CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
SIEGBERT ALBER
apresentadas em 10 de Dezembro de 2002(1)



Processo C-380/01



Gustav Schneider
contra
Bundesminister der Justiz


[pedido de decisão prejudicialapresentado pelo Verwaltungsgerichtshof (Áustria)]

«Igualdade de tratamento entre homens e mulheres – Promoção profissional – Princípio de um controlo jurisdicional efectivo»






I – Introdução

1.        O Verwaltungsgerichtshof (Áustria) submeteu, no presente pedido de decisão prejudicial, uma questão relativa à interpretação do artigo 6.° da Directiva 76/207/CEE do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho  (2) (a seguir «Directiva 76/207»). A questão destina‑se a saber se, à luz do princípio da igualdade de tratamento, está suficientemente preenchida a exigência que prevê a possibilidade de uma pessoa invocar os seus direitos pela via judicial, se o único tribunal competente for o Verwaltungsgerichtshof, que, enquanto tribunal de cassação, apenas fiscaliza matéria de direito.

2.        No caso presente, o recorrente no processo principal (a seguir «recorrente») que, no contexto de uma promoção profissional tinha sido preterido em favor de uma mulher, para além de ter proposto a acção prevista pela Bundesgleichbehandlungsgesetz austríaca (lei federal relativa à igualdade de tratamento, a seguir «B‑GBG») na autoridade administrativa e no Verwaltungsgerichthof, onde pediu a reparação dos danos sofridos em consequência da alegada discriminação, apresentou nos tribunais cíveis um pedido baseado em responsabilidade geral da Administração e do Estado (Amts‑ und Staathaftungsklage) a fim de reclamar o direito à reparação dos prejuízos sofridos devido à transposição alegadamente insuficiente de disposições comunitárias constantes do artigo 2.°, n.° 4, da Directiva 76/207. Os tribunais cíveis afirmaram‑se competentes em três instâncias, tendo declarado que, em princípio, poderá existir direito à reparação dos danos com base em responsabilidade da Administração ou do Estado, devido à não aplicação do princípio da igualdade de tratamento, mas consideraram que, neste caso concreto, os pressupostos não estavam preenchidos.

3.        Tendo em consideração esta via suplementar de recurso a várias instâncias de tribunais cíveis, através da qual poderiam, desde logo, estar cumpridos os requisitos constantes do artigo 6.° da referida directiva, é questionável a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial submetido pelo Verwaltungsgerichthof, que parte do princípio da sua competência exclusiva.

II – Enquadramento jurídico

A – Direito comunitário

4.        O artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 76/207 dispõe:

«A aplicação do princípio da igualdade de tratamento implica a ausência de qualquer discriminação em razão do sexo nas condições de acesso, incluindo os critérios de selecção, a empregos ou a postos de trabalho, seja qual for o sector ou o ramo de actividade e a todos os níveis da hierarquia profissional.»

5.        O artigo 6.° da Directiva 76/207 dispõe:

«Os Estados‑Membros devem introduzir na respectiva ordem jurídica interna as medidas necessárias para permitir a qualquer pessoa que se considere lesada pela não aplicação do princípio da igualdade de tratamento, na acepção dos artigos 3.°, 4.° e 5.°, fazer valer judicialmente os seus direitos, eventualmente, após recurso a outras instâncias competentes.»

B – Direito nacional

6.        O § 3 da B‑GBG, de acordo com a versão em vigor no período em questão, dispõe:

«Ninguém pode ser discriminado, directa ou indirectamente, em razão do sexo, no âmbito de uma relação de serviço ou de formação na acepção do § 1, n.° 1, em especial

1.‑ 4. [...]

5. em caso de promoção profissional, particularmente quando se trate de promoções e da afectação a cargos (funções) com remuneração mais elevada [...]

7.        O § 15, n.° 1, da B‑GBG dispõe:

«Caso tenha sido recusada a um funcionário, de sexo feminino ou masculino, a nomeação para um cargo na sequência de violação por parte do Estado do princípio da igualdade de tratamento previsto no § 3, ponto 5, o Estado é obrigado a reparar os danos causados.»

8.        O § 19, n.° 2, da B‑GBG dispõe:

«Os direitos dos funcionários de sexo feminino ou masculino, invocados contra o Estado com base no § 15 [...] deverão ser [...] reclamados à autoridade competente para o efeito. [...]»

III – Matéria de facto e processo principal

9.        O recorrente é juiz no Arbeits‑ und Sozialgericht Wien. Tendo‑se candidatado duas vezes a uma vaga no Oberlandesgericht Wien, nas duas vezes foi dada preferência a duas candidatas mais jovens tanto em idade como em antiguidade, tendo em conta um sistema de quotas previsto para a promoção das mulheres.

10.      Na sequência das referidas decisões, o recorrente intentou uma acção geral de responsabilidade da Administração e do Estado, no Landesgericht für Zivilrechtssachen Wien, a fim de obter a reparação dos danos sofridos por não terem sido considerados na decisão de promoção uma série de motivos que lhe dizem respeito. Tanto o Landesgericht como o Oberlandesgericht Wien enquanto órgão jurisdicional de recurso, confirmaram unanimemente a admissibilidade da acção de direito civil mas julgaram a acção improcedente. Em última instância, o Oberste Gerichtshof (a seguir «OGH»), enquanto tribunal de revista, indeferiu o pedido, mas declarou na sua decisão que tribunais cíveis deviam pronunciar‑se sobre os direitos à reparação dos danos garantidos (por analogia) pelo § 23 da Bundes‑Verfassungsgesetz, segundo a Amtshaftungsgesetz (lei relativa à responsabilidade da Administração) ou segundo os princípios gerais da responsabilidade do Estado. As regulamentações dos §§ 15 e 19 da B‑GBG não podem excluir estes direitos – mais vastos – nem total nem parcialmente.

11.      Ao examinar o direito baseado na responsabilidade do Estado, o OGH também chegou à conclusão, tomando como base a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativa ao princípio comunitário da igualdade de tratamento nos termos da Directiva 76/207  (3) , de que a medida austríaca para a promoção das mulheres é incompatível com o direito comunitário devido à falta de uma cláusula de abertura. No entanto, negou a existência de um direito à reparação por danos do recorrente, dada a inexistência da causalidade necessária entre a violação do direito e o prejuízo alegado. G. Schneider não invocou nenhumas circunstâncias que devessem, caso existisse uma cláusula de abertura e um processo de selecção transparente e passível de verificação, ser tidas em consideração a seu favor.

12.      Para além da acção cível, o recorrente pediu igualmente à autoridade competente, o Bundesminister für Justiz (Ministro Federal da Justiça), por carta de 11 de Janeiro de 1999, a reparação dos danos sofridos por não ter sido nomeado juiz no Oberlandesgericht Wien, na sequência de uma discriminação. O recorrente interpôs recurso da decisão de indeferimento do Bundesminister para o Verwaltungsgerichthof. Alegou, em especial, a fim de justificar a alegada ilegalidade da decisão, que o § 19 da B‑GBG impõe que o pedido de reparação dos danos seja apresentado precisamente à autoridade que é causadora dos mesmos. Além disso, a fiscalização jurisdicional exercida pelo Verwaltungsgerichthof sobre decisões deste tipo não cumpre as exigências de uma protecção jurisdicional efectiva, dado que o Verwaltungsgerichthof, enquanto tribunal de cassação, não pode, em caso, algum proceder à fiscalização da «apreciação da prova», ficando assim a questão de facto definitivamente decidida pela autoridade administrativa.

IV – Pedido de decisão prejudicial e tramitação processual no Tribunal de Justiça

13.      O Verwaltungsgerichthof, duvidando da compatibilidade do seu próprio poder de fiscalização limitado com o direito comunitário, solicitou ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse a título prejudicial sobre a seguinte questão:

«O artigo 6.° da Directiva 76/207/CEE do Conselho, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho, deve ser interpretado no sentido de que não é preenchido de forma bastante o requisito constante da referida disposição, que prevê a possibilidade de exercício dos direitos pela via judicial (no presente caso, uma acção de indemnização), quando existe apenas a via do Verwaltungsgerichtshof austríaco, tendo em conta a sua competência jurídica limitada (órgão jurisdicional unicamente de cassação, que não pode apreciar a matéria de facto)?»

14.      O Governo austríaco e a Comissão intervieram no processo no Tribunal de Justiça.

15.      O Tribunal de Justiça convidou os intervenientes a responder por escrito a algumas questões.

O Governo austríaco foi convidado a responder à seguinte questão:

«Qual é a relação existente entre a acção de responsabilidade da Administração e do Estado, proposta no Landesgericht e o recurso da decisão do Bundesminister für Justiz interposto no Verwaltungsgerichthof, intentados no caso presente por G. Schneider?»

Foi pedido à Comissão que respondesse às seguintes questões:

«1)
Podem estar cumpridas as exigências constantes da Directiva 97/80, relativas à obrigação de produção de prova em litígios nos quais só podem ser apreciadas questões de direito?

2)
A Directiva 97/80 é aplicável a um processo de recurso administrativo, como o que está em causa no processo principal? Em caso afirmativo, a referida directiva é aplicável ao processo em questão, tendo em conta que a decisão impugnada do Bundesminister für Justiz foi proferida antes do termo do prazo para a transposição da directiva?»

V – Argumentos das partes

1) Governo austríaco

16.      O Governo austríaco assinala que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça  (4) , na falta de uma regulamentação comunitária, compete à ordem jurídica de cada Estado‑Membro designar o órgão jurisdicional competente para decidir os litígios que põem em causa direitos individuais decorrentes da ordem jurídica comunitária, entendendo‑se, no entanto, que os Estados‑Membros são responsáveis por assegurar, em todas as circunstâncias, a protecção efectiva desses e deverão ter em conta os princípios da equivalência e da eficácia. A salvaguarda destes princípios e a garantia da protecção jurídica não são exclusivas de um processo de fiscalização jurisdicional que habilita os órgãos jurisdicionais nacionais competentes a substituírem a apreciação dos elementos de facto feita pelas autoridades administrativas pela sua própria apreciação. Uma vez que, nesse caso, o juiz comunitário, como decorre do acórdão Upjohn, se limita a examinar a materialidade dos factos e fiscalizar a sua qualificação jurídica pelas autoridades comunitárias e, em especial, a aprofundar a questão de saber, se a acção destas últimas não está viciada por erro manifesto ou desvio de poder, o direito comunitário não exige, em casos similares, uma fiscalização mais alargada pelos tribunais nacionais.

17.      Uma vez que a própria Directiva 76/207 também prevê a possibilidade de recorrer previamente a outra instância competente, o regime escolhido pelo legislador austríaco, assente num controlo jurisdicional a posteriori de um processo administrativo, exercido apenas pelo Verwaltungsgerichthof, é suficiente para preencher as exigências comunitárias.

18.      Ao mesmo tempo, os órgãos jurisdicionais cíveis competentes para se pronunciarem sobre os direitos baseados em responsabilidade da Administração e do Estado detêm um poder de cognição plena, não estando vinculados pelas decisões da autoridade administrativa, tal como acontece na situação inversa. Simplesmente, o direito à reparação dos danos nos termos do § 15 da B‑GBG, reconhecido através da via de direito administrativo, produz um efeito restritivo sobre o direito à reparação invocado nos tribunais cíveis porque, nesta medida, não existe qualquer prejuízo.

19.      Concluindo, o Governo austríaco entende que o artigo 6.° da Directiva 76/207 deve ser interpretado no sentido de que está suficientemente preenchida a exigência constante da referida disposição, de poder invocar os seus direitos pela via jurisdicional, através da fiscalização da decisão das autoridades administrativas pelo Verwaltungsgerichthof.

2) Comissão

20.      Nas suas observações escritas, a Comissão levantou dúvidas quanto à necessidade do reenvio prejudicial, tendo em consideração dois aspectos. Em primeiro lugar, as restrições existentes em processos nos tribunais administrativos poderão ser irrelevantes se a acção de responsabilidade do Estado, intentada paralelamente por G. Schneider no Landesgericht für Zivilrechtssachen Wien, permitir fiscalizar completamente a decisão do Bundesminister für Justiz, tanto em relação à matéria de direito como à matéria de facto. Em segundo lugar, tudo indica que, no presente caso, se trata, no essencial, de uma questão de direito, na medida em que se pretende saber se a cláusula de abertura, em caso de quotas relativas à mulher, exigida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça  (5) impõe que se tenham também em conta, além de uma aptidão superior, igualmente outras circunstâncias especiais inerentes à pessoa do candidato de sexo masculino.

21.      Com base na resposta do Governo austríaco à questão colocada pelo Tribunal de Justiça e no acórdão, anexo à resposta, proferido pelo OGH no processo a correr em paralelo nos órgãos jurisdicionais civis, a Comissão considerou, na audiência, que a acção de responsabilidade da Administração e do Estado preenche todos os requisitos de direito processual exigidos pelo direito comunitário para um litígio baseado em discriminação por causa do sexo. Por isso, segundo a Comissão, as dúvidas quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial converteram‑se em certezas.

22.     É apenas para o caso de o Tribunal de Justiça não seguir este entendimento que o representante da Comissão remete para as alegações mais desenvolvidas constantes das observações escritas da Comissão, que poderão ser resumidas da seguinte forma: o princípio da eficácia do direito comunitário impõe, mesmo na falta de uma disposição especial como a do artigo 6.° da Directiva 76/207, que uma protecção jurídica eficaz que garanta os direitos conferidos pelo direito comunitário. No que diz respeito aos processos nos tribunais administrativos, o regime jurídico austríaco não preenche estes requisitos, na medida em que não é permitido ao Verwaltungsgerichtshof averiguar e apreciar toda a matéria de facto e corrigir os erros correspondentes da Administração. O défice de protecção jurídica é particularmente claro, uma vez que a instância administrativa que profere a decisão é ao mesmo tempo competente para decidir das reclamações das suas próprias decisões.

23.      Em especial, a conjugação com a Directiva 97/80/CE do Conselho, de 15 de Dezembro de 1997, relativa ao ónus da prova nos casos de discriminação baseada no sexo  (6) , demonstra que a protecção jurídica efectiva apenas é garantida caso seja possível ao tribunal apreciar todos os factos relevantes para a decisão. O facto de o artigo 4.°, n.° 1, da Directiva 97/80 impor aos Estados‑Membros que tomem as medidas necessárias, em conformidade com os respectivos sistemas jurisdicionais nacionais, para assegurar que, em caso de reclamações baseadas em violação do princípio da igualdade de tratamento, incumbe à parte demandada provar que não houve violação deste princípio, pressupõe que a parte demandada, não só deve demonstrar no tribunal que o direito foi correctamente aplicado, como igualmente aí deve fazer referência à matéria de facto relevante para a decisão e que o tribunal possa apreciar sem restrições. É o que resulta em especial do artigo 4.°, n.° 3, dado que os Estados‑Membros só podem deixar de aplicar o disposto no n.° 1 nos processos em que a averiguação dos factos incumba ao tribunal. A referência aos factos nesta disposição demonstra claramente que o tribunal procede, não só a um controlo em matéria de direito mas também a uma fiscalização sobre a averiguação e apreciação correcta dos factos.

24.      No âmbito da resposta às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça, a Comissão declarou ainda que o Bundesminister für Justiz não pode ser considerado outra «instância competente» na acepção do artigo 4.°, n.° 1, da Directiva 97/80, dado ser ele próprio responsável pela prática impugnada, que tem vindo a ser seguida nas promoções. No que diz respeito à aplicabilidade da directiva, a Comissão é de opinião que é decisivo o facto de na altura do termo do prazo para a transposição o caso do recorrente ainda não ter sido definitivamente decidido.

25.      Assim, a Comissão entende que o artigo 6.° da Directiva 76/207 e o artigo 4.° da Directiva 97/80 devem ser interpretados no sentido de que a regra neles estabelecida, que garante uma protecção jurídica efectiva em caso de discriminação alegadamente em razão do sexo, não deve apenas permitir ao tribunal que conhece do litígio averiguar se o direito em causa foi interpretado e aplicado correctamente pela instância que proferiu a decisão, mas também apurar se todos os factos relevantes foram investigados de forma correcta e tomados em consideração adequadamente.

VI – Apreciação jurídica

Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

26.      No presente caso, coloca‑se, sobretudo, a questão de saber se o pedido de decisão prejudicial é admissível. A Comissão, nas suas observações escritas, tinha já levantado algumas dúvidas a este respeito. No âmbito do presente processo, o Tribunal de Justiça só tomou conhecimento do alcance da problemática, ou das circunstâncias que permitem a sua apreciação, na sequência das respostas do Governo austríaco às questões que lhe foram colocadas.

27.      O Governo austríaco, em resposta às questões correspondentes do Tribunal de Justiça, declarou, por um lado, que as decisões das referidas instâncias, em princípio, não produzem um efeito vinculativo recíproco, e por outro, apresentou em anexo e comentou o acórdão do Oberste Gerichtshof, que deveria decidir em última instância a acção de responsabilidade do Estado.

28.      Resulta deste acórdão que os tribunais cíveis competentes, ao analisarem os direitos invocados com base em responsabilidade do Estado e da Administração, examinaram circunstanciadamente a existência de uma violação do princípio da igualdade de tratamento enunciado na Directiva 76/207, e isso tanto em relação à matéria de facto, no que diz respeito às circunstâncias pessoais invocadas pelo recorrente, como em relação à matéria de direito, à luz da jurisprudência volumosa do Tribunal de Justiça relativa ao princípio da igualdade de tratamento. Em termos de conteúdo, no caso concreto, tanto o direito baseado na responsabilidade do Estado e da Administração como o direito previsto no § 15 da B‑GBG têm em vista a reparação dos danos causados pela violação do princípio da igualdade de tratamento no âmbito da promoção profissional, mesmo que a alegada violação do direito em acções de responsabilidade da Administração e do Estado, deve ser procurada na situação legal nacional, contrária ao direito comunitário, enquanto que o objecto do processo no Verwaltungsgerichthof é a alegada ilegalidade da decisão do Bundesminister für Justiz. Não é possível retirar da B‑GBG qualquer exclusão expressa de outros direitos a reparação. Neste sentido, o Oberste Gerichtshof austríaco, enquanto tribunal nacional supremo em matéria cível, declarou, a título definitivo, que o § 15 da B‑GBG não exclui os direitos à reparação dos danos, mais amplos, garantidos pela Constituição, ao abrigo da lei relativa à responsabilidade da Administração ou dos princípios da responsabilidade do Estado. Mesmo que, de um ponto de vista formal, estejamos perante dois direitos a reparação diferentes, os dois têm, finalmente, em vista a obtenção de uma compensação financeira pela remuneração superior não auferida.

29.      Nesta medida, há que partir do princípio de que, pelo menos no período em questão e nas circunstâncias do caso concreto, o recorrente podia invocar um direito à reparação dos danos quer pela via cível quer pela administrativa.

30.      Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça declarou, em jurisprudência assente, que o processo previsto no artigo 234.° CE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os juízes nacionais  (7) .

31.      Com efeito, no âmbito da repartição das funções jurisdicionais entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, prevista no artigo 234.° CE, este decide a título prejudicial sem que tenha, em princípio, de se interrogar sobre as circunstâncias que levaram os órgãos jurisdicionais nacionais a colocar‑lhe as questões e se propõem aplicar a disposição de direito comunitário cuja interpretação solicitaram ao Tribunal da Justiça  (8) . Em princípio, é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais, que são chamados a conhecer do litígio e aos quais cabe a responsabilidade pela decisão a proferir, apreciar, tendo em conta as particularidades dos diferentes casos, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poderem proferir a sua decisão, como a pertinência das questões submetidas ao Tribunal de Justiça  (9) . Caso estas questões digam respeito à interpretação de uma disposição de direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a proferir uma decisão  (10) .

32.      O Tribunal de Justiça não pode, no entanto, pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial quando é manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada por um órgão jurisdicional nacional não tem qualquer relação com os dados concretos ou com o objecto do litígio ou ainda quando o problema é hipotético  (11) . No acórdão Meilicke  (12) , o Tribunal de Justiça entendeu, a este respeito:

«que lhe competia, a fim de verificar a sua própria competência, apreciar as condições em que era chamado, pelo juiz nacional, a pronunciar‑se sobre as questões. Efectivamente, o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal de Justiça, que é contribuir para a administração da justiça nos Estados‑Membros, e não emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas».

33.      As disposições legais austríacas garantem, independentemente do teor da questão prejudicial, que qualquer pessoa que se considere lesada pela não aplicação do princípio da igualdade de tratamento na acepção da Directiva 76/207, possa invocar judicialmente os seus direitos, tal como é exigido pelo artigo 6.° Desta disposição não resulta, no entanto, que a referência aos órgãos jurisdicionais implique que deva tratar‑se de tribunais administrativos, e também não restam dúvidas quanto ao facto de os tribunais cíveis austríacos, do Landesgericht ao Oberste Gerichtshof, possuírem a natureza de órgão jurisdicional na acepção dos critérios  (13) desenvolvidos para efeitos do artigo 234.° CE.

34.      Na Áustria, a possibilidade exigida pelo artigo 6.° da Directiva 76/207 de invocar direitos pela via judicial é, deste modo, dada pelo direito de invocar nos tribunais cíveis um direito baseado em responsabilidade da Administração e do Estado. Em direito comunitário pouco importa que exista paralelamente outra via para invocar uma violação do princípio da igualdade de tratamento, e que essa via seja, por si mesma, suficiente para cumprir as exigências de uma protecção jurisdicional efectiva. A existência de uma possibilidade de protecção jurisdicional efectiva é suficiente.

35.      A questão prejudicial é, no caso presente, hipotética, na medida em que refere que a possibilidade de invocar o direito à reparação pela via judicial, devido à não aplicação do princípio da igualdade de tratamento, apenas é garantida pelo Verwaltungsgerichtshof austríaco. Tal como foi anteriormente exposto, a ordem jurídica austríaca, através das disposições da lei relativa à responsabilidade da Administração e dos princípios da responsabilidade do Estado, cuja aplicação é fiscalizada pelos tribunais cíveis tanto em termos de matéria de direito como em termos de matéria de facto através de três níveis de instâncias, oferece uma via de recurso que permite aos particulares invocar judicialmente a não aplicação em relação a eles do princípio da igualdade de tratamento, como exige o artigo 6.° da Directiva 76/207. Tendo em conta as circunstâncias descritas, a questão de saber o que seria válido se apenas o Verwaltungsgerichtshof fosse competente para a fiscalização jurisdicional da aplicação do princípio da igualdade de tratamento – neste caso, há que partilhar das reservas do Verwaltungsgerichtshof e são justificadas as considerações da Comissão apresentadas na fase escrita do processo – é de natureza hipotética.

36.      Daí resulta que o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre a questão prejudicial. O pedido de decisão prejudicial deve ser, deste modo, considerado inadmissível. Assim, não é necessário examinar aspectos complementares, como, por exemplo, a aplicabilidade da Directiva 97/80.

VII – Conclusão

37.      Com base nas considerações que precedem, proponho que ao órgão jurisdicional de reenvio seja respondido do seguinte modo:

«O pedido de decisão prejudicial é inadmissível.»


1
Língua original: alemão.


2
JO L 39, p. 40.


3
Acórdãos de 17 de Outubro de 1995, Kalanke (C‑450/93, Colect., p. I‑3051), de 11 de Novembro de 1997, Marschall (C‑409/95, Colect., p. I‑6363), de 28 de Março de 2000, Badeck e o. (C‑158/97, Colect., p. I‑1875), e de 6 de Julho de 2000, Abrahamsson e o. (C‑407/98, Colect., p. I‑5539).


4
Acórdãos de 17 de Setembro de 1997, Dorsch Consult (C‑54/96, Colect., p. I‑4961, n.° 40), e de 21 de Janeiro de 1999, Upjohn (C‑120/97, Colect., p. I‑223, n.os 32 a 35).


5
Acórdãos Marschall (já referido na nota 3), Badeck e o. (já referido na nota 3) e Abrahamsson e o. (já referido na nota 3).


6
JO 1998, L 14, p. 6.


7
Acórdãos de 1 de Dezembro de 1965, Schwarze (16/65, Recueil, p. 1152, Colect. 1965‑1968, p. 239), de 25 de Junho de 1992, Ferrer Laderer (C‑147/91, Colect., p. I‑4097, n.° 6), e de 16 de Julho de 1992, Meilicke (C‑83/91, Colect., p. I‑4871, n.° 22).


8
Acórdão de 8 de Novembro de 1990, Gmurzynska‑Bscher (C‑231/89, Colect., p. I‑4003, n.° 22).


9
Acórdãos de 3 de Março de 1994, Eurico Italia e o. (C‑332/92, C‑333/92, C‑335/92, Colect., p. I‑711, n.° 17), de 26 de Outubro de 1995, Furlanis (C‑143/94, Colect., p. I‑3633, n.° 12), e de 16 de Julho de 1998, ICI (C‑264/96, Colect., p. I‑4695, n.° 15).


10
Acórdão de 18 de Junho de 1991, Piageme e o. (C‑369/89, Colect., p. I‑2971, n.° 10).


11
Despacho de 25 de Maio de 1998, Rouhollah Nour (C‑361/97, Colect., p. I‑3101).


12
Já referido na nota 7, n.° 25, que remete para o acórdão de 16 de Dezembro de 1981, Foglia (244/80, Recueil, p. 3045, n.os 18 a 21).


13
Acórdão Dorsch Consult (referido na nota 4, n.° 23).