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Document 62002CJ0315

Acórdão do Tribunal (Primeira Secção) de 15 de Julho de 2004.
Anneliese Lenz contra Finanzlandesdirektion für Tirol.
Pedido de decisão prejudicial: Verwaltungsgerichtshof - Áustria.
Livre circulação de capitais - Imposto sobre os rendimentos de capitais - Rendimentos de capitais de origem austríaca: taxa de tributação de 25% com efeito liberatório ou taxa reduzida a metade da taxa de tributação média aplicável a todos os rendimentos - Rendimentos de capitais originários de outro Estado-Membro: taxa normal de tributação.
Processo C-315/02.

European Court Reports 2004 I-07063

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2004:446

Arrêt de la Cour

Processo C‑315/02

Anneliese Lenz

contra

Finanzlandesdirektion für Tirol

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof (Áustria)]

«Livre circulação de capitais – Imposto sobre os rendimentos de capitais – Rendimentos de capitais de origem austríaca: taxa de tributação de 25% com efeito liberatório ou taxa igual a metade da taxa de tributação média aplicável a todos os rendimentos – Rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro: taxa normal de tributação»

Sumário do acórdão

Livre circulação de capitais – Restrições – Tributação dos rendimentos de capitais – Imposto de carácter liberatório à taxa de 25% ou imposto ordinário à taxa reduzida a metade – Limitação aos rendimentos de capitais de origem nacional – Sujeição dos rendimentos de capitais de origem estrangeira ao imposto ordinário sem redução – Inadmissibilidade – Justificação – Inexistência

[Tratado CE, artigos 73.°‑B e 73.°‑D, n.os 1 e 3 (actuais artigos 56.° CE e 58.°, n.os 1 e 3, CE)]

Os artigos 73.°‑B e 73.°‑D, n.os  1 e 3, do Tratado (actuais, respectivamente, artigos 56.° CE e 58.°, n.os  1 e 3, CE) opõem‑se a uma legislação de um Estado‑Membro que permite apenas aos titulares de rendimentos de capitais de origem nacional escolher entre o imposto de carácter liberatório à taxa de 25% e o imposto ordinário sobre o rendimento com a aplicação de uma taxa reduzida a metade, enquanto prevê que os rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro estão obrigatoriamente sujeitos ao imposto ordinário sobre o rendimento sem redução de taxa.

Essa legislação fiscal constitui uma restrição proibida à livre circulação dos capitais, na medida em que tem por efeito dissuadir os contribuintes residentes no Estado‑Membro em questão de investirem os seus capitais em sociedades com sede noutro Estado‑Membro; a referida legislação produz também um efeito restritivo relativamente às sociedades com sede noutros Estados‑Membros, na medida em que constitui para elas um obstáculo à recolha de capitais no Estado‑Membro em questão.

Essa legislação não pode ser justificada pela diferença de situação objectiva que pode servir de base a uma diferença de tratamento fiscal, em conformidade com o artigo 73.°‑D, n.° 1, alínea a), do Tratado. Com efeito, tendo em conta a regra fiscal que visa atenuar os efeitos da dupla tributação – imposto sobre as sociedades e imposto sobre os rendimentos – dos lucros distribuídos pela sociedade em proveito da qual foi realizado o investimento, os accionistas sujeitos de modo ilimitado ao imposto no Estado‑Membro em questão que recebam rendimentos de capitais de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro estão, portanto, numa situação comparável à dos accionistas sujeitos de modo ilimitado ao imposto igualmente nesse Estado‑Membro, mas que auferem rendimentos de capitais de uma sociedade com sede neste mesmo Estado‑Membro.

Além disso, na falta de ligação directa entre a obtenção das vantagens fiscais em causa de que beneficiam os contribuintes residentes no Estado‑Membro em questão a título dos seus rendimentos de capitais de origem nacional e a tributação dos lucros das sociedades a título do imposto sobre as sociedades, sendo, além disso, o imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares e o imposto sobre as sociedades duas tributações distintas que incidem sobre contribuintes distintos, e tendo em conta que a finalidade prosseguida, isto é, a atenuação da dupla tributação, não é de modo algum afectada se também os titulares de rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro beneficiarem dessa legislação, ela não pode ser justificada pela necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal em causa.

Além disso, na falta dessa ligação, a recusa de conceder aos titulares de rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro as referidas vantagens fiscais não pode ser justificada pela circunstância de o rendimento das sociedades com sede noutro Estado‑Membro estar aí sujeito a uma tributação pouco elevada. Um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode, aliás, justificar‑se pela existência de outras vantagens fiscais, supondo que tais vantagens existam.

Quanto à redução de receitas fiscais, ela não pode ser considerada uma razão imperiosa de interesse geral susceptível de justificar uma medida, em princípio, contrária a uma liberdade fundamental.

(cf. n.os 20-22, 28, 31, 32, 34-36, 38, 40, 42, 43, 49, disp. 1, 2)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
15 de Julho de 2004(1)

«Livre circulação de capitais – Imposto sobre os rendimentos de capitais – Rendimentos de capitais de origem austríaca: taxa de tributação de 25% com efeito liberatório ou taxa reduzida a metade da taxa de tributação média aplicável a todos os rendimentos – Rendimentos de capitais originários de outro Estado-Membro: taxa normal de tributação»

No processo C-315/02,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.°, pelo Verwaltungsgerichtshof (Áustria), destinado a obter, no litígio pendente nesse órgão jurisdicional entre

Anneliese Lenz

e

Finanzlandesdirektion für Tirol,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 73.°-B e 73.°-D do Tratado CE (actuais artigos 56.° CE et 58.° CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),,



composto por: P. Jann, presidente de secção, A. Rosas, S. von Bahr, R. Silva de Lapuerta e K. Lenaerts (relator), juízes,

advogado-geral: A. Tizzano,
secretário: M.-F. Contet, administradora principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação de A. Lenz, por C. Huber e R. Leitner, Wirtschaftsprüfer e Steuerberater,

em representação do Governo austríaco, por H. Dossi, na qualidade de agente,

em representação do Governo dinamarquês, por J. Molde, na qualidade de agente,

em representação do Governo francês, por G. de Bergues e P. Boussaroque, na qualidade de agentes,

em representação do Governo do Reino Unido, por K. Manji, na qualidade de agente, assistido por M. Hoskins, barrister,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por K. Gross e R. Lyal, na qualidade de agentes,

ouvidas as alegações de A. Lenz, representada por R. Leitner e G. Toifl, Steuerberater, do Governo austríaco, representado por J. Bauer, na qualidade de agente, do Governo do Reino Unido, representado por M. Hoskins, e da Comissão, representada por K. Gross e R. Lyal, na audiência de 29 de Janeiro de 2004,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 25 de Março de 2004,

profere o presente



Acórdão



1
Por despacho de 27 de Agosto de 2002, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de Setembro do mesmo ano, o Verwaltungsgerichtshof submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, três questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 73.°‑B e 73.°‑D do Tratado CE (actuais artigos 56.° CE e 58.° CE).

2
Estas questões foram suscitadas no âmbito de um processo iniciado no referido órgão jurisdicional por A. Lenz, em que esta última colocou em causa a compatibilidade com o direito comunitário da regulamentação fiscal austríaca relativa à tributação dos rendimentos de capitais.


Quadro jurídico

3
O regime fiscal austríaco prevê a tributação dos rendimentos das sociedades com sede na Áustria a dois níveis: a nível da sociedade, sobre os lucros que esta realiza, à taxa fixa de 34%, e a nível do accionista, sobre os rendimentos de capitais, isto é, os dividendos e os outros lucros distribuídos pela sociedade.

4
No respeitante à tributação dos accionistas, o regime aplicável difere consoante se trate de rendimentos de origem austríaca ou de origem estrangeira.

Tributação dos rendimentos de capitais de origem austríaca

5
Nos termos do § 93, n.° 2, da Einkommensteuergesetz 1988 (lei de 1988 relativa ao imposto sobre os rendimentos, BGBl. 1988/400, a seguir «EStG»): «Serão considerados rendimentos de capitais de origem austríaca os rendimentos de capitais pagos por entidades que tenham domicílio, gerência ou sede na Áustria, ou que sejam filiais nacionais de uma instituição de crédito [...]» (versão publicada no BGBl. 1996/2001).

6
O § 93, n.°1, da EStG (versão publicada no BGBl. 1996/2001) dispõe que, «quanto aos rendimentos de capitais de origem austríaca [...], o imposto sobre os rendimentos é cobrado através de retenção nos rendimentos dos capitais (‘Kapitalertragsteuer’)», que, em conformidade com o § 95, n.° 1, da EStG, é de 25%.

7
O § 97, n.° 1, da EStG (versão publicada no BGBl. 1996/797) prevê que o imposto sobre os rendimentos de capitais «é considerado definitivamente pago em razão da retenção do imposto». Os rendimentos de capitais deixam então de estar sujeitos ao imposto sobre os rendimentos.

8
Nos casos em que o imposto de carácter liberatório não pode ser cobrado através de uma retenção fiscal na fonte (quer dizer, às sociedades), o § 97, n.° 2, da EStG prevê que o imposto será cobrado mediante «pagamento voluntário à entidade que distribuiu os dividendos de uma importância igual à retida na fonte sobre os rendimentos dos capitais» (versão publicada no BGBl. 1996/797).

9
Se o contribuinte decidir não optar pelo imposto liberatório de 25% sobre os rendimentos de capitais de origem austríaca, beneficia, em conformidade com o § 37, n.os  1 e 4, da EStG (versão publicada no BGBl. 1996/797), do regime denominado «taxa reduzida a metade» («Halbsatzverfahren»).

10
Neste caso, os rendimentos de capitais contribuem para determinar o rendimento total tributável, tendo por consequência o possível aumento da taxa aplicável. Todavia, em contrapartida desse aumento, os referidos rendimentos de capitais serão sujeitos a uma taxa de tributação reduzida a metade da taxa média aplicável ao rendimento total.

Tributação dos rendimentos de capitais de origem estrangeira

11
Os rendimentos de capitais de origem estrangeira auferidos por um contribuinte residente na Áustria estão sujeitos ao imposto ordinário sobre os rendimentos. Contribuem, deste modo, para determinar o rendimento total tributável e são regularmente sujeitos ao imposto sobre os rendimentos cuja taxa máxima é de 50%.

12
O sistema jurídico austríaco foi alterado por uma lei que entrou em vigor em 1 de Abril de 2002. Esta lei é posterior ao litígio no processo principal e não se aplica pois a este processo.


O litígio no processo principal e as questões prejudiciais

13
A. Lenz, cidadã alemã sujeita ilimitadamente aos impostos na Áustria, declarou em relação ao ano de 1996 rendimentos de capitais sob a forma de dividendos recebidos de sociedades anónimas com sede na Alemanha. A administração fiscal austríaca sujeitou esses rendimentos ao imposto ordinário sobre os rendimentos. A taxa de imposição reduzida a metade prevista no § 37 da EStG e a tributação de carácter liberatório prevista no § 97 conjugado com o artigo 93.° da EStG (a seguir «vantagens fiscais em causa») só se aplicam com efeito aos rendimentos de capitais de origem austríaca.

14
Considerando que a aplicação da taxa progressiva ordinária do imposto sobre os rendimentos de capitais de origem alemã é contrária à livre circulação de capitais prevista no artigo 73.°‑B, n.° 1, do Tratado, A. Lenz apresentou uma reclamação na Finanzlandesdirektion für Tirol. Essa reclamação foi indeferida, por decisão de 16 de Abril de 1999, contra a qual A. Lenz interpôs recurso no Verwaltungsgerichtshof.

15
Foi nessas circunstâncias que o Verwaltungsgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)
O disposto no artigo 73.°‑B, n.° 1, conjugado com o disposto no artigo 73.°‑D, n.° 1, alíneas a) e b), e n.° 3, do Tratado CE [actuais artigos 56.°, n.° 1, CE e 58.°, n.° 1, alíneas a) e b), e n.° 3, CE], opõe se a uma norma, como a do § 97, n.os 1 e 4, da EStG 1988 (lei de 1988 relativa ao imposto sobre o rendimento), conjugado com o § 37, n.os  1 e 4, da EStG, nos termos da qual o sujeito passivo, no caso de dividendos de acções nacionais, pode optar por uma tributação definitiva e global a uma taxa de 25% ou pela tributação a uma taxa igual a metade da taxa média aplicável à totalidade dos rendimentos, enquanto os dividendos de acções estrangeiras são sempre tributados pela taxa normal do imposto sobre o rendimento?

2)
Tem relevância para a resposta à primeira questão o nível de tributação do rendimento da sociedade de capitais com sede e direcção noutro Estado‑Membro da CE ou num Estado terceiro onde a participação é detida?

3)
Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: a situação correspondente ao artigo 73.°‑B, n.° 1, do Tratado CE (actual artigo 56.°, n.° 1, CE) pode conduzir a que o imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas liquidado, no Estado em que se encontram estabelecidas, às sociedades por acções com sede e direcção noutros Estados‑Membros da UE ou em Estados terceiros seja proporcionalmente deduzido do imposto austríaco sobre o rendimento liquidado ao titular dos dividendos?»


Quanto às duas primeiras questões prejudiciais

16
Através das duas primeiras questões, que há que examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta essencialmente se os artigos 73.°‑B, n.° 1, e 73.°‑B, n.os  1 e 3, do Tratado se opõem à regulamentação de um Estado‑Membro que reserva a aplicação de uma taxa de tributação liberatória de 25% ou de uma taxa de tributação reduzida a metade aos rendimentos de capitais pagos por uma sociedade com sede nesse Estado‑Membro, com exclusão dos de origem estrangeira, e se, eventualmente, a apreciação da compatibilidade dessa regulamentação com as referidas disposições do Tratado depende do nível de tributação dos lucros das sociedades nos termos do imposto sobre as sociedades no Estado‑Membro em que têm sede.

17
Dado que o litígio no processo principal diz respeito à recusa de as autoridades fiscais do Estado‑Membro concederem as vantagens fiscais em causa a uma pessoa sujeita de modo ilimitado ao imposto nesse Estado‑Membro e que recebeu dividendos de uma sociedade estabelecida noutro Estado‑Membro, às questões submetidas só será respondido na medida em que dizem respeito à livre circulação de capitais entre os Estados‑Membros.

18
Antes de mais, há que examinar se, como sustentam A. Lenz e a Comissão das Comunidades Europeias, uma regulamentação fiscal, como a que está em causa no processo principal, restringe a livre circulação de capitais na acepção do artigo 73.°‑B, n.° 1, do Tratado.

19
Há que recordar que, nos termos de jurisprudência constante, embora a fiscalidade directa seja da competência dos Estados‑Membros, estes devem exercê‑la no respeito do direito comunitário (acórdãos de 11 de Agosto de 1995, Wielockx, C‑80/94, Colect., p. I‑2493, n.° 16; de 6 de Junho de 2000, Verkooijen, C‑35/98, Colect., p. I‑4071, n.° 32, e de 4 de Março de 2004, Comissão/França, C‑334/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 21).

20
Ora, há que observar que a regulamentação fiscal em causa tem por efeito dissuadir os contribuintes residentes na Áustria de investirem os seus capitais em sociedades com sede noutro Estado‑Membro. Com efeito, essa regulamentação permite ao contribuinte residente na Áustria escolher, para a tributação dos seus rendimentos de capitais de origem austríaca, entre o imposto liberatório à taxa fixa de 25% e o imposto ordinário sobre os rendimentos a uma taxa reduzida a metade, enquanto os seus rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro são sujeitos à aplicação do imposto ordinário cuja taxa pode atingir 50%.

21
A referida regulamentação produz também um efeito restritivo relativamente às sociedades com sede noutros Estados‑Membros, na medida em que constitui para elas um obstáculo à recolha de capitais na Áustria. Com efeito, na medida em que os rendimentos de capitais originários de um outro Estado‑Membro são fiscalmente tratados de modo menos favorável do que os rendimentos de capitais de origem austríaca, a aquisição de acções das sociedades estabelecidas nos outros Estados‑Membros é, para os investidores residentes na Áustria, menos atractivas do que a de acções de sociedades com sede nesse Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdãos Verkooijen, já referido, n.° 35, e Comissão/França, já referido, n.° 24).

22
Resulta das considerações precedentes que a regulamentação como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à livre circulação dos capitais proibida, em princípio, pelo artigo 73.°‑B, n.° 1, do Tratado.

23
Todavia, há que examinar se essa restrição à livre circulação dos capitais pode ser justificada à luz das disposições do Tratado.

24
A este respeito, há que recordar que, em conformidade com o artigo 73.°‑D, n.° 1, do Tratado, «o disposto no artigo 73.°‑B não prejudica o direito de os Estados‑Membros [...] aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere [...] ao lugar em que o seu capital é investido» nem ao seu direito [...] «de tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infracções às suas leis e regulamentos».

25
Segundo os Governos austríaco, dinamarquês, francês e do Reino Unido, resulta claramente desta disposição que os Estados‑Membros têm o direito de reservar as vantagens fiscais em causa apenas aos rendimentos de capitais pagos por sociedades com sede no seu território.

26
A este respeito, há que observar que o artigo 73.°‑D, n.° 1, do Tratado, que, como derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objecto de interpretação estrita, não pode ser interpretado no sentido de que qualquer legislação fiscal que faça uma distinção entre os contribuintes consoante o local em que investem os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado. Com efeito, a derrogação do artigo 73.°‑D, n.° 1, do Tratado está ela própria limitada pelo artigo 73.°‑D, n.° 1, do Tratado, que prevê que as disposições nacionais referidas no n.° 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 73.°‑B».

27
Assim, há que distinguir os tratamentos desiguais permitidos nos termos do artigo 73.°‑D, n.° 1, do Tratado das discriminações arbitrárias proibidas pelo artigo 73.°‑D, n.° 3, do mesmo. Ora, resulta da jurisprudência que, para que uma regulamentação fiscal nacional, como a que está em causa, que faz uma distinção entre os rendimentos de capitais pagos por sociedades com sede no território do Estado‑Membro em causa e os originários de um outro Estado‑Membro, possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento seja respeitante a situações que não sejam objectivamente comparáveis ou seja justificada por razões imperativas de interesse geral, como a necessidade de proteger a coerência do regime fiscal, a luta contra a evasão fiscal e a eficácia da fiscalização tributária (acórdão Verkooijen, já referido, n.° 43; de 21 de Novembro 2002, X e Y, C‑436/00, Colect., p. I‑10829, n.os  49 e 72, e Comissão/França, já referido, n.° 27). Além disso, para ser justificada, a diferença de tratamento entre diferentes categorias de rendimentos de capitais não deve ultrapassar o que é necessário para que o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa seja atingido.

28
Os governos que apresentaram observações no presente processo alegam, em primeiro lugar, que as autoridades austríacas cobram o imposto relativo aos lucros que as sociedades com sede na Áustria distribuem aos seus accionistas parcialmente às sociedades e parcialmente aos accionistas. No que diz respeito às sociedades com sede fora do seu território, as autoridades austríacas não estão em situação de cobrar o imposto sobre os rendimentos das sociedades do mesmo modo. A regulamentação fiscal em causa é, assim, justificada pela diferença de situação objectiva que pode servir de base a uma diferença de tratamento fiscal, em conformidade com o artigo 73.°‑D, n.° 1, alínea a), do Tratado (acórdãos de 14 de Fevereiro de 1995, Schumacker, C‑279/93, Colect., p. I‑225, n.os  30 a 34 e 37, e Verkooijen, n.° 43).

29
Portanto, há que examinar se, em conformidade com o artigo 73.°‑D, n.° 1, alínea a), do Tratado, a diferença de tratamento de uma pessoa sujeita de modo ilimitado ao imposto na Áustria consoante receba rendimentos de capitais de sociedades com sede nesse Estado‑Membro ou rendimentos de capitais de sociedades com sede noutros Estados‑Membros diz respeito a situações que não são objectivamente comparáveis.

30
Resulta dos autos que a regulamentação fiscal austríaca visa atenuar os efeitos no plano económico de uma dupla tributação dos lucros das sociedades, que resultaria da tributação dos lucros realizados pela sociedade, a título do imposto sobre as sociedades, e da tributação do contribuinte accionista, a título do imposto sobre o rendimento, dos mesmos lucros distribuídos sob a forma de dividendos.

31
Ora, tanto os rendimentos de capitais de origem austríaca como os originários de outro Estado‑Membro podem ser objecto de dupla tributação. Com efeito, em ambos os casos, os rendimentos estão em princípio antes de tudo sujeitos ao imposto sobre as sociedades e depois – na medida em que são distribuídos sob a forma de dividendos – ao imposto sobre os rendimentos.

32
Tendo em conta a regra fiscal que visa atenuar os efeitos da dupla tributação dos lucros distribuídos por uma sociedade em proveito da qual foi realizado o investimento, os accionistas sujeitos de modo ilimitado ao imposto na Áustria que recebam rendimentos de capitais de uma sociedade com sede noutro Estado‑Membro estão, portanto, numa situação comparável à dos accionistas sujeitos de modo ilimitado ao imposto igualmente na Áustria, mas que auferem rendimentos de capitais de uma sociedade com sede neste último Estado‑Membro.

33
Conclui‑se que a regulamentação fiscal austríaca, que subordina a aplicação da taxa de tributação liberatória de 25% ou da taxa reduzida a metade sobre os rendimentos de capitais na condição de esses rendimentos serem de origem austríaca, não está relacionada com uma diferença de situação na acepção do artigo 73.°‑D, n.° 1, alínea a), do Tratado entre os rendimentos de capitais de origem austríaca e os originários de outro Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdãos de 27 de Junho de 1996, Asscher, C‑107/94, Colect.,. p. I‑3089, n.os  41 a 49, e de 12 de Junho de 2003, Gerritse, C‑234/01, Colect., p. I‑5933, n.os  47 a 54).

34
Os governos que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça sustentam, em segundo lugar, que a regulamentação fiscal austríaca é objectivamente justificada pela necessidade de assegurar a coerência do regime fiscal nacional (acórdãos de 28 de Janeiro de 1992, Bachmann, C‑204/90, Colect., p. I‑249, e Comissão/Bélgica, C‑300/90, Colect., p. I‑305). Alegam a este respeito que as vantagens fiscais em causa visam atenuar os efeitos da dupla tributação dos lucros das sociedades. Efectivamente, existe uma ligação económica directa entre a tributação dos lucros da sociedade e essas vantagens fiscais. Por conseguinte, uma vez que só as sociedades com sede na Áustria estão sujeitas ao imposto sobre as sociedades nesse Estado‑Membro, é justificado reservar as referidas vantagens fiscais apenas aos titulares de rendimentos de capitais de origem austríaca.

35
É necessário recordar que, nos n.os  28 e 21, respectivamente, dos acórdãos já referidos Bachmann e Comissão/Bélgica, em que o Tribunal de Justiça admitiu que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal pode justificar uma restrição ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado, existia uma relação directa entre a dedutibilidade das cotizações pagas no âmbito dos contratos de seguro de velhice e morte, por um lado, e a tributação das somas devidas pelas seguradoras em execução dos referidos contratos, por outro, relação que era necessário preservar para salvaguardar a coerência do sistema fiscal em causa (v., nomeadamente, acórdãos de 28 de Outubro de 1999, Vestergaard, C‑55/98, Colect., p. I‑7641, n.° 24, e X e Y, já referido, n.° 52).

36
No processo principal, além de o imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares e o imposto sobre as sociedades serem duas tributações distintas que incidem sobre contribuintes distintos (v. acórdãos de 13 de Abril de 2000, Baars, C‑251/98, Colect., p. I‑2787, n.° 40; Verkooijen, já referido, n.os  57 e 58, e de 18 de Setembro de 2003, Bosal, C‑168/01, ainda não publicado na Colectânea, n.° 30), há que referir que a regulamentação fiscal austríaca não faz depender a obtenção das vantagens fiscais em causa de que beneficiam os contribuintes residentes na Áustria a título dos seus rendimentos de capitais de origem austríaca da tributação dos lucros das sociedades a título do imposto sobre as sociedades.

37
Há igualmente que recordar que o argumento baseado na necessidade de preservar a coerência de um sistema fiscal deve ser verificado tendo em conta o objectivo prosseguido pela regulamentação fiscal em causa (v. acórdão de 11 de Março de 2004, De Lasteyrie du Saillant, C‑9/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 67).

38
Ora, a finalidade prosseguida pela regulamentação fiscal austríaca, isto é, a atenuação da dupla tributação, não é de modo algum afectada se também os titulares de rendimentos de capitais originários de outros Estados‑Membros beneficiarem da regulamentação fiscal austríaca. Pelo contrário, o facto de reservar a taxa de imposição liberatória de 25% e a taxa de tributação reduzida a metade unicamente aos titulares de rendimentos de capitais de origem austríaca tem por consequência aumentar a diferença entre o gravame fiscal global que incide sobre os lucros das sociedades austríacas e o que incide sobre os lucros das sociedades com sede noutro Estado‑Membro.

39
Portanto, a argumentação baseada na necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal austríaco não pode ser procedente.

40
Na verdade, há que observar que a concessão da vantagem fiscal em causa igualmente aos titulares de rendimentos de capitais originários de outros Estados‑Membros ocasionaria, para o Estado‑Membro em causa, uma redução das suas receitas fiscais. Todavia, resulta de jurisprudência constante que a redução de receitas fiscais não pode ser considerada uma razão imperiosa de interesse geral susceptível de justificar uma medida, em princípio, contrária a uma liberdade fundamental (acórdãos Verkooijen, já referido, n.° 59; de 3 de Outubro de 2002, Danner, C‑136/00, Colect., p. I‑8147, n.° 56, e X e Y, já referido, n.° 50).

41
Além disso, contrariamente ao que sustentam os Governos austríaco e dinamarquês, o nível de tributação das sociedades com sede noutro Estado‑Membro não é pertinente à luz da regulamentação fiscal austríaca para apreciar a compatibilidade de uma legislação nacional com os artigos 73.°‑B e 73.°‑D, n.os  1 e 3, do Tratado.

42
A este respeito, há que recordar que, em relação aos rendimentos de capitais de origem austríaca, a regulamentação fiscal em causa não estabelece nenhuma relação directa entre a tributação dos lucros das sociedades a título do imposto sobre as sociedades e as vantagens fiscais de que beneficiam os contribuintes residentes na Áustria a título do imposto sobre os rendimentos. Nestas condições, o nível de tributação das sociedades com sede fora do território austríaco não pode justificar a recusa de conceder essas mesmas vantagens fiscais aos titulares de rendimentos de capitais pagos por essas mesmas sociedades.

43
É certo que não se pode excluir a possibilidade de a extensão da regulamentação fiscal em causa aos rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro poder tornar vantajosa, para os investidores residentes na Áustria, a compra de acções de sociedades com sede noutros Estados‑Membros, em que o nível do imposto sobre as sociedades é menos elevado do que na Áustria. Todavia, esta possibilidade não pode de modo algum justificar uma regulamentação como a que está em causa no processo principal. Com efeito, quanto ao argumento baseado na eventual vantagem fiscal para os contribuintes que recebam no seu país de residência rendimentos de capitais de sociedades com sede noutro Estado‑Membro, basta observar que resulta de jurisprudência constante que um tratamento fiscal desfavorável contrário a uma liberdade fundamental não pode justificar‑se pela existência de outras vantagens fiscais, supondo que tais vantagens existam (acórdão Verkooijen, já referido, n.° 61, e jurisprudência aí referida).

44
O Governo francês alega, além disso, que a regulamentação fiscal austríaca é justificada pela necessidade de assegurar a eficácia da fiscalização tributária.

45
A este respeito, cabe recordar que resulta, nomeadamente, do artigo 73.°‑D, n.° 1, alínea b), do Tratado que a eficácia de fiscalização tributária pode ser invocada para justificar restrições ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (v. acórdãos de 8 de Julho de 1999, Baxter e o., C‑254/97, Colect., p. I‑4809, n.° 18, e de 26 de Setembro de 2000, Comissão/Bélgica, C‑478/98, Colect., p. I‑7587, n.° 39).

46
Em primeiro lugar, no que diz respeito à vantagem fiscal resultante da tributação a uma taxa reduzida dos rendimentos de capitais de origem austríaca, não está de modo algum demonstrado que a aplicação de diferentes taxas de tributação em função da origem dos rendimentos de capitais possa tornar a fiscalização tributária mais eficaz.

47
Em segundo lugar, em relação ao imposto liberatório à taxa de 25%, há que lembrar que este é retido directamente na fonte pelas sociedades com sede na Áustria. Todavia, como refere o advogado‑geral nos n.os  33 e 34 das suas conclusões, o imposto de carácter liberatório não pressupõe necessariamente uma retenção na fonte do imposto. Assim, o § 97, n.° 2, da EStG prevê que, nos casos em que a retenção na fonte não for possível, o imposto de carácter liberatório pode ser pago mediante «pagamento voluntário à entidade que distribui os dividendos de uma importância igual à retida na fonte sobre os rendimentos dos capitais». Para os rendimentos provenientes de sociedades com sede noutros Estados‑Membros, pode ser prevista uma modalidade semelhante de «pagamento voluntário» à administração fiscal.

48
É certo que a retenção na fonte, realizada directamente pelas sociedades com sede na Áustria, constitui uma operação mais fácil para a administração fiscal do que o «pagamento voluntário». Todavia, os simples inconvenientes não podem justificar um obstáculo a uma liberdade fundamental do Tratado, como é a livre circulação de capitais (acórdão Comissão/França, já referido, n.os  29 e 30).

49
Tendo em conta tudo o que precede, há que responder às duas primeiras questões que os artigos 73.°‑B e 73.°‑D, n.os  1 e 3, do Tratado opõem‑se a uma regulamentação que permite apenas aos titulares de rendimentos de capitais de origem austríaca escolher entre o imposto de carácter liberatório à taxa de 25% e o imposto ordinário sobre o rendimento com a aplicação de uma taxa reduzida a metade, enquanto prevê que os rendimentos de capitais originários de um outro Estado‑Membro estão obrigatoriamente sujeitos ao imposto ordinário sobre o rendimento sem redução de taxa. A recusa de conceder aos titulares de rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro as vantagens fiscais concedidas aos titulares de rendimentos de capitais de origem austríaca não pode ser justificada pela circunstância de o rendimento das sociedades com sede noutro Estado‑Membro estar aí sujeito a uma tributação pouco elevada.


Quanto à terceira questão prejudicial

50
Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 73.°‑B, n.° 1, do Tratado se opõe a uma regulamentação fiscal que permite ao contribuinte residente na Áustria que recebe rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro deduzir, proporcionalmente do seu imposto sobre o rendimento, o imposto sobre as sociedades pago pela sociedade em que possui uma participação.

51
A Lenz e a Comissão emitem reservas quanto à admissibilidade desta questão. Trata‑se de uma questão irrelevante para a solução do litígio no processo principal, uma vez que é respeitante a um regime fiscal que não está em vigor na Áustria.

52
A este respeito, há que recordar que resulta de jurisprudência constante que o Tribunal de Justiça não pode decidir uma questão prejudicial colocada por um órgão jurisdicional nacional quando é manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, ou quando o problema é hipotético (acórdãos de 16 de Julho de 1992, Meilicke, C‑83/91, Colect., p. I‑4871, n.° 25; de 13 de Julho de 2000, Idéal tourisme, C‑36/99, Colect., p. I‑6049, n.° 20, e de 5 de Fevereiro de 2004, Schneider, C‑380/01, ainda não publicado na Colectânea, n.° 22).

53
Ora, as disposições invocadas no despacho de reenvio não prevêem a possibilidade de deduzir na Áustria o imposto sobre as sociedades pago noutro Estado‑Membro. Convidado pelo Tribunal de Justiça a fornecer esclarecimentos quanto a este aspecto, o Governo austríaco confirmou que a legislação fiscal em vigor na data dos factos no processo principal não permitia identificar uma dedução como a referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, mesmo procedendo a uma interpretação extensiva da lei.

54
Nestas condições, não há que responder à terceira questão colocada.


Quanto às despesas

55
As despesas efectuadas pelos Governos austríaco, dinamarquês, francês e do Reino Unido, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

pronunciando‑se sobre as questões submetidas pelo Verwaltungsgerichtshof, por despacho de 27 de Agosto de 2002, declara:

1)
Os artigos 73.°‑B e 73.°‑D, n.os  1 e 3, do Tratado CE (actuais, respectivamente, artigos 56.° CE e 58.°, n.os  1 e 3, CE) opõem‑se a uma regulamentação que permite apenas aos titulares de rendimentos de capitais de origem austríaca escolher entre o imposto de carácter liberatório à taxa de 25% e o imposto ordinário sobre o rendimento com a aplicação de uma taxa reduzida a metade, enquanto prevê que os rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro estão obrigatoriamente sujeitos ao imposto ordinário sobre o rendimento sem redução de taxa.

2)
A recusa de conceder aos titulares de rendimentos de capitais originários de outro Estado‑Membro as vantagens fiscais concedidas aos titulares de rendimentos de capitais de origem austríaca não pode ser justificada pela circunstância de o rendimento das sociedades com sede noutro Estado‑Membro estar aí sujeito a uma tributação pouco elevada.

Jann

Rosas

von Bahr

Silva de Lapuerta

Lenaerts

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 15 de Julho de 2004.

O secretário

O presidente da Primeira Secção

R. Grass

P. Jann


1
Língua do processo: alemão.

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