ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

12 de dezembro de 2013 ( *1 )

«Liberdade de estabelecimento — Igualdade de tratamento — Imposto sobre o rendimento — Legislação destinada a evitar a dupla tributação — Rendimentos auferidos num Estado diferente do Estado de residência — Método de isenção com reserva de progressividade no Estado de residência — Tomada em conta parcial da situação pessoal e familiar — Perda de determinados benefícios fiscais relacionados com a situação pessoal e familiar do trabalhador»

No processo C‑303/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo tribunal de première instance de Liège (Bélgica), por decisão de 31 de maio de 2012, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de junho de 2012, no processo

Guido Imfeld,

Nathalie Garcet

contra

État belge,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, E. Juhász, A. Rosas (relator), D. Šváby e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 22 de abril de 2013,

vistas as observações apresentadas:

em representação de G. Imfeld e N. Garcet, por M. Levaux e M. Gustin, avocats,

em representação do Governo belga, por M. Jacobs e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

em representação do Governo estónio, por M. Linntam, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por F. Dintilhac e W. Mölls, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de junho de 2013,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe G. Imfeld e N. Garcet, um casal residente na Bélgica, ao Estado belga a respeito da tomada em conta, no âmbito do cálculo da sua tributação conjunta na Bélgica, dos rendimentos auferidos noutro Estado‑Membro por G. Imfeld, que estão isentos de impostos na Bélgica, mas servem de base para a atribuição de benefícios fiscais relacionadas com a situação pessoal e familiar, que faz com que percam uma parte dos benefícios aos quais teriam direito se aqueles rendimentos não fossem tomados em conta.

Quadro jurídico

Convenção de 1967

3

A Convenção entre o Reino da Bélgica e a República Federal da Alemanha destinada a evitar a dupla tributação e a regular diversas outras questões em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o património, incluindo os impostos profissionais e os impostos prediais, assinada em Bruxelas, em 11 de abril de 1967 (Moniteur belge de 30 de julho de 1969, a seguir «Convenção de 1967»), dispõe no seu artigo 14.o, intitulado «Profissões liberais»:

«1.   Os rendimentos obtidos por um residente de um Estado contratante a título do exercício de uma profissão liberal ou de outras atividades independentes de caráter análogo apenas podem ser tributados nesse Estado, exceto se esse residente dispuser, de forma habitual, no outro Estado contratante, de uma instalação permanente para o exercício das suas atividades. Neste caso, os rendimentos são tributados no outro Estado, mas apenas na medida em que forem imputáveis às atividades exercidas nessa instalação permanente.

2.   A expressão ‘profissões liberais’ abrange, em especial, as atividades independentes […] de médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, dentistas e contabilistas.»

4

O artigo 23.o da Convenção de 1967 prevê, designadamente, no seu n.o 2, ponto 1, que os rendimentos provenientes da Alemanha, que são tributáveis nesse Estado‑Membro ao abrigo da referida Convenção, estão isentos de impostos na Bélgica. A mesma disposição precisa, no entanto, que esta isenção não limita o direito do Reino da Bélgica de tomar em consideração, na determinação da taxa dos impostos, os rendimentos assim isentos.

Direito belga

5

Nos termos do artigo 126.o, n.os 1 e 2, do Código do imposto sobre os rendimentos de 1992 (Moniteur belge de 30 de julho de 1992), na sua versão aplicável à data dos factos no processo principal (a seguir «CIR de 1992»):

«1.   Seja qual for o regime matrimonial de bens, os rendimentos dos cônjuges diferentes dos rendimentos profissionais acumulam com os rendimentos profissionais do cônjuge que tem os rendimentos mais elevados.

2.   A liquidação é efetuada em nome dos dois cônjuges».

6

O artigo 131.o do CIR de 1992 atribui a cada sujeito passivo uma quota‑parte de rendimento isento de impostos. Nos termos do artigo 132.o do CIR de 1992, esta quota‑parte isenta é majorada quando o sujeito passivo tiver pessoas a cargo.

7

Quando o imposto é aplicável em nome dos cônjuges, essa majoração é, de acordo com o artigo 134.o, n.o 1, segundo parágrafo, do CIR de 1992, imputada prioritariamente à quota‑parte do rendimento do cônjuge com os rendimentos profissionais mais elevados. O artigo 134.o, n.o 1, do CIR de 1992 prevê o seguinte:

«A quota‑parte do rendimento isenta de imposto é determinada por sujeito passivo e inclui a totalidade do valor de base, eventualmente majorado, e os suplementos referidos nos artigos 132.° e 133.°

Quando se aplique o regime de tributação conjunta, os suplementos referidos no artigo 132.o são imputados ao contribuinte com o rendimento tributável mais elevado. […]»

8

O artigo 155.o do CIR de 1992 dispõe:

«Os rendimentos isentos nos termos de convenções internacionais para evitar a dupla tributação são tomados em conta na determinação do imposto, mas este é reduzido proporcionalmente à parte dos rendimentos isentos na totalidade dos rendimentos.

O mesmo acontece para:

os rendimentos isentos nos termos de outros tratados ou acordos internacionais, na medida em que prevejam uma cláusula de reserva de progressividade;

[...]

Quando se aplique o regime da tributação conjunta, a redução é calculada por contribuinte sobre a totalidade dos seus rendimentos líquidos.»

9

Por outro lado, na sequência do acórdão de 12 de dezembro de 2002, de Groot (C-385/00, Colet., p. I-11819), o Reino da Bélgica adotou a circular n.o Ci.RH.331/575.420, de 12 de março de 2008, que prevê uma redução fiscal para rendimentos isentos nos termos de uma convenção internacional, para além da redução prevista no artigo 155.o do CIR de 1992 (a seguir «circular de 2008»).

10

Essa circular enuncia:

«1.

No sistema fiscal belga, os benefícios fiscais relacionados com a situação pessoal e familiar do sujeito passivo [...] aplicam‑se tanto aos rendimentos de origem belga como aos rendimentos de origem estrangeira. Caso a situação familiar ou pessoal em causa não tenha sido tomada em conta no estrangeiro, parte desses benefícios perde‑se.

Os Países Baixos aplicam um método de isenção com reserva de progressividade análogo ao que é praticado na Bélgica. Todavia, no seu acórdão [de Groot, já referido, o Tribunal de Justiça] declarou que esta forma de proceder contrariava a regulamentação em matéria de livre circulação de pessoas na [União Europeia].

A Bélgica foi convidada pela Comissão Europeia a tornar as disposições fiscais belgas relativas à aplicação do método de isenção com reserva de progressividade [...] conformes às obrigações decorrentes dos artigos 18.° [CE], 39.° [CE], 43.° [CE] e 56.° CE [...]

Foi adotada a solução seguinte: nos casos em que a situação pessoal e familiar do sujeito passivo não foi tida em conta no estrangeiro, será concedida uma dedução fiscal para rendimentos de origem estrangeira para além da prevista no artigo 155.o [do] CIR de [1992].

[...]

3.

Apenas poderá ser concedida uma redução suplementar por rendimentos isentos nos termos de uma convenção nas seguintes condições:

se o sujeito passivo tiver obtido rendimentos isentos nos termos de uma convenção num ou em vários Estados‑Membros do [Espaço Económico Europeu (EEE)];

se a situação pessoal ou familiar do sujeito passivo não tiver sido tomada em conta para o cálculo do imposto devido, nos Estados em causa, sobre os rendimentos isentos de imposto na Bélgica;

se o contribuinte não tiver podido beneficiar totalmente, na Bélgica, dos benefícios fiscais relacionados com a sua situação familiar ou pessoal;

se o imposto devido na Bélgica, acrescido do imposto devido no estrangeiro, for superior ao imposto que seria devido se a fonte dos rendimentos fosse exclusivamente belga e os impostos a eles respeitantes fossem devidos na Bélgica.

4.

O sujeito passivo que requer a redução suplementar deve provar que preenche as condições exigidas.»

Litígios no processo principal

11

G. Imfeld, de nacionalidade alemã, e N. Garcet, de nacionalidade belga, são casados, têm dois filhos e residem na Bélgica. Embora, em aplicação das regras de direito nacional, os cônjuges estejam, em princípio, sujeitos a tributação conjunta, apresentaram separadamente as suas declarações de rendimentos respeitantes aos exercícios fiscais de 2003 e 2004, na Bélgica, sem indicar que eram casados.

12

G. Imfeld, que exerce a profissão de advogado na Alemanha, onde aufere a totalidade dos seus rendimentos, não declarou na Bélgica qualquer rendimento tributável ou pessoa a cargo. Em contrapartida, N. Garcet, que exerce uma profissão assalariada na Bélgica, declarou juros hipotecários e dois filhos a cargo, bem como despesas com a guarda dos filhos.

13

As referidas declarações deram lugar a três litígios submetidos ao órgão jurisdicional de reenvio, que estão na origem do presente pedido de decisão prejudicial.

Litígios relativos ao exercício fiscal de 2003

14

Em 5 de abril de 2004, a Administração Fiscal belga começou por emitir um aviso de liquidação de imposto relativo ao exercício fiscal de 2003 apenas em nome de N. Garcet.

15

No entanto, em 16 de novembro de 2004, a referida Administração verificou que N. Garcet não podia ser considerada celibatária e, consequentemente, emitiu um aviso de liquidação retificativo, em que anunciava a tributação conjunta dos recorrentes no processo principal e a emissão de um novo aviso de liquidação com base nos rendimentos declarados de N. Garcet e nos rendimentos auferidos na Alemanha por G. Imfeld como trabalhador independente.

16

Por carta de 9 de dezembro de 2004, os recorrentes no processo principal manifestaram a sua discordância com a retificação que lhes foi comunicada, tendo impugnado a liquidação conjunta do imposto devido, e exigido um cálculo separado, a fim de garantir a liberdade de estabelecimento assim como a efetiva e total isenção dos rendimentos auferidos por G. Imfeld na Alemanha.

17

Em 13 de dezembro de 2004, a Administração Fiscal notificou os recorrentes da decisão de liquidação, indicando que a isenção dos rendimentos auferidos na Alemanha por G. Imfeld era total, mas que a tributação conjunta devia ter em conta as despesas com a guarda dos filhos, a quota‑parte de rendimento isenta de imposto e as deduções por rendimentos de substituição.

18

Em 10 de fevereiro de 2005, foi emitido um aviso de liquidação de imposto relativo ao exercício fiscal de 2003 unicamente em nome de N. Garcet, com base em rendimentos correspondentes a zero, que os recorrentes impugnaram, por reclamação apresentada em 9 de março de 2005.

19

Uma vez que esta reclamação foi indeferida por decisão do diretor regional dos impostos diretos de Liège (Bélgica) de 11 de julho de 2005, os recorrentes no processo principal interpuseram recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, em 29 de setembro de 2005.

20

Em 13 de outubro de 2005, foi emitido um aviso de liquidação conjunta dos recorrentes no processo principal relativo ao exercício fiscal de 2003, que estes impugnaram, por reclamação apresentada em 13 de janeiro de 2006.

21

Uma vez que esta reclamação foi indeferida por decisão do diretor regional dos impostos diretos de Liège de 7 de março de 2006 os recorrentes no processo principal interpuseram recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, em 31 de março de 2006.

Litígio relativo ao exercício fiscal de 2004

22

Em 24 de junho de 2005, foi emitido um aviso de liquidação conjunta dos recorrentes no processo principal relativo ao exercício fiscal de 2004, que estes impugnaram, por reclamação apresentada em 15 de setembro de 2005.

23

Uma vez que esta reclamação foi indeferida por decisão do diretor regional dos impostos diretos de Liège de 19 de outubro de 2005, os recorrentes no processo principal interpuseram recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, em 21 de novembro de 2005.

Tratamento fiscal dos rendimentos auferidos na Alemanha por G. Imfeld

24

Em aplicação da Convenção de 1967, G. Imfeld foi tributado na Alemanha pelos seus rendimentos auferidos nesse Estado‑Membro. Resulta da sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça que, no âmbito do imposto sobre o rendimento pago na Alemanha, beneficiou de uma vantagem fiscal por filho a cargo sob a forma de uma quota‑parte de rendimento isento de imposto («Freibetrag für Kinder»).

25

G. Imfeld foi tributado a título individual, ou seja, sem poder beneficiar do regime do «Ehegattensplitting», regime de tributação conjunta de que podem beneficiar, nos termos do § 1a, n.o 1, ponto 2, da Lei relativa ao imposto sobre os rendimentos (Einkommensteuergesetz), os sujeitos passivos casados e não separados de modo duradouro que sejam tributáveis na Alemanha, apesar de residirem noutro Estado‑Membro. Resulta da decisão de reenvio e dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, relativamente ao exercício fiscal de 2003, as autoridades fiscais alemãs recusaram a G. Imfeld o benefício desse regime de tributação.

26

Foi negado provimento ao recurso interposto por G. Imfeld contra essa decisão de recusa, por decisão do Finanzgericht Köln (Alemanha) de 25 de julho de 2007, com o fundamento de que, por um lado, os seus rendimentos tributáveis na Alemanha eram inferiores a 90% dos rendimentos globais do seu agregado familiar e, por outro, os rendimentos da sua mulher eram superiores tanto ao limiar absoluto de 12372 euros como ao limiar relativo de 10% do rendimento mundial, previstos pela regulamentação fiscal alemã. O Finanzgericht Köln salientou, nomeadamente, que o Tribunal de Justiça tinha confirmado os referidos limiares no seu acórdão de 14 de setembro de 1999, Gschwind (C-391/97, Colet., p. I-5451, n.o 32).

27

Por acórdão do Bundesfinanzhof (Alemanha) de 17 de dezembro de 2007, foi negado provimento ao recurso interposto dessa última decisão pelo recorrente no processo principal.

Análise do órgão jurisdicional de reenvio e questão prejudicial

28

O órgão jurisdicional de reenvio indica que a tributação conjunta de G. Imfeld e de N. Garcet é conforme com a lei. A tributação conjunta dos cônjuges teve lugar como previsto no artigo 126.o, n.o 1, do CIR de 1992, e a liquidação foi efetuada em nome dos dois recorrentes no processo principal. Em aplicação do artigo 134.o, n.o 1, segundo parágrafo, do CIR de 1992, a majoração da quota‑parte isenta de imposto por filho a cargo, prevista no artigo 132.o, 3.°, do CIR de 1992, foi «imputada prioritariamente à quota‑parte de rendimento do cônjuge com os rendimentos profissionais mais elevados», neste caso à quota‑parte de rendimento de G. Imfeld.

29

Esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a conformidade do modo de cálculo do imposto belga com o direito da União. Considera, a este respeito, que o método de isenção com reserva de progressividade tem como consequência fazer com que os sujeitos passivos como os recorrentes no processo principal percam parte das quotas isentas de imposto a que lhes dá direito a sua situação pessoal e familiar, em razão do facto de serem imputadas prioritariamente na quota‑parte de rendimento do cônjuge com rendimentos mais elevados, embora estejam isentos por força de uma convenção internacional destinada a evitar a dupla tributação. Neste sentido, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a aplicação conjugada dos artigos 155.° e 134.°, n.o 1, do CIR de 1992 numa situação transfronteiriça como a dos recorrentes no processo principal é suscetível de violar o direito da União.

30

Nestas circunstâncias, após apensar os diversos litígios que lhe foram submetidos pelos recorrentes no processo principal, o tribunal de première instance de Liège decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 39.o [CE] opõe‑se a que o regime fiscal belga, nomeadamente os artigos 155.° e 134.°, n.o 1, segundo parágrafo, do [CIR de 1992], independentemente da aplicação ou não da circular [...] de 2008, tenha como consequência que os rendimentos profissionais alemães do recorrente, [isentos] nos termos do artigo 14.o da [Convenção de 1967], sejam tidos em conta no cálculo do imposto belga, sirvam de base para a atribuição de benefícios fiscais previstos pelo [CIR de 1992] e estes benefícios, como a quota‑parte isenta de imposto em razão da situação familiar do recorrente, sejam reduzidos ou atribuídos em menor medida do que se ambos os recorrentes tivessem rendimentos de origem belga e a recorrente tivesse [auferido], em lugar do recorrente, os rendimentos mais elevados, quando, na Alemanha, o recorrente é tributado a título individual sobre os seus rendimentos profissionais e não pode obter todos os benefícios fiscais relacionados com a sua situação pessoal e familiar, os quais apenas são tomados parcialmente em consideração pela [A]dministração [F]iscal alemã?»

Quanto à questão prejudicial

Observações preliminares

31

O órgão jurisdicional de reenvio convida, no essencial, o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se sobre a compatibilidade com o direito da União do tratamento fiscal reservado por um Estado‑Membro, no caso vertente o Reino da Bélgica, aos rendimentos de um casal que reside nesse Estado‑Membro, do qual um dos membros aufere rendimentos nesse Estado‑Membro ao passo que o outro exerce uma atividade independente noutro Estado‑Membro, no caso vertente a República Federal da Alemanha, onde aufere a totalidade dos seus rendimentos, que representam a parte mais significativa dos rendimentos do casal e são tributáveis na Alemanha e isentos na Bélgica ao abrigo de uma convenção internacional destinada a evitar a dupla tributação.

32

Há que precisar que, embora estejam em causa nos litígios no processo principal dois benefícios fiscais relacionados com a situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos, a saber, a dedução das despesas com a guarda dos filhos e a atribuição do suplemento da quota‑parte de rendimento isenta de imposto por filho a cargo, através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio visa mais precisamente «a quota‑parte isenta de imposto em razão da situação familiar do recorrente», referindo‑se às modalidades de cálculo definidas no artigo 134.o, n.o 1, segundo parágrafo, do CIR de 1992.

33

Com esses termos, o órgão jurisdicional de reenvio designa o benefício fiscal constituído pelo suplemento da quota‑parte de rendimento isenta de imposto por filhos a cargo previsto no artigo 132.o do CIR de 1992. Indica que esse benefício fiscal é atribuído pelo direito belga ao casal no seu conjunto e que, em razão das modalidades de cálculo enunciadas no artigo 134.o do CIR de 1992, segundo o qual o referido suplemento é calculado por imputação aplicada aos rendimentos tributáveis mais elevados de um dos dois cônjuges, numa situação como a dos recorrentes no processo principal, esse benefício se encontra reduzido ou atribuído em menor medida do que se estes últimos tivessem ambos auferido rendimentos na Bélgica e se N. Garcet tivesse auferido, em vez de G. Imfeld, os rendimentos mais elevados.

34

Por conseguinte, a dedutibilidade das despesas com a guarda dos filhos não faz parte dos benefícios visados pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua questão. Conforme o Governo belga confirmou durante a audiência, o cálculo da dedução das despesas com a guarda dos filhos obedece a regras diferentes, uma vez que tal dedução é atribuída mediante uma repartição proporcional pelos rendimentos de cada cônjuge. Acrescentou que, no caso vertente, N. Garcet beneficiou de uma dedução a título das despesas com a guarda dos filhos correspondente ao prorata da quota que os seus rendimentos representam no rendimento global do casal.

Quanto à liberdade aplicável à situação dos recorrentes no processo principal

35

O órgão jurisdicional de reenvio refere, na sua questão, o artigo 39.o CE, ao qual corresponde atualmente o artigo 45.o TFUE, relativo à livre circulação dos trabalhadores, assim como evoca várias vezes, nas explicações fornecidas na sua decisão de reenvio, a liberdade de estabelecimento.

36

Ora, G. Imfeld, que é cidadão alemão e reside na Bélgica, trabalha na Alemanha como advogado e exerce uma atividade independente. Por outro lado, a disposição da Convenção de 1967 expressamente citada pelo órgão jurisdicional de reenvio como sendo aplicável aos litígios no processo principal diz respeito às profissões liberais e às atividades independentes de caráter análogo.

37

Por conseguinte, a situação de G. Imfeld não diz respeito à livre circulação dos trabalhadores, mas à liberdade de estabelecimento, que abrange, em relação aos nacionais da União, o acesso às atividades por conta própria e ao seu exercício (v., designadamente, acórdão de 11 de março de 2004, de Lasteyrie du Saillant, C-9/02, Colet., p. I-2409, n.o 40).

38

Como o Tribunal de Justiça reiteradamente afirmou, apesar de o órgão jurisdicional de reenvio ter limitado o seu pedido de decisão prejudicial à interpretação da livre circulação dos trabalhadores, essa circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a apreciação do litígio que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 21 de fevereiro de 2006, Ritter‑Coulais, C-152/03, Colet., p. I-1711, n.o 29, e de 23 de abril de 2009, Rüffler, C-544/07, Colet., p. I-3389, n.o 57).

39

Importa pois compreender a questão prejudicial no sentido de que tem por objeto o artigo 43.o CE, ao qual corresponde atualmente o artigo 49.o TFUE.

Quanto à questão

40

Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de uma regulamentação fiscal de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, em razão das suas modalidades de imputação, tem por efeito privar do benefício de uma vantagem fiscal determinada um casal residente nesse Estado e que aufere rendimentos no referido Estado e noutro Estado‑Membro, no qual um dos membros do casal é tributado a título individual pelos seus rendimentos profissionais e não pode obter todos os benefícios fiscais relacionados com a sua situação profissional e familiar, quando o mesmo casal teria direito a essa vantagem se os seus membros auferissem a totalidade ou a maior parte dos seus rendimentos no seu Estado‑Membro de residência.

Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento

41

Desde logo, importa recordar que, por força de jurisprudência constante, na falta de medidas de unificação ou de harmonização adotadas pela União, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos e do património, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados‑Membros são livres de fixar, no âmbito de convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, os fatores de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal (v., designadamente, acórdãos de Groot, já referido, n.o 93; de 16 de outubro de 2008, Renneberg, C-527/06, Colet., p. I-7735, n.o 48; e de 28 de fevereiro de 2013, Beker, C‑168/11, n.o 32).

42

Contudo, esta repartição da competência fiscal não permite aos Estados‑Membros aplicarem medidas contrárias às liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE. Com efeito, no que se refere ao exercício do poder de tributação assim repartido no âmbito de convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, os Estados‑Membros são obrigados a respeitar as regras da União (acórdãos, já referidos, de Groot, n.o 94; Renneberg, n.os 50 e 51; e Beker, n.os 33 e 34).

43

Cumpre igualmente recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, é ao Estado‑Membro de residência que, em princípio, cabe atribuir ao contribuinte a totalidade dos benefícios fiscais inerentes à sua situação pessoal e familiar, uma vez que esse Estado, salvo exceção, é o mais bem colocado para apreciar a capacidade contributiva pessoal do referido sujeito passivo, na medida em que este dispõe do centro dos seus interesses pessoais e patrimoniais aí centralizados (v., designadamente, acórdãos de 14 de fevereiro de 1995, Schumacker, C-279/93, Colet., p. I-225, n.o 32; de 16 de maio de 2000, Zurstrassen, C-87/99, Colet., p. I-3337, n.o 21; e Beker, já referido, n.o 43).

44

A obrigação de tomar em conta a situação pessoal e familiar só pode incumbir ao Estado‑Membro de emprego quando o contribuinte obtém a totalidade ou a quase totalidade dos seus rendimentos tributáveis resultantes de uma atividade exercida nesse Estado e não aufere rendimentos significativos no seu Estado de residência, pelo que este não está em condições de lhe conceder os benefícios resultantes da tomada em conta da sua situação pessoal e familiar (v., designadamente, acórdãos, já referidos, Schumacker, n.o 36; Gschwind, n.o 27; Zurstrassen, n.os 21 a 23; e de Groot, n.o 89).

45

É à luz destes princípios que a compatibilidade da aplicação da regulamentação belga a uma situação como a que está em causa no processo principal com a liberdade de estabelecimento deve ser analisada.

46

No caso em apreço, os recorrentes no processo principal foram objeto de tributação conjunta dos seus rendimentos na Bélgica, onde residem, estando os rendimentos auferidos por G. Imfeld na Alemanha isentos, e este último foi objeto de tributação individual dos rendimentos que auferiu na Alemanha, onde trabalha, nos termos da Convenção de 1967.

47

Tanto na Alemanha como na Bélgica, a situação pessoal e familiar dos recorrentes no processo principal foi tomada em conta, pelo menos parcialmente. G. Imfeld teve direito, nos termos da regulamentação fiscal alemã, a uma isenção de imposto por filhos a cargo («Freibetrag für Kinder»), sem, no entanto, ter podido beneficiar do regime do «Ehegattensplitting».

48

Ao abrigo da regulamentação fiscal belga, o casal constituído pelos recorrentes no processo principal tem, em princípio, direito ao suplemento de quota‑parte de rendimento isento de imposto por filho a cargo. Todavia, não pode beneficiar dele efetivamente. A quota‑parte de rendimento suplementar suscetível de ser isenta foi, com efeito, imputada nos rendimentos de G. Imfeld auferidos na Alemanha, na medida em que eram os mais elevados do casal. Porém, os referidos rendimentos foram em seguida subtraídos da base tributável, dado que estavam isentos nos termos da Convenção de 1967, pelo que, no final, nenhuma quota‑parte de rendimento foi isenta de imposto a título específico do suplemento por filhos a cargo.

49

Por conseguinte, uma regulamentação fiscal como a que está em causa no processo principal, mais precisamente a aplicação conjugada do método de isenção com reserva de progressividade previsto no artigo 155.o do CIR de 1992 e das modalidades de imputação do suplemento de quota‑parte de rendimento isento de imposto por filho a cargo estabelecidas pelo artigo 134.o do CIR de 1992, prejudica os casais na situação dos recorrentes no processo principal, que se caracteriza pela circunstância de a parte mais significativa dos seus rendimentos ser auferida num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica, relativamente aos casais que auferem a totalidade ou a parte mais significativa dos seus rendimentos na Bélgica.

50

Enquanto casal, os recorrentes no processo principal sofreram um prejuízo, na medida em que não beneficiaram da vantagem fiscal resultante da aplicação do suplemento de quota‑parte de rendimento isento de imposto por filho a cargo a que teriam tido direito se tivessem auferido a totalidade dos seus rendimentos na Bélgica ou, pelo menos, se os rendimentos auferidos por N. Garcet na Bélgica tivessem sido superiores aos auferidos pelo seu marido na Alemanha.

51

A regulamentação em causa no processo principal estabelece assim uma diferença de tratamento fiscal entre os casais de cidadãos da União residentes no território do Reino da Bélgica, em função da origem e da importância dos seus rendimentos, que é suscetível de produzir um efeito dissuasivo sobre o exercício, por estes últimos, das liberdades garantidas pelo Tratado, designadamente da liberdade de estabelecimento (v., neste sentido, acórdão Beker, já referido, n.o 52).

52

Assim, essa regulamentação é suscetível de dissuadir os nacionais desse Estado‑Membro de exercerem o seu direito à liberdade de estabelecimento exercendo uma atividade económica num outro Estado‑Membro ao mesmo tempo que continuam a residir no primeiro Estado (v., designadamente, acórdãos de 13 de abril de 2000, Baars, C-251/98, Colet., p. I-2787, n.os 28 e 29, e de 19 de novembro de 2009, Filipiak, C-314/08, Colet., p. I-11049, n.o 60).

53

A referida regulamentação é igualmente suscetível de dissuadir os nacionais dos Estados‑Membros diferentes do Reino da Bélgica de exercerem, na qualidade de cidadãos da União, o seu direito à livre circulação estabelecendo a sua residência no referido Estado‑Membro, nomeadamente para efeitos de reagrupamento familiar, ao mesmo tempo que continuam a exercer uma atividade económica no Estado‑Membro de que são nacionais.

54

Por outro lado, a regulamentação fiscal belga não toma em consideração as situações transfronteiriças como a que está em causa no processo principal e, portanto, não permite atenuar os efeitos negativos que pode ter no exercício das liberdades garantidas aos cidadãos da União pelo Tratado.

55

Como a Comissão salienta nas suas observações escritas, a regra da imputação do suplemento de quota‑parte de rendimento isento de imposto por filho a cargo na parte mais elevada dos rendimentos do casal tem, em princípio, por objetivo maximizar o efeito da vantagem em benefício do casal no seu conjunto, incluindo o cônjuge com os rendimentos inferiores. Uma vez que a tabela de tributação tem caráter progressivo, a atribuição do suplemento ao cônjuge com os rendimentos mais elevados é mais favorável para o casal do que uma repartição em partes iguais ou ainda proporcional. Paradoxalmente, aplicada numa situação transfronteiriça como a que está em causa no processo principal, a referida regra tem um efeito exatamente inverso em certas circunstâncias, concretamente porque o cônjuge com os rendimentos mais elevados aufere a totalidade dos seus rendimentos num Estado‑Membro diferente do Reino da Bélgica.

56

Contrariamente ao que o Governo belga sustenta, a restrição à liberdade de estabelecimento assim identificada não é a consequência necessária da disparidade das regulamentações nacionais em causa no caso vertente.

57

Com efeito, o casal constituído pelos recorrentes no processo principal foi privado de uma parte das isenções previstas para os casais de residentes, em razão do exercício, por um deles, da sua liberdade de estabelecimento e em razão das modalidades de imputação do suplemento de quota‑parte de rendimento isento de imposto por filho a cargo previstas pela regulamentação fiscal belga (v., neste sentido, acórdão de Groot, já referido, n.o 87).

58

O Governo belga também não pode alegar que a regulamentação fiscal em causa no processo principal não constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento devido ao facto de o exercício, por G. Imfeld, da sua liberdade de estabelecimento não ter agravado em nada a sua situação fiscal, pois, por um lado, não teve de pagar na Alemanha um imposto superior ao que teria pagado na Bélgica e, por outro, a sua situação pessoal e familiar foi tomada em conta na Alemanha, pelo que o Reino da Bélgica está inteiramente exonerado de qualquer obrigação a este respeito.

59

Na verdade, como resulta da exposição dos factos no processo principal, no caso vertente, G. Imfeld pôde beneficiar da tomada em conta parcial da sua situação pessoal e familiar na Alemanha, através da atribuição de uma isenção de imposto por filho a cargo («Freibetrag für Kinder»).

60

No entanto, não se pode considerar que a atribuição desse benefício fiscal na Alemanha compensa a perda do benefício fiscal sofrida pelos recorrentes no processo principal na Bélgica.

61

Com efeito, um Estado‑Membro não pode invocar a existência de um benefício concedido unilateralmente por outro Estado‑Membro, no caso vertente o Estado‑Membro em que G. Imfeld trabalha e aufere a totalidade dos seus rendimentos, a fim de se eximir às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado, nomeadamente por força das disposições deste relativas à liberdade de estabelecimento (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 8 de novembro de 2007, Amurta, C-379/05, Colet., p. I-9569, n.o 78; e de 11 de setembro de 2008, Eckelkamp e o., C-11/07, Colet., p. I-6845, n.o 69, e Arens‑Sikken, C-43/07, Colet., p. I-6887, n.o 66).

62

Ora, a regulamentação fiscal em causa no processo principal estabelece um benefício fiscal a favor dos casais, sob a forma, nomeadamente, de um suplemento da quota‑parte de rendimentos isenta de imposto por filho a cargo, que é imputado nos rendimentos do membro do casal que aufere os rendimentos mais elevados, sem tomar, de algum modo, em conta a circunstância de que este último pode, no exercício das liberdades garantidas pelo Tratado, não auferir rendimentos a título individual na Bélgica, com a consequência imediata e automática de o casal perder totalmente o referido benefício. Independentemente do tratamento fiscal reservado a G. Imfeld na Alemanha, é o caráter automático desta perda que viola a liberdade de estabelecimento.

63

Por conseguinte, a circunstância de, no caso vertente, a situação pessoal e familiar de G. Imfeld ter sido parcialmente tomada em conta na Alemanha no âmbito da sua tributação a título individual e de, consequentemente, ter podido beneficiar de uma vantagem fiscal não pode ser invocada pelo Governo belga para demonstrar a inexistência de uma restrição à liberdade de estabelecimento.

Quanto às justificações da restrição à liberdade de estabelecimento

64

É jurisprudência constante que uma medida suscetível de entravar a liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.o TFUE só pode ser admitida se prosseguir um objetivo legítimo compatível com o Tratado e se se justificar por razões imperiosas de interesse geral. Mas, em tal caso, é ainda necessário que a sua aplicação seja adequada para garantir a realização do objetivo assim prosseguido e não ultrapasse o que é necessário para o alcançar (v., designadamente, acórdãos de Lasteyrie du Saillant, já referido, n.o 49; de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer, C-446/03, Colet., p. I-10837, n.o 35; e de 21 de janeiro de 2010, SGI, C-311/08, Colet., p. I-487, n.o 56).

65

O Governo belga alega que, mesmo admitindo que a regulamentação fiscal em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento, é, em qualquer caso, justificada pela necessidade de salvaguardar a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados‑Membros.

66

Em particular, esse governo deduz dos acórdãos Schumacker e de Groot, já referidos, que existe uma correlação entre a tributação dos rendimentos e a tomada em conta da situação pessoal e familiar dos contribuintes, no sentido de que essa situação só deve ser tomada em conta no Estado de residência se existirem rendimentos tributáveis nesse Estado. O Governo belga sublinha que a Convenção de 1967 prevê que os rendimentos auferidos no Estado de emprego são isentos no Estado de residência. Ora, a finalidade de um sistema de isenção é reduzir a matéria coletável a zero e impedir que sejam feitas deduções, independentemente de estarem ou não relacionadas com a situação pessoal e familiar.

67

Segundo o Governo belga, ir além da não tributação, transferindo para outro contribuinte os benefícios fiscais relacionados com a situação pessoal e familiar, significa ir além do que exige o direito da União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça no acórdão de Groot, já referido, do qual resulta apenas que os benefícios devem ser concedidos na totalidade e dedutíveis na totalidade dos rendimentos tributáveis. Transferir os benefícios para o cônjuge equivale a comprometer o direito do Reino da Bélgica de exercer a sua competência fiscal em relação às atividades exercidas por esse cônjuge no seu território.

68

A este respeito, há que observar que é verdade que a preservação da repartição do poder fiscal entre os Estados‑Membros pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral que permite justificar uma restrição ao exercício de uma liberdade de circulação na União (acórdão Beker, já referido, n.o 56).

69

Todavia, o Tribunal de Justiça já declarou que tal justificação não pode ser invocada pelo Estado‑Membro de residência de um contribuinte para se subtrair à responsabilidade, que, em princípio, recai sobre esse Estado, de conceder as deduções pessoais e familiares a que o referido contribuinte tem direito, a menos que esse Estado esteja convencionalmente exonerado da sua obrigação de assegurar na íntegra a tomada em conta da situação pessoal e familiar dos contribuintes residentes no seu território e que exercem parcialmente a sua atividade económica noutro Estado‑Membro, ou que verifique que, mesmo independentemente de qualquer convenção, um ou vários Estados de emprego concedem, em relação aos rendimentos que tributam, benefícios ligados à tomada em conta da situação pessoal e familiar dos contribuintes que não residem no território destes Estados, mas que aí auferem rendimentos tributáveis (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, de Groot, n.os 99 e 100, e Beker, n.o 56).

70

Neste contexto, o Tribunal de Justiça precisou, no n.o 101 do acórdão de Groot, já referido, que os mecanismos utilizados para eliminar a dupla tributação ou os sistemas fiscais nacionais que têm por efeito eliminá‑la ou atenuá‑la devem, no entanto, assegurar aos contribuintes dos Estados em causa que, no total, a sua situação pessoal e familiar será devidamente tomada em conta no seu conjunto, qualquer que seja o modo como os Estados‑Membros em causa tenham repartido entre si essa obrigação, sob pena de criar uma desigualdade de tratamento incompatível com as disposições do Tratado em matéria de livre circulação de pessoas, a qual não resulta, de modo algum, das disparidades existentes entre as legislações fiscais nacionais.

71

Estas considerações são transponíveis para a situação do casal constituído pelos recorrentes no processo principal.

72

Ora, por um lado, a Convenção de 1967 não impõe ao Estado‑Membro de emprego nenhuma obrigação relativa à tomada em conta da situação pessoal e familiar dos contribuintes residentes noutro Estado‑Membro parte nessa Convenção.

73

Por outro lado, a regulamentação fiscal em causa no processo principal não estabelece nenhuma correlação entre os benefícios fiscais que atribui aos residentes do Estado‑Membro em causa e os benefícios fiscais que lhes possam ser atribuídos no quadro da sua tributação noutro Estado‑Membro. Os recorrentes no processo principal não puderam beneficiar do suplemento de quota‑parte de rendimento isenta de imposto por filho a cargo não por terem obtido um benefício equivalente na Alemanha, mas apenas porque esse benefício é neutralizado pelas respetivas modalidades de imputação.

74

Aliás, o Governo belga referiu a este respeito que a circular de 2008, que é analisada como um mecanismo que estabelece essa correlação, não se aplica à situação de G. Imfeld.

75

Em qualquer caso, uma justificação relativa à necessidade de salvaguardar a repartição equilibrada do poder de tributação entre os Estados‑Membros pode ser aceite, designadamente, quando o regime em causa tenha por objetivo evitar comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades exercidas no seu território (v., neste sentido, acórdãos de 29 de março de 2007, Rewe Zentralfinanz, C-347/04, Colet., p. I-2647, n.o 42; de 18 de julho de 2007, Oy AA, C-231/05, Colet., p. I-6373, n.o 54; SGI, já referido, n.o 60; e Beker, já referido, n.o 57).

76

Ora, no caso em apreço, o facto de o Reino da Bélgica reconhecer integralmente o benefício das deduções de tipo pessoal e familiar aos recorrentes no processo principal não comprometeria este direito. Ao fazê‑lo, o referido Estado‑Membro não renunciaria a uma parte da sua competência fiscal a favor de outros Estados‑Membros. Como sublinha a Comissão no caso vertente, a perda do benefício concedido ao casal afeta o cônjuge que se mantém sujeito à tributação belga. O efeito restritivo para o casal não reside num tratamento desfavorável do rendimento isento de imposto de G. Imfeld, mas no do rendimento de sua mulher, N. Garcet, auferido exclusivamente na Bélgica e integralmente sujeito a imposto belga, sem que esta beneficie das vantagens fiscais em causa.

77

Por outro lado, o Governo estónio considera que a regulamentação fiscal belga em causa no processo principal tem por objetivo evitar que a situação pessoal e familiar do contribuinte seja simultaneamente tomada em conta em dois Estados‑Membros e, consequentemente, conduza à atribuição indevida de um duplo benefício. Nesta perspetiva, alega que o Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de os Estados‑Membros se oporem à dupla dedução dos prejuízos, e remete, a este respeito, para o n.o 47 do acórdão Marks & Spencer, já referido.

78

Como referiu o advogado‑geral no n.o 82 das suas conclusões, mesmo admitindo que os diferentes benefícios fiscais respetivamente atribuídos pelos dois Estados‑Membros em causa são equivalentes e que se possa concluir que os recorrentes no processo principal obtiveram efetivamente um duplo benefício, em qualquer caso, esta circunstância seria apenas o fruto da aplicação paralela das regulamentações fiscais belga e alemã, conforme acordada entre esses dois Estados‑Membros nos termos fixados pela Convenção de 1967.

79

Em contrapartida, os Estados‑Membros em causa podem tomar em consideração os benefícios fiscais eventualmente atribuídos por outro Estado‑Membro de tributação, sem prejuízo, conforme resulta do n.o 70 do presente acórdão, de que, qualquer que seja o modo como esses Estados‑Membros tenham repartido entre si essa obrigação, os seus contribuintes tenham a garantia de que, no total, a sua situação pessoal e familiar será devidamente tomada em conta, no seu conjunto.

80

Por conseguinte, há que responder à questão submetida que o artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de uma regulamentação fiscal de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, em razão das suas modalidades de imputação, tem por efeito privar do benefício efetivo de uma vantagem fiscal determinada um casal residente nesse Estado e que aufere rendimentos no referido Estado e noutro Estado‑Membro, quando o mesmo casal teria direito a essa vantagem se o cônjuge com os rendimentos mais elevados não auferisse a totalidade dos seus rendimentos noutro Estado‑Membro.

Quanto às despesas

81

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

O artigo 49.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de uma regulamentação fiscal de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, em razão das suas modalidades de imputação, tem por efeito privar do benefício efetivo de uma vantagem fiscal determinada um casal residente nesse Estado e que aufere rendimentos no referido Estado e noutro Estado‑Membro, quando o mesmo casal teria direito a essa vantagem se o cônjuge com os rendimentos mais elevados não auferisse a totalidade dos seus rendimentos noutro Estado‑Membro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.