de livre circulação dos serviços e de protecção dos consumidores, por exemplo, no domínio de determinados fundos de investimento não harmonizados.

A Comissão está consciente de que nem todos os acórdãos referidos na presente comunicação pertencem ao âmbito dos serviços financeiros e que, na sua globalidade, não decorrem de litígios originados pelo comércio electrónico. Não obstante, com base no facto de que o Tribunal de Justiça actua normalmente por analogia e não possui uma jurisprudência "sectorial" propriamente dita, a Comissão considerou ser possível e fiável fundamentar as análises que se seguem na jurisprudência existente.

No entanto, não é de excluir que o Tribunal venha a desenvolver uma jurisprudência no domínio específico do comércio electrónico, a qual poderia confirmar ou anular a jurisprudência existente. Este risco é inerente ao exercício prospectivo empreendido.

2. ANÁLISE DOS NºS 4-6 DO ARTIGO 3º

A Directiva relativa ao comércio electrónico estabelece que os Estados-Membros asseguram que os serviços da sociedade da informação fornecidos por um prestador estabelecido no seu território cumpram as disposições nacionais que lhes são aplicadas neste Estado-Membro e que dizem respeito ao domínio coordenado.

Além disso, a directiva prevê que os Estados-Membros não possam, por razões inerentes ao domínio coordenado, limitar a livre circulação dos serviços da sociedade da informação provenientes de outro Estado-Membro.

* No entanto, a Directiva relativa ao comércio electrónico prevê algumas derrogações.

Em primeiro lugar, o anexo da Directiva contém um certo número de derrogações à cláusula do mercado interno que incluem determinadas disposições das Directivas relativas aos seguros [2], a publicidade dos OICVM [3] e a emissão de moeda electrónica pelas instituições que não beneficiam de um passaporte europeu [4].

[2] Artigo 30º e Título IV da Directiva 92/49/CEE, (JO L 311 de 14.11.1997, p. 42), Título IV da Directiva 92/96/CEE, (JO L 311 de 14.11.1997, p. 43), artigos 7º e 8º da Directiva 88/357 CEE, (JO L 172 de 04.07.1988, p. 1) e artigo 4º da Directiva 90/619/CEE,( JO L 330 de 29.11.1990, p. 50-61).

[3] Nº 2 do artigo 44º da Directiva 85/611/CEE, JO L 375 de 31.12.1985, p. 3-18.

[4] Instituições em relação às quais os Estados-Membros recorreram a uma das derrogações previstas no nº 1 do artigo 8º da Directiva 2000/46 CE, JO L 275 de 27.10.2000, p. 39-43.

Existem outras derrogações de ordem geral, que poderiam ser especialmente pertinentes em matéria de serviços financeiros. Dizem respeito à liberdade das partes em escolher o direito aplicável ao seu contrato, às obrigações contratuais dos contratos celebrados com os consumidores, etc.

Por outro lado, os nºs 4, 5 e 6 do artigo 3º da Directiva permitem aos Estados-Membros adoptarem medidas, tais como sanções ou injunções, que podem limitar a prestação de serviços em linha provenientes de outros Estados-Membros. Essas medidas são acompanhadas de condições rigorosas.

Os nºs 4, 5 e 6 do artigo 3º estabelecem que:

"4. Os Estados-Membros podem tomar medidas derrogatórias do nº 2 em relação a determinado serviço da sociedade de informação, caso sejam preenchidas as seguintes condições:

a) As medidas devem ser:

i) Necessárias por uma das seguintes razões:

- defesa da ordem pública, em especial prevenção, investigação, detecção e incriminação de delitos penais, incluindo a protecção de menores e a luta contra o incitamento ao ódio fundado na raça, no sexo, na religião ou na nacionalidade, e contra as violações da dignidade humana de pessoas individuais,

- protecção da saúde pública,

- segurança pública, incluindo a salvaguarda da segurança e da defesa nacionais,

- defesa dos consumidores, incluindo os investidores;

ii) Tomadas relativamente a um determinado serviço da sociedade da informação que lese os objectivos referidos na sub-alínea i), ou que comporte um risco sério e grave de prejudicar esses objectivos;

iii) Proporcionais a esses objectivos;

b) Previamente à tomada das medidas em questão, e sem prejuízo de diligências judiciais, incluindo a instrução e os actos praticados no âmbito de uma investigação criminal, o Estado-Membro deve:

- ter solicitado ao Estado-Membro a que se refere o n.o 1 que tome medidas, sem que este último as tenha tomado ou se estas se tiverem revelado inadequadas,

- ter notificado à Comissão e ao Estado-Membro a que se refere o n.o 1 a sua intenção de tomar tais medidas.

5. Os Estados-Membros podem, em caso de urgência, derrogar às condições previstas na alínea b) do n.o 4. Nesse caso, as medidas devem ser notificadas no mais curto prazo à Comissão e ao Estado-Membro a que se refere o n.o 1, indicando as razões pelas quais consideram que existe uma situação de urgência.

6. Sem prejuízo da faculdade de o Estado-Membro prosseguir a aplicação das medidas em questão, a Comissão analisará, com a maior celeridade, a compatibilidade das medidas notificadas com o direito comunitário; se concluir que a medida é incompatível com o direito comunitário, a Comissão solicitará ao Estado-Membro em causa que se abstenha de tomar quaisquer outras medidas previstas, ou ponha termo, com urgência, às medidas já tomadas.

2.1. ANÁLISE DO Nº 4 DO ARTIGO 3º

2.1.1. Domínios abrangidos pelo nº 4 do artigo 3º

O nº 4 do artigo 3º não abrange todos os motivos identificados pelo Tribunal no contexto dos artigos 49º e 28º do Tratado para justificar uma restrição determinada pela defesa do interesse geral. De facto, para além dos motivos abrangidos pelo artigo 46º do Tratado (ordem pública, segurança pública e saúde pública), identifica apenas um único dos objectivos, para o que o Tribunal considera susceptível de justificar restrições à livre circulação dos serviços. Trata-se da protecção dos consumidores, incluindo os investidores.

O carácter limitativo e exaustivo desta lista exclui que alguns dos objectivos conhecidos como de interesse geral pelo Tribunal, como por exemplo a defesa da boa reputação do sector financeiro [5], possam justificar medidas adoptadas com base no nº 4 do artigo 3º, salvo nos casos em que estas medidas teriam realmente por objectivo a protecção do consumidor.

[5] Acórdão de 10 de Maio de 1995, Alpine Investments, procº C-384/93, Col. p. I-1141.

2.1.2. Noção de "determinado serviço da sociedade de informação"

Entende-se por "determinado", que o Estado-Membro de destino não possa, no âmbito do nº 4 do artigo 3º, adoptar medidas gerais em relação a uma categoria de serviços financeiros como, por exemplo, os fundos de investimento, os créditos, etc.

Para ser abrangida pelo âmbito de aplicação do nº 4 do artigo 3º, importa pois que a medida seja adoptada caso a caso, em relação a um serviço financeiros específico fornecido por um dado operador.

Por exemplo, poderia tratar-se de uma medida, como uma advertência ou uma coima, aplicada por um país de destino em relação a um banco que proponha, a partir do seu site situado num outro país da União Europeia, serviços de investimento não harmonizados aos residentes do país em questão. Estas medidas poderiam, por exemplo, ser tomadas em virtude de o banco não respeitar certas regras de conduta do país de origem, destinadas a proteger o consumidor.

Em contrapartida, um Estado-Membro não poderia, com base no nº 4 do artigo 3º, decidir que a globalidade da sua legislação relativa, por exemplo, aos fundos de investimento não harmonizados, fosse aplicável de um modo geral e horizontal a qualquer serviço acessível aos seus residentes.

2.1.3. Protecção da "ordem pública"

As razões avançadas no número da Directiva relativo à ordem pública são mencionadas a título de exemplo.

No domínio dos serviços financeiros, é pouco provável a priori que os serviços possam afectar a ordem pública, na acepção comunitária desta expressão. De facto, esta noção deve ser interpretada à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a ordem pública, segundo a qual a noção de ordem pública deve ser interpretada num sentido muito restrito [6].

[6] Acórdão Calf, procº C-384/96, Col. p. I-11.

Por exemplo, o Tribunal considerou que objectivos de natureza económica não podiam constituir motivos de ordem pública na acepção do artigo 46º do Tratado [7].

[7] Acórdão de 26 de Abril de 1988, Bond van Adverteerders, procº 352/85, Col. p. 2085.

Para o Tribunal, "o recurso de uma autoridade nacional à noção de ordem pública pressupõe, em todos os casos, a existência, para além da perturbação que uma infracção à lei constitui para a ordem social, uma ameaça real e suficientemente grave, que afecte o interesse fundamental da sociedade" [8].

[8] Acórdão de 27 de Outubro de 1977, Bouchereau, procº 30/77, Col. p. 1999.

À excepção dos serviços prestados ilegalmente no quadro do financiamento de actividades criminosas (incluindo o terrorismo) e o branqueamento de capitais, dificilmente se imagina quais poderiam ser os serviços financeiros que se insiram na categoria de "ameaça grave do interesse fundamental da sociedade".

2.1.4. Protecção dos consumidores, incluindo os investidores

A Directiva relativa ao comércio electrónico define como consumidor "qualquer pessoa singular que actue para fins alheios à sua actividade comercial, empresarial ou profissional".

Por conseguinte, depreende-se claramente do texto que uma pessoa colectiva não pode ser considerada "consumidor" na acepção dessa directiva.

Em contrapartida não estabelece uma definição de investidor. No entanto, depreende-se claramente do enunciado do nº 4 do artigo 3º que só são abrangidos os "investidores" que se inserem na definição de "consumidor". Qualquer medida relativa, por exemplo, aos investidores, pessoas colectivas ou particulares que actuassem no quadro da sua actividade profissional, não seria abrangida pelo nº 4 do artigo 3º [9].

[9] Acórdão de 22 de Novembro de 2001, Idealservice, procºs apensos C-541/99 e C-542/99, Col. p. I-049.

O Tribunal considerou que tanto o sector dos seguros [10] como o sector bancário [11] constituem um domínio especialmente sensível do ponto de vista da protecção dos consumidores.

[10] Acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão contra Alemanha, procº 205/84, Col. p. 3755.

[11] Acórdão de 9 de Julho de 1997, Parodi, procº C-222/95, Col. p. I-3899.

2.1.5. Noção de risco "grave e sério"

As medidas devem ser adoptadas relativamente a um dado serviço que prejudique efectivamente um dos objectivos enumerados ou que constitua um risco sério e grave de vir a afectar esse objectivo.

Esta formulação permite ao Estado-Membro de destino do serviço não só adoptar de medidas repressivas, mas também de medidas preventivas, numa situação de risco grave e sério para os objectivos em questão.

2.1.6. Condições relativas à notificação

A notificação deve satisfazer três condições.

Importa que o Estado-Membro que adopta as medidas tenha:

- solicitado ao Estado-Membro de estabelecimento do prestador a adopção de medidas;

- que este último não tenha tomado ou que não tenham sido suficientes;

- notificado à Comissão e ao Estado-Membro de estabelecimento do prestador a sua intenção de adoptar essas medidas.

Estas três condições são perfeitamente claras.

A primeira condição implica que o Estado-Membro de estabelecimento do prestador tenha sido informado e tido a possibilidade de resolver o problema ao seu nível. A segunda que o Estado-Membro não o tenha feito satisfatoriamente segundo o Estado-Membro de destino. A terceira condição implica uma informação prévia da Comissão, para que possa exercer as competências que lhe são confiadas com base no nº 6, e do Estado-Membro de origem. A directiva não estabelece prazos exactos para actuação do Estado do prestador, na sequência da notificação recebida pelo Estado-Membro de destino do serviço. No entanto, o nº 3 do artigo 19º da directiva estabelece que os Estados-Membros devem prestar "com a maior celeridade" a assistência, as informações solicitadas pelos outros Estados-Membros ou pela Comissão.

Além disso, depreende-se claramente do texto do nº 4, alínea b), do artigo 3º da Directiva que a obrigação de notificação não impede de modo algum o Estado-Membro em questão de empreender diligências judiciais, incluindo a instrução e actos praticados no âmbito de uma investigação criminal.

Por último, importa referir que o diálogo com o Estado-Membro de estabelecimento do prestador e a notificação à Comissão incumbem à administração central do Estado e não, por exemplo, a um juiz.

2.1.7. Consequências da não ausência de notificação

A ausência de notificação prévia à Comissão e ao Estado-Membro de origem poderia ser objecto de uma acção por incumprimento por parte da Comissão contra o Estado-Membro infractor. Além disso, sendo suficientemente precisas e incondicionais, as disposições da directiva que impõe aos Estados-Membros uma obrigação de notificação poderiam provavelmente ser invocadas por particulares junto de um tribunal nacional. Por conseguinte, não é de excluir que um banco possa alegar junto de tribunal nacional que as medidas que lhe são aplicadas num Estado-Membro com base no nº 4 do artigo 3º não foram objecto de notificação prévia.

2.2. ANÁLISE DO Nº 6 DO ARTIGO 3º

O nº 6 do artigo 3º atribui à Comissão a obrigação de examinar a compatibilidade das medidas notificadas com base no nº 4.

Importa referir que esta análise não é suspensiva na medida em que o Estado-Membro de destino pode adoptar as medidas previstas sem aguardar o resultado do exame da Comissão.

A fim de realizar este exame de conformidade, a Comissão basear-se-á nas condições estabelecidas no nº 4 e na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

O Tribunal considerou que:

"As medidas nacionais susceptíveis de afectar ou de tornar menos atraente o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado devem preencher quatro condições: aplicarem-se de modo não discriminatório, justificarem-se por razões imperativas de interesse geral, serem adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objectivo" [12].

[12] Acórdão de 30 de Novembro de 1995, Gebhard, procº C-55/94, Col. p. I-4165

Com base nesta jurisprudência do Tribunal, a Comissão realizará um certo número de testes a fim de avaliar a conformidade de uma medida notificada.

2.2.1. Teste de interesse geral

É imperativo que a medida adoptada se insira num dos domínios expressamente citados no nº 4 do artigo 3º, cujo número é mais reduzido que o dos objectivos considerados de interesse geral pelo Tribunal de Justiça.

2.2.2. Teste de não-discriminação

De acordo com a jurisprudência constante, o Tribunal definiu a discriminação como:

"a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou a aplicação da mesma regra a situações diferentes" [13].

[13] Acórdão de 27 de Junho de 1996, Asscher, procº C-107/94, Col. p. I-3089.

A este respeito, importa ter em conta circunstâncias objectivas, a fim de determinar se se trata de facto de uma discriminação [14].

[14] Acórdão de 19 de Março de 2002, Comissão contra Itália, procº C-224/00, ainda não publicado.

Actualmente, essas medidas discriminatórias são bastante raras nas regulamentações nacionais relativas aos serviços financeiros, porém não é de excluir que ainda existam algumas. Por exemplo, se numa situação idêntica fosse aplicada a um fornecedor de serviços financeiros não estabelecido uma sanção mais severa do a outro fornecedor estabelecido, estar-se-ia perante uma situação de discriminação.

A medida discriminatória só poderia, de acordo com a jurisprudência do Tribunal e sob reserva da proporcionalidade, justificar-se pelos motivos previstos no artigo 46º do Tratado (ordem pública, segurança pública, saúde pública) [15].

[15] Acórdão de 4 de Maio de 1993, Federación de Distribuidores Cinematográficos, procº C-17/92, Col. p. I-2239.

2.2.3. Teste de não-duplicação

A Comissão apreciará o regime jurídico em vigor no país de origem e analisará se as medidas previstas oferecem, por exemplo, a mesma protecção do país de origem e os controlos aí praticados. Se for esse o caso, seria possível concluir que o objectivo de interesse geral pretendido pelo país de destino já se encontra satisfeito pelas regras em vigor no Estado de estabelecimento do prestador. Neste mesmo espírito, a Comissão verificará se as medidas adoptadas pelo Estado de estabelecimento não são de facto suficientes na acepção do nº 4, alínea b), do artigo 3º.

O acórdão de 9 de Março de 2000 constitui um exemplo deste critério e segundo o Tribunal:

"Ao exigir de todas as empresas que satisfaçam as mesmas condições para a obterem uma autorização ou uma aprovação prévias, a legislação belga impede que se atenda às obrigações a que o prestador já está sujeito no Estado-Membro em que está estabelecido." [16].

[16] Acórdão de 9 de Março de 2000, Comissão contra Bélgica, procº C-355/98, Col. p. I-1221.

Esta jurisprudência poderia ser especialmente útil na medida em que a Comissão tomou conhecimento de que certos Estados-Membros continuam a manter, nomeadamente em determinados domínios, regimes de autorização ou aprovação prévias.

O Tribunal considerou igualmente que os Estados-Membros "devem dar provas de uma confiança mútua no que respeita aos controlos efectuados nos seus territórios" [17].

[17] Acórdão de 10 de Setembro de 1996, Comissão contra Bélgica, procº C-11/95, Col. p. I-4115.

Por exemplo, se o Estado de destino impõe as suas próprias regras de conduta a um serviço de investimento fornecido a um dos seus residentes, a Comissão apreciará se as regras de conduta em vigor no Estado de origem não são equivalentes às que o Estado de destino pretende aplicar.

2.2.4. Teste de proporcionalidade

Este teste é composto por duas partes. Em primeiro lugar, as medidas devem ser adequadas para atingir o objectivo pretendido (teste de adequação) e que, por outro lado, se limitem ao estritamente necessário para concretizar este objectivo (teste de substituição por medidas menos restritivas).

2.2.4.1. Adequação da medida ao objectivo

Ainda que um Estado-Membro argumente que a medida adoptada tem em vista a defesa de um objectivo de interesse geral, é lícito interrogar-se se a mesma é de facto necessária para proteger tal interesse. Com efeito, poderá haver situações em que a medida não se afigura, objectivamente, necessária ou adaptada à protecção desse interesse.

O Tribunal de Justiça considerou, em alguns dos seus acórdãos, que uma dada regra, invocada por um Estado-Membro para um objectivo expresso de protecção do consumidor, não estava de forma nenhuma apta a assegurar essa protecção.

Por exemplo, o Tribunal considerou que, sendo a informação um requisito fundamental para a protecção dos consumidores, um Estado-Membro que imponha regras limitativas do acesso efectivo dos consumidores a determinadas informações, não pode esgrimir o argumento da protecção dos consumidores para a justificar [18].

[18] Acórdão de 7 de Março de 1990, GB-INNO-BM, procº C-362/88, Col. p. I-667.

Por conseguinte, o Tribunal analisa atentamente se a medida que lhe é apresentada beneficia de facto o consumidor [19] e se o Estado-Membro que a impõe não subestima a capacidade de avaliação do consumidor [20]. Para o efeito, o Tribunal recorre a um perfil "médio" de consumidor [21], tendo em conta "as potenciais expectativas de um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e prudente" [22].

[19] Acórdão de 27 de Junho de 1996, Schmit, procº C-240/95, Col. p. I-3179.

[20] Acórdão de 6 de Julho de 1995, Mars, procº C-470/93, Col. p. I-1923.

[21] Acórdão de 13 de Janeiro de 2000, Estée Lauder, procº C-220/98, Col. p. I-117.

[22] Acórdão de 16 de Julho de 1998, Gut Springenheide Gmbh, procº C-210/96, Col. p. I-4657.

O Tribunal exerce assim um controlo com vista a determinar se, a pretexto de protecção do consumidor, certas medidas não visam de facto uma protecção do mercado nacional.

O Tribunal examina igualmente a natureza dos serviços em causa e a necessidade de protecção correspondente. Por exemplo, no domínio dos serviços bancários, o Tribunal considerou que:

Deve ser feita "...uma distinção consoante a natureza da actividade bancária em causa e do risco em que incorre o destinatário do serviço. Com efeito, a celebração dum contrato de empréstimo hipotecário apresenta para o consumidor riscos diferentes dos do depósito de fundos numa instituição de crédito. Além disso, a necessidade de proteger o mutuário varia em função da natureza dos empréstimos hipotecários e, em determinadas situações, em razão precisamente das características do empréstimo concedido e da qualidade do mutuário, não há qualquer necessidade de proteger este mediante a aplicação das normas imperativas do seu direito nacional." [23].

[23] Acórdão de 9 de Julho de 1997, Parodi, procº C-222/95, Col. p. I-3899

A Comissão poderia, assim, inspirar-se nas mesmas considerações quando tiver de analisar a proporcionalidade de uma medida específica.

2.2.4.2. Possibilidade de substituição por uma medida menos restritiva

Existência de medidas menos restritivas

Para avaliar a proporcionalidade de uma medida, a Comissão analisará se esta se limita ao estritamente necessário ou se existem meios menos restritivos para atingir o objectivo de interesse geral pretendido, ou medidas menos restritivas das trocas intracomunitárias [24].

[24] Acórdão de 26 de Junho de 1997, Familiapress, procº C-368/95, Col. p. I-3689.

Por exemplo, o Tribunal, considerou que em vez de bloquear a difusão e a retransmissão das emissões num canal de televisão, um Estado-Membro poderia atingir o objectivo de protecção do interesse geral através da adopção de medidas específicas aplicáveis apenas à entidade anunciadora, que está na origem de uma dada mensagem publicitária transmitida por este canal televisivo e que presta os seus serviços a partir de um outro Estado-Membro [25].

[25] Acórdão de 9 de Julho de 1997. Konsumentombudsmannen (KO) contra De Agostini (Svenska) Förlag AB, procº C-34/95 e TV-Shop i Sverige AB, procº C-35/95 e C-36/95, Col. p. I-3843

Além disso, num acórdão recente relativo às taxas aplicáveis às antenas parabólicas pelas autarquias belgas, o Tribunal aplicou o princípio de "substituição" considerando que:

"outros meios que não o imposto em causa no processo principal, menos restritivos da livre prestação de serviços, são concebíveis para atingir um tal objectivo de protecção do ambiente urbanístico, tais como, nomeadamente, a adopção de regras relativas ao tamanho das antenas, à localização e às modalidades de implantação das mesmas nos edifícios e nas suas cercanias ou à utilização de antenas colectivas" [26].

[26] Acórdão de 29 de Novembro de 2001, De Coster, procº C-17/00, Col. p. I-9445.

Apesar de se tratar de um domínio sem relação directa com o da presente comunicação, este último exemplo é especialmente elucidativo da abordagem seguida pelo Tribunal e a Comissão poderia, assim, inspirar-se nas mesmas considerações no quadro da sua apreciação baseada no nº 6 do artigo 3º.

No processo Ambry [27], o Tribunal considerou que a obrigação imposta aos agentes de viagens no sentido de constituírem uma garantia junto de um estabelecimento financeiro localizado no território nacional era desproporcionada, dado que a obrigação de mobilização imediata dos fundos "podia normalmente ser satisfeita de forma adequada ainda que o garante esteja estabelecido num outro Estado-Membro".

[27] Acórdão de 1 de Dezembro de 1998, Ambry, procº C-410/96, Col. p. I-7875.

Um último exemplo que, apesar de não se tratar de um problema de prestação de serviços financeiros em linha, é especialmente interessante porque envolve os serviços de investimento e constitui um exemplo em que o Tribunal aplicou de forma particularmente aprofundada o teste de substituição, o denominado processo "SIM" no qual o Tribunal considerou que:

"Embora seja um facto que a obrigação de ter a sede social em Itália facilita a vigilância e o controlo dos operadores no mercado, também é verdade que essa obrigação não é o único meio que permite, por um lado , garantir que os operadores respeitem as regras de exercício da actividade de intermediação em valores mobiliários impostas pelo legislador italiano e, por outro, aplicar sanções eficazes aos operadores que infrinjam essas regras..." [28].

[28] Acórdão de 6 de Junho de 1996, Comissão contra Itália, procº C-94/101, Col. p. I-2691.

Situação nos outros Estados-Membros

No âmbito deste exame, a Comissão poderia analisar as legislações dos outros Estados-Membros, a fim de verificar se existem medidas menos restritivas destinadas a assegurar a protecção do consumidor [29]

[29] Acórdão de 18 de Maio de 1993, Yves Rocher, procº C-126/91, Col. p. I-2361.

No entanto, importa referir que este exercício tem um alcance limitado na medida em que o Tribunal considerou que "o facto de um Estado-Membro impor regras menos rígidas que as impostas por outro Estado-Membro não significa que estas últimas sejam desproporcionadas e, portanto, incompatíveis com o direito comunitário." [30];

[30] Acórdão de 10 de Maio de 1995, Alpine Investments, já citado.

e que:

"... a mera circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por um outro Estado-Membro não pode ter qualquer incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das decisões tomadas na matéria. Estas devem apenas ser apreciadas à luz dos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e do nível de protecção que as mesmas pretendem garantir" [31].

[31] Acórdão de 21 de Setembro de 1999, Läärä, procº C-124/97, Col. p. I-6067.

Por conseguinte, a situação existente nos outros Estados-Membros é útil para identificar e propor medidas diferentes menos restritivas. Porém, a existência de uma medida menos restritiva num outro Estado-Membro não representa por si só a prova de uma desproporção. Ainda que se ignore a situação nos outros Estados, o regime em vigor no Estado-Membro de destino deve ser avaliado intrinsecamente, na perspectiva dos objectivos previstos por esse Estado-Membro.

Especificidade do comércio electrónico

Por último, poder-se-ia ter em conta o facto de as medidas serem tomadas relativamente a serviços prestados à distância por via electrónica. Com efeito, o Tribunal considerou que:

"Uma [...] restrição é tanto menos admissível quanto, como neste caso, contrariamente à situação referida no artigo 60º [actualmente 50º], último parágrafo, do Tratado, o serviço é prestado sem que o prestador tenha necessidade de se deslocar ao território do Estado-Membro em que o serviço é fornecido" [32]

[32] Acórdão de 25 de Julho de 1991, Säger, procº C-76/90, Col. p. I-4221

Com base neste acórdão, uma medida poderia, teoricamente, ser considerada proporcionada na sua aplicação aos prestadores de serviços que se desloquem ao território do país de destino, mas desproporcionada em relação a um serviço prestado à distância. Por conseguinte, com base nesta jurisprudência, a Comissão poderia exigir que um Estado-Membro tenha devidamente em conta a modalidade da prestação do serviço e, se necessário, considerar menos admissível uma restrição aplicável aos serviços em linha.

Importa, obviamente, ser prudente com a extensão, por analogia, deste acórdão ao comércio electrónico. De facto, na situação que determinou o acórdão Säger supracitado, em nenhum momento o cliente poderia ter ignorado que se dirigia a um prestador não estabelecido.

2.2.5. Decisão da Comissão

Nos termos do nº 6 do artigo 3º, se, com base nos testes efectuados, a Comissão considerar que a medida é incompatível com o direito comunitário, solicitará ao Estado-Membro em causa que se abstenha de tomar quaisquer outras medidas previstas ou que ponha termo com urgência às medidas já tomadas.

Importa especificar que o exame da Comissão não é suspensivo e, por conseguinte, não impede um Estado-Membro de adoptar as medidas previstas.

Embora o exame da Comissão não especifique prazos exactos, seria conveniente que os mesmos se caracterizassem, tal como previsto no texto pela, "maior celeridade" possível.

Se a Comissão decidir que a medida é compatível com o direito comunitário, o Estado-Membro em questão poderá prosseguir (ou dar início se, por precaução, não o tivesse feito) à execução das medidas adoptadas relativamente à empresa comunitária em causa.

Em qualquer circunstância, a posição que a Comissão possa vir a defender num dado caso não afecta a decisão do Tribunal de Justiça.