ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

5 de setembro de 2012 ( *1 )

«Diretiva 2004/83/CE — Normas mínimas relativas às condições de concessão do estatuto de refugiado ou do estatuto conferido pela proteção subsidiária — Artigo 2.o, alínea c) — Qualidade de ‘refugiado’ — Artigo 9.o, n.o 1 — Conceito de ‘atos de perseguição’ — Artigo 10.o, n.o 1, alínea b) — Religião como motivo da perseguição — Nexo entre esse motivo de perseguição e os atos de perseguição — Nacionais paquistaneses membros da comunidade religiosa ahmadiyya — Atos das autoridades paquistanesas destinados a limitar o direito de manifestar a sua religião em público — Atos suficientemente graves para que o interessado possa ter receios fundados de ser perseguido devido à sua religião — Apreciação individual dos factos e das circunstâncias — Artigo 4.o»

Nos processos apensos C-71/11 e C-99/11,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentados pelo Bundesverwaltungsgericht (Alemanha), por decisões de 9 de dezembro de 2010, entrados no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 18 de fevereiro e 2 de março de 2011, nos processos

Bundesrepublik Deutschland

contra

Y (C-71/11),

Z (C-99/11),

estando presente:

Vertreter des Bundesinteresses beim Bundesverwaltungsgericht,

Bundesbeauftragter für Asylangelegenheiten beim Bundesamt für Migration und Flüchtlinge,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts e J.-C. Bonichot, presidentes de secção, A. Rosas, R. Silva de Lapuerta, E. Levits, A. Ó Caoimh, L. Bay Larsen (relator), T. von Danwitz, A. Arabadjiev e C. G. Fernlund, juízes,

advogado-geral: Y. Bot,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 28 de fevereiro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Y e Z, por C. Borschberg e R. Marx, Rechtsanwälte,

em representação do Governo alemão, por T. Henze, N. Graf Vitzthum e K. Petersen, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por G. de Bergues e B. Beaupère-Manokha, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por C. M. Wissels e B. Koopman, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por M. Condou-Durande e W. Bogensberger, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 19 de abril de 2012,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação dos artigos 2.°, alínea c), e 9.°, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida (JO L 304, p. 12; retificação no JO 2005, L 204, p. 24, a seguir «diretiva»).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem a Bundesrepublik Deutschland, representada pelo Bundesministerium des Innern (Ministério Federal do Interior), por seu turno representado pelo Bundesamt für Migration und Flüchtlinge (Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados, a seguir «Bundesamt»), a Y e a Z, nacionais paquistaneses, a propósito do indeferimento, pelo Bundesamt, dos pedidos de asilo e de concessão do estatuto de refugiado apresentados por estes últimos.

Quadro jurídico

Direito internacional

Convenção relativa ao estatuto dos refugiados

3

A Convenção relativa ao estatuto dos refugiados, assinada em Genebra, em 28 de julho de 1951 [Recueil des traités des Nations unies, vol. 189, p. 150, n.o 2545 (1954)], entrou em vigor em 22 de abril de 1954. Foi completada pelo Protocolo relativo ao estatuto dos refugiados, celebrado em Nova Iorque, em 31 de janeiro de 1967, que entrou em vigor em 4 de outubro de 1967 (a seguir «Convenção de Genebra»).

4

Nos termos do artigo 1.o, ponto A, n.o 2, primeiro parágrafo, da Convenção de Genebra, o termo «refugiado» aplica-se a qualquer pessoa que, «receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar».

Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais

5

A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), prevê, no seu artigo 9.o, sob a epígrafe «Liberdade de pensamento, de consciência e de religião»:

«1.   Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.

2.   A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.»

6

O artigo 15.o da CEDH, sob a epígrafe «Derrogação em caso de estado de necessidade», estipula:

«1.   Em caso de guerra ou de outro perigo público que ameace a vida da nação, qualquer Alta Parte Contratante pode tomar providências que derroguem as obrigações previstas na presente Convenção, na estrita medida em que o exigir a situação, e em que tais providências não estejam em contradição com as outras obrigações decorrentes do direito internacional.

2.   A disposição precedente não autoriza nenhuma derrogação ao artigo 2.o [‘Direito à vida’], salvo quanto ao caso de morte resultante de atos lícitos de guerra, nem aos artigos 3.° [‘Proibição da tortura’], 4.° (n.o 1) [‘Proibição da escravatura’] e 7.° [‘Princípio da legalidade’].

[...]»

Direito da União

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

7

O artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), sob a epígrafe «Liberdade de pensamento, de consciência e de religião», inclui um n.o 1 que está redigido em termos idênticos aos do artigo 9.o, n.o 1, da CEDH.

8

Os direitos que não podem ser objeto de nenhuma derrogação nos termos do artigo 15.o, n.o 2, da CEDH estão consagrados nos artigos 2.°, 4.°, 5.°, n.o 1, e 49.° da Carta.

Diretiva

9

Nos termos do considerando 3 da diretiva, a Convenção de Genebra constitui a pedra angular do regime jurídico internacional relativo à proteção dos refugiados.

10

Conforme resulta do considerando 10 da diretiva, lido à luz do artigo 6.o, n.o 1, TUE, a mesma respeita os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta. Em especial, procura assegurar, com base nos artigos 1.° e 18.° da Carta, o respeito integral da dignidade humana e do direito de asilo dos requerentes de asilo.

11

Os considerandos 16 e 17 da diretiva têm a seguinte redação:

«(16)

Importa estabelecer normas mínimas relativas à configuração e conteúdo do estatuto de refugiado, a fim de auxiliar as instâncias nacionais competentes dos Estados-Membros a aplicar a Convenção de Genebra.

(17)

É necessário introduzir critérios comuns de reconhecimento como refugiados de requerentes de asilo, nos termos do artigo 1.o da Convenção de Genebra.»

12

Nos termos do seu artigo 1.o, a diretiva tem por objetivo estabelecer normas mínimas relativas, por um lado, às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou os apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional e, por outro, ao conteúdo da proteção concedida.

13

Nos termos do artigo 2.o da diretiva, para efeitos desta, entende-se por:

«a)

‘Proteção internacional’, o estatuto de refugiado e o estatuto de proteção subsidiária, definidos nas alíneas d) e f);

[...]

c)

‘Refugiado’, o nacional de um país terceiro que, receando com razão ser perseguido em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, se encontre fora do país de que é nacional e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção desse país [...]

d)

‘Estatuto de refugiado’, o reconhecimento por parte de um Estado-Membro de um nacional de um país terceiro ou de um apátrida como refugiado;

[...]»

14

O artigo 3.o da diretiva permite aos Estados-Membros aprovar ou manter normas mais favoráveis relativas à determinação das pessoas que preenchem as condições para beneficiar do estatuto de refugiado, bem como à determinação do conteúdo da proteção internacional, desde que essas normas sejam compatíveis com a diretiva.

15

O artigo 4.o da diretiva, incluído no seu capítulo II, sob a epígrafe «Apreciação do pedido de proteção internacional», define as condições de apreciação dos factos e das circunstâncias e dispõe, no seu n.o 3:

«A apreciação do pedido de proteção internacional deve ser efetuada a título individual e ter em conta:

a)

Todos os factos pertinentes respeitantes ao país de origem à data da decisão sobre o pedido, incluindo a respetiva legislação e regulamentação, assim como a maneira como são aplicadas;

b)

As declarações e a documentação pertinentes apresentadas pelo requerente, incluindo informações sobre se o requerente sofreu ou pode sofrer perseguição [...]

c)

A situação e as circunstâncias pessoais do requerente, incluindo fatores como a sua história pessoal, sexo e idade, por forma a apreciar, com base na situação pessoal do requerente, se os atos a que foi ou possa vir a ser exposto podem ser considerados perseguição [...]

[...]»

16

Nos termos do artigo 4.o, n.o 4, da diretiva, o facto de o requerente já ter sido perseguido ou diretamente ameaçado de perseguição, ou ter sofrido ou sido diretamente ameaçado de ofensa grave, constitui um «indício sério do receio fundado do requerente de ser perseguido», a menos que haja motivos sérios para considerar que essa perseguição ou ofensa grave não se repetirá.

17

O artigo 6.o da diretiva, incluído no referido capítulo II e sob a epígrafe «Agentes da perseguição ou ofensa grave», enuncia:

«Podem ser agentes da perseguição ou ofensa grave:

a)

O Estado;

b)

Os partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do respetivo território;

c)

Os agentes não estatais, se puder ser provado que os agentes mencionados nas alíneas a) e b), incluindo organizações internacionais, são incapazes de ou não querem proporcionar proteção contra a perseguição ou ofensa grave na aceção do artigo 7.o»

18

O artigo 9.o da diretiva, incluído no seu capítulo III e sob a epígrafe «Condições para o reconhecimento como refugiado», define, nos seus n.os 1 e 2, os atos de perseguição, dispondo:

«1.   Os atos de perseguição, na aceção do ponto A do artigo 1.o da Convenção de Genebra, devem:

a)

Ser suficientemente graves, devido à sua natureza ou persistência, para constituírem grave violação dos direitos humanos fundamentais, em especial os direitos que não podem ser derrogados, nos termos do n.o 2 do artigo 15.o da [CEDH], ou

b)

Constituir um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos, suficientemente graves para afetar o indivíduo de forma semelhante à referida na alínea a).

2.   Os atos de perseguição, qualificados no n.o 1, podem designadamente assumir as seguintes formas:

a)

Atos de violência física ou mental [...];

b)

Medidas legais, administrativas, policiais e/ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória;

c)

Ações judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias;

[...]»

19

O artigo 9.o, n.o 3, da diretiva exige que haja um nexo entre os motivos de perseguição referidos no seu artigo 10.o e estes atos de perseguição.

20

O artigo 10.o da diretiva, sob a epígrafe «Motivos da perseguição» e igualmente incluído no seu capítulo III, dispõe no seu n.o 1:

«Ao apreciarem os motivos da perseguição, os Estados-Membros devem ter em conta que:

[...]

b)

A noção de religião abrange, designadamente, o facto de se ter convicções teístas, não teístas e ateias, a participação ou a abstenção de participação em cerimónias de culto privadas ou públicas, quer a título individual, quer em conjunto com outras pessoas, noutros atos religiosos ou expressões de convicções, ou formas de comportamento pessoal ou comunitário fundadas em credos religiosos ou por estes impostas.

[...]»

21

Em conformidade com o artigo 13.o da diretiva, o Estado-Membro concede o estatuto de refugiado ao requerente se este preencher, nomeadamente, as condições enunciadas nos artigos 9.° e 10.° da diretiva.

Direito alemão

22

O § 16a, n.o 1, da Lei Fundamental (Grundgesetz) dispõe:

«As pessoas que são alvo de perseguições de caráter político beneficiam do direito de asilo.»

23

O § 1 da Lei sobre o processo de asilo (Asylverfahrensgesetz), na sua versão publicada em 2 de setembro de 2008 (BGBl. 2008 I, p. 1798, a seguir «AsylVfG»), enuncia que a mesma se aplica aos estrangeiros que solicitem proteção na qualidade de perseguidos políticos na aceção do § 16a, n.o 1, da Lei Fundamental ou proteção contra as perseguições em conformidade com a Convenção de Genebra.

24

O § 2 da AsylVfG prevê que os beneficiários do direito de asilo gozam, no território nacional, do estatuto definido pela Convenção de Genebra.

25

O estatuto de refugiado era inicialmente regulado pelo § 51 da Lei sobre a entrada e a residência dos estrangeiros no território federal (Gesetz über die Einreise und den Aufenthalt von Ausländern im Bundesgebiet).

26

Através da Lei que transpõe as diretivas da União Europeia em matéria de direito de residência e de asilo (Gesetz zur Umsetzung aufenthalts- und asylrechtlicher Richtlinien der Europäischen Union), de 19 de agosto de 2007 (BGBl. 2007 I, p. 1970), entrada em vigor em 28 de agosto de 2007, a República Federal da Alemanha transpôs, nomeadamente, a diretiva.

27

Atualmente, as condições para ser considerado refugiado estão fixadas no § 3 da AsylVfG. Nos termos do seu n.o 1:

«Um estrangeiro é considerado refugiado na aceção da [Convenção de Genebra] quando, no Estado de que tem a nacionalidade, esteja exposto aos riscos referidos no § 60, n.o 1, da Lei [sobre a residência, o trabalho e a integração dos estrangeiros no território federal (Gesetz über den Aufenthalt, die Erwerbstätigkeit und die Integration von Ausländern im Bundesgebiet), na sua versão publicada em 25 de fevereiro de 2008 (BGBl. 2008 I, p. 162, a seguir «Aufenthaltsgesetz»)] […]»

28

O § 60, n.o 1, da Aufenthaltsgesetz dispõe na primeira e quinta frases:

«Em aplicação da Convenção [de Genebra], um estrangeiro não pode ser conduzido à fronteira a fim de ser afastado para um Estado onde a sua vida ou a sua liberdade estejam ameaçadas em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, das suas convicções políticas ou do facto de pertencer a um determinado grupo social. [...] Para apreciar se existe perseguição na aceção da primeira frase, há que aplicar [...] de forma complementar o artigo 4.o, n.o 4, e os artigos 7.° a 10.° da [diretiva]»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

29

Respetivamente, nos meses de janeiro de 2004 e de agosto de 2003, Y e Z entraram na Alemanha, tendo aí solicitado asilo e proteção como refugiados.

30

Em apoio dos respetivos pedidos, alegaram que o facto de pertencerem à comunidade muçulmana ahmadiyya, que é um movimento reformador do Islão, os obrigou a abandonar o seu país de origem. Em particular, a este respeito, Y afirmou que, na sua aldeia natal, foi repetidamente agredido e apedrejado por um grupo de pessoas no local de orações. Essas pessoas ameaçaram-no de morte e denunciaram-no à polícia por ofensas ao profeta Maomé. Z alegou que foi maltratado e encarcerado em razão das suas convicções religiosas.

31

Resulta das decisões de reenvio que o artigo 298.o C do Código Penal paquistanês prevê que os membros da comunidade ahmadiyya são punidos com penas de prisão até três anos ou com sanção pecuniária caso exijam ser considerados muçulmanos, designem a sua religião de Islão, preguem ou difundam essa religião ou convidem outros a aderir à sua religião. Nos termos do artigo 295.o C do mesmo Código Penal, quem insultar o nome do profeta Maomé pode, para além disso, ser punido com pena de morte ou prisão perpétua e sanção pecuniária.

32

Por decisões de 4 de maio e 8 de julho de 2004, o Bundesamt indeferiu os pedidos de asilo de Y e de Z e constatou que não estavam preenchidas as condições para obtenção do estatuto de refugiado.

33

Nas mesmas decisões, o Bundesamt constatou igualmente que, no direito nacional aplicável, não existia nenhum obstáculo à expulsão de Y e de Z para o Paquistão e declarou-os passíveis de expulsão para esse Estado. No essencial, o Bundesamt fundamentou estas decisões no facto de não existirem indícios suficientes que permitissem afirmar que os requerentes em causa abandonaram o seu país de origem por terem receios fundados de ser perseguidos.

34

Y interpôs recurso no Verwaltungsgericht Leipzig (Tribunal Administrativo de Leipzig), o qual, por acórdão de 18 de maio de 2007, anulou a decisão do Bundesamt tomada contra este e ordenou que esta autoridade reconhecesse que, como refugiado, preenchia as condições para beneficiar da proibição de expulsão para o Paquistão.

35

Z contestou a decisão do Bundesamt no Verwaltungsgericht Dresden (Tribunal Administrativo de Dresden). Por acórdão de 13 de julho de 2007, este negou provimento ao seu recurso, considerando que Z não abandonou o seu país de origem por ter um receio fundado de perseguição.

36

Por acórdãos de 13 de novembro de 2008, o Sächsisches Oberverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Superior do Land de Saxe) decidiu, respetivamente:

negar provimento ao recurso interposto pelo Bundesbeauftragter für Asylangelegenheiten (representante federal para os assuntos relacionados com o asilo, a seguir «Bundesbeauftragter») do acórdão proferido em primeira instância no processo relativo a Y; e,

na sequência do recurso interposto por Z do acórdão proferido em primeira instância a seu respeito, reformar esse acórdão e impor ao Bundesamt o reconhecimento de que Z preenchia as condições do § 60, n.o 1, da Aufenthaltsgesetz e de que, por conseguinte, como refugiado, era proibido expulsá-lo para o Paquistão.

37

Mais especialmente, esse órgão jurisdicional considerou pouco importante que Y e Z tenham sido pessoalmente ameaçados de perseguição antes da sua partida do Paquistão. O importante é que, na sua qualidade de ahmadis ativos, estarão sempre expostos no Paquistão a um risco de perseguição coletiva na aceção do § 60, n.o 1, da Aufenthaltsgesetz.

38

Com efeito, em caso de regresso ao Paquistão, não lhes será possível continuar a praticar a sua religião em público sem estarem expostos a um risco de perseguição, o qual deve ser tido em conta num processo de asilo que visa determinar se o estatuto de refugiado lhes deve ser concedido.

39

Nos acórdãos de 13 de novembro de 2008, o Sächsisches Oberverwaltungsgericht considera que, para um ahmadi que pratica a sua religião de forma estrita no Paquistão e cujas convicções implicam, nomeadamente, professar o seu credo em público, a situação nesse Estado constitui uma grave violação da liberdade de religião. Atendendo às pesadas sanções que o ameaçam e aos numerosos ataques perpetrados em plena impunidade por grupos extremistas, o bom senso impõe que um ahmadi se abstenha de manifestar publicamente a sua fé.

40

Segundo as constatações do Sächsisches Oberverwaltungsgericht, Y e Z estão fortemente ligados à sua fé e, no Paquistão, professavam-na ativamente. Na Alemanha, continuam a praticar a sua fé e consideram que poder fazê-lo em público é necessário para conservarem a sua identidade religiosa.

41

O Bundesamt e o Bundesbeauftragter interpuseram recurso de «Revision» dos referidos acórdãos no Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal), no qual alegaram que o tribunal de recurso interpretou de forma demasiado ampla o âmbito de aplicação dos artigos 9.° e 10.°, n.o 1, alínea b), da diretiva.

42

Remetendo para a jurisprudência que vigorava na Alemanha antes da transposição da diretiva em 2007, nos termos da qual apenas se pode admitir uma perseguição relevante para a concessão de um direito de asilo em caso de ingerência no «núcleo essencial» da liberdade de religião, mas não em caso de restrições à prática da religião em público, consideram que as restrições impostas aos ahmadis no Paquistão, relativas à prática da sua fé em público, não constituem uma ingerência nesse «núcleo essencial».

43

Além disso, segundo o Bundesamt e o Bundesbeauftragter, as constatações do Sächsisches Oberverwaltungsgericht quanto à forma como Y e Z praticam a sua religião na Alemanha não permitem estabelecer que estes não podem renunciar a determinadas práticas que não pertencem ao «núcleo essencial» da atividade religiosa.

44

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os processos que lhe são submetidos têm por objeto a questão de saber quais são as ingerências concretas na liberdade de religião na aceção do artigo 9.o da CEDH que podem conduzir ao reconhecimento do estatuto de refugiado na aceção do artigo 2.o, alínea d), da diretiva. Apesar de considerar que as ingerências na liberdade de religião podem constituir uma «violação grave» dos direitos humanos fundamentais na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, duvida que ingerências na liberdade de religião distintas das que atingem os elementos essenciais da identidade religiosa do interessado possam fundamentar a hipótese de uma perseguição pertinente para efeitos da concessão do estatuto de refugiado.

45

Nestas condições, o Bundesverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, formuladas em termos praticamente idênticos nos processos C-71/11 e C-99/11:

«1)

Deve o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da [d]iretiva […] ser interpretado no sentido de que nem todas as ingerências na liberdade religiosa que violem o artigo 9.o da CEDH representam um ato de perseguição na aceção da primeira [dessas disposições], apenas se verificando uma grave violação da liberdade religiosa como direito humano fundamental quando é atingido o núcleo essencial desta?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

a)

O núcleo essencial da liberdade religiosa restringe-se à profissão de fé e à prática de atos religiosos em casa ou na vizinhança ou um ato de perseguição na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da [d]iretiva […] também pode consistir no facto de o exercício da religião em público representar, no país de origem, um risco para a própria vida, integridade física ou liberdade física, levando o requerente a abdicar do referido exercício?

b)

Caso o núcleo essencial da liberdade religiosa também possa abranger a prática de determinados atos religiosos em público:

neste caso, para que se verifique uma grave violação da liberdade religiosa, é suficiente que o requerente considere que este tipo de prática de atos religiosos é imprescindível para a preservação da sua identidade religiosa;

ou é ainda necessário que a comunidade religiosa a que o requerente pertence considere a prática destes atos religiosos um elemento essencial da sua doutrina religiosa;

ou poderão mais restrições resultar ainda de outras circunstâncias, como por exemplo a situação geral que se vive no país de origem?

3)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão:

Existe um receio justificado de perseguição, na aceção do artigo 2.o, alínea c), da [d]iretiva […], quando está assente que, após o regresso ao país de origem, o requerente continuará a praticar determinados atos religiosos — não incluídos no núcleo essencial da liberdade religiosa —, apesar de estes representarem um risco para a própria vida, integridade física ou liberdade física, ou pode exigir-se ao requerente que renuncie futuramente a este tipo de atos?»

46

Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 24 de março de 2011, os processos C-71/11 e C-99/11 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

Quanto às questões prejudiciais

Observações preliminares

47

Resulta dos considerandos 3, 16 e 17 da diretiva que a Convenção de Genebra constitui a pedra angular do regime jurídico internacional de proteção dos refugiados e que as disposições da diretiva relativas às condições de concessão do estatuto de refugiado, bem como ao conteúdo desta, foram adotadas para auxiliar as autoridades competentes dos Estados-Membros a aplicar esta Convenção com base em conceitos e critérios comuns (acórdãos de 2 de março de 2010, Salahadin Abdulla e o., C-175/08, C-176/08, C-178/08 e C-179/08, Colet., p. I-1493, n.o 52, e de 17 de junho de 2010, Bolbol, C-31/09, Colet., p. I-5539, n.o 37).

48

Por conseguinte, a interpretação das disposições da diretiva deve ser efetuada à luz da sua economia geral e da sua finalidade, no respeito da Convenção de Genebra e dos outros Tratados pertinentes referidos no artigo 78.o, n.o 1, TFUE. Essa interpretação deve igualmente ser feita, como decorre do considerando 10 da diretiva, no respeito dos direitos reconhecidos pela Carta (v., neste sentido, acórdãos Salahadin Abdulla e o., já referido, n.os 53 e 54; Bolbol, já referido, n.o 38; e de 21 de dezembro de 2011, N. S. e o., C-411/10 e C-493/10, Colet., p. I-13905, n.o 75).

Quanto à primeira e segunda questões

49

Através das duas primeiras questões em cada um dos processos, que importa apreciar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva deve ser interpretado no sentido de que qualquer ingerência no direito à liberdade de religião que viole o artigo 10.o, n.o 1, da Carta é suscetível de constituir um «ato de perseguição» na aceção da referida disposição da diretiva e se, a este respeito, deve ser feita uma distinção entre o «núcleo essencial» da liberdade de religião e a sua manifestação exterior.

50

A este propósito, há que recordar que, nos termos do artigo 2.o, alínea c), da diretiva, o «refugiado» é, nomeadamente, o nacional de um país terceiro que se encontra fora do país de que é nacional, pois «[receia] com razão ser perseguido» em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social, e que não pode ou, «em virtude daquele receio», não quer pedir a «proteção» desse país.

51

Deste modo, o nacional em questão deve, em razão de circunstâncias existentes no seu país de origem e do comportamento dos agentes das perseguições, estar confrontado com o receio fundado de ser perseguido devido a, pelo menos, um dos cinco motivos enumerados na diretiva e na Convenção de Genebra, sendo um destes a sua «religião».

52

Em conformidade com o artigo 13.o da diretiva, o Estado-Membro em causa concede o estatuto de refugiado ao requerente se este preencher as condições previstas, nomeadamente, nos seus artigos 9.° e 10.°

53

O artigo 9.o da diretiva define os elementos que permitem considerar determinados atos como constituindo uma perseguição. A este propósito, o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere nas suas duas primeiras questões, precisa que os atos pertinentes devem ser «suficientemente graves», devido à sua natureza ou persistência, para constituírem uma «grave violação dos direitos humanos fundamentais», designadamente dos direitos absolutos em relação aos quais, por força do artigo 15.o, n.o 2, da CEDH, não é possível nenhuma derrogação.

54

Além disso, o artigo 9.o, n.o 1, alínea b), da diretiva precisa que um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos, que seja «suficientemente grave» para afetar o indivíduo de forma «semelhante» à referida no artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva é também considerado uma perseguição.

55

O artigo 9.o, n.o 3, da diretiva precisa que tem de haver um nexo entre os motivos de perseguição, nos quais se inclui a «religião» definida no artigo 10.o, n.o 1, alínea b), da diretiva, e os atos de perseguição.

56

O direito à liberdade de religião consagrado no artigo 10.o, n.o 1, da Carta corresponde ao direito garantido no artigo 9.o da CEDH.

57

A liberdade de religião representa um dos pilares de uma sociedade democrática e constitui um direito humano fundamental. Uma ingerência no direito à liberdade de religião pode ter uma gravidade equiparável aos casos visados no artigo 15.o, n.o 2, da CEDH, aos quais o artigo 9.o, n.o 1, da diretiva se refere, a título indicativo, para determinar os atos que devem ser considerados uma perseguição.

58

Todavia, tal não significa de modo algum que qualquer ingerência no direito à liberdade de religião garantido pelo artigo 10.o, n.o 1, da Carta constitua um ato de perseguição que obrigue as autoridades competentes a conceder o estatuto de refugiado na aceção do artigo 2.o, alínea d), da diretiva a quem for exposto à ingerência em questão.

59

Pelo contrário, resulta da redação do artigo 9.o, n.o 1, da diretiva que, para que os atos em causa possam ser considerados uma perseguição, é necessário que exista uma «violação grave» da referida liberdade que afete a pessoa em causa de maneira significativa.

60

Deste modo, estão excluídos liminarmente os atos que constituem restrições ao exercício do direito fundamental à liberdade de religião na aceção do artigo 10.o, n.o 1, da Carta, previstas pela lei, sem, porém, violarem este direito, uma vez que são abrangidos pelo artigo 52.o, n.o 1, da Carta.

61

Os atos que, na verdade, violam o direito reconhecido no artigo 10.o, n.o 1, da Carta, mas cuja gravidade não equivale à da violação dos direitos humanos fundamentais, em relação aos quais não é possível nenhuma derrogação por força do n.o 2 do artigo 15.o da CEDH, também não podem ser considerados uma perseguição na aceção do artigo 9.o, n.o 1, da diretiva e do ponto A do artigo 1.o da Convenção de Genebra.

62

Para determinar, concretamente, quais são os atos que podem ser considerados uma perseguição na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva, não é pertinente distinguir entre os atos que constituem uma ingerência no «núcleo essencial» (forum internum) do direito fundamental à liberdade de religião, que não abrange as atividades religiosas em público (forum externum), e aqueles que não afetam este alegado «núcleo essencial».

63

Esta distinção não é compatível com a definição ampla do conceito de «religião» dada pela diretiva no seu artigo 10.o, n.o 1, alínea b), que integra todos os seus componentes, sejam públicos ou privados, coletivos ou individuais. Os atos que podem constituir uma «violação grave» na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva incluem os atos graves de ingerência na liberdade do requerente não apenas de praticar o seu credo num círculo privado mas igualmente de professá-lo em público.

64

Esta interpretação é suscetível de assegurar um âmbito de aplicação do artigo 9.o, n.o 1, da diretiva que permita às autoridades competentes avaliar todo o tipo de atos de ingerência no direito fundamental à liberdade de religião para determinar se, pela sua natureza ou pelo seu caráter repetido, são suficientemente graves para poderem ser considerados uma perseguição.

65

Daqui resulta que os atos que, pela sua gravidade intrínseca, juntamente com as suas consequências para a pessoa afetada, podem ser considerados uma perseguição devem ser identificados não em função do elemento da liberdade de religião atingido, mas em função da natureza da repressão exercida sobre o interessado e das consequências desta, como observou o advogado-geral no n.o 52 das suas conclusões.

66

Por conseguinte, é a gravidade das medidas e das sanções adotadas ou suscetíveis de ser adotadas contra o interessado que determinará se uma violação do direito garantido pelo artigo 10.o, n.o 1, da Carta constitui uma perseguição na aceção do artigo 9.o, n.o 1, da diretiva.

67

Assim, uma violação do direito à liberdade de religião é suscetível de constituir uma perseguição na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva quando o requerente de asilo, devido ao exercício dessa liberdade no seu país de origem, corre um risco real, nomeadamente, de ser perseguido ou de ser submetido a tratamentos ou a penas desumanas ou degradantes por parte de um dos agentes referidos no artigo 6.o da diretiva.

68

A este respeito, importa precisar que, quando uma autoridade competente efetua, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, da diretiva, a apreciação individual de um pedido de proteção internacional, deve ter em conta todos os atos a que o requerente esteve ou corre o risco de estar exposto para determinar se, tendo em conta a sua situação pessoal, estes atos podem ser considerados uma perseguição na aceção do artigo 9.o, n.o 1, da diretiva.

69

Uma vez que o conceito de «religião» definido no artigo 10.o, n.o 1, alínea b), da diretiva abrange igualmente a participação em cerimónias públicas de culto, quer a título individual quer em conjunto com outras pessoas, a proibição de tal participação é suscetível de constituir um ato suficientemente grave na aceção do artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva e, por conseguinte, uma perseguição quando, no país de origem em causa, crie um risco real para o requerente, nomeadamente, de ser perseguido ou de ser sujeito a tratamentos ou a penas desumanas ou degradantes por parte de um dos agentes referidos no artigo 6.o da diretiva.

70

A avaliação de tal risco implica que a autoridade competente tenha em consideração uma série de elementos tanto objetivos como subjetivos. A circunstância subjetiva de que professar uma determinada prática religiosa em público, que constitui o objeto das restrições contestadas, tem especial importância para o interessado, por lhe permitir conservar a identidade religiosa, é um elemento pertinente para a apreciação do nível de risco a que o requerente está exposto no seu país de origem devido à sua religião, mesmo quando professar tal prática religiosa não constitua um elemento central para a comunidade religiosa em causa.

71

Com efeito, resulta da redação do artigo 10.o, n.o 1, alínea b), da diretiva que o âmbito de proteção do motivo de perseguição relacionado com a religião abrange tanto as formas de comportamento pessoal ou comunitário que a pessoa considere necessárias para si própria, designadamente, as que são «fundadas em credos religiosos», como as que são determinadas pela doutrina religiosa, designadamente, as que são «impostas [por estes credos]».

72

Tendo em conta as considerações precedentes, importa responder à primeira e segunda questões submetidas em cada um dos dois processos que o artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da diretiva deve ser interpretado no sentido de que:

nem toda a ingerência no direito à liberdade de religião que viole o artigo 10.o, n.o 1, da Carta é suscetível de constituir um «ato de perseguição» na aceção da referida disposição da diretiva;

a existência de um ato de perseguição pode resultar de uma ingerência na manifestação externa da referida liberdade; e,

para apreciar se uma ingerência no direito à liberdade de religião que viole o artigo 10.o, n.o 1, da Carta é suscetível de constituir um «ato de perseguição», as autoridades competentes devem verificar, tendo em conta a situação pessoal do interessado, se este, devido ao exercício dessa liberdade no seu país de origem, corre um risco real, nomeadamente, de ser perseguido ou de ser submetido a tratamentos ou a penas desumanas ou degradantes por parte de um dos agentes referidos no artigo 6.o da diretiva.

Quanto à terceira questão

73

Através da terceira questão submetida em cada um dos processos, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 2.o, alínea c), da diretiva deve ser interpretado no sentido de que o receio do requerente de ser perseguido é fundado quando lhe é possível evitar expor-se a uma perseguição no seu país de origem com a renúncia ao exercício de determinados atos religiosos.

74

Para responder a esta questão, cumpre observar que se refere a uma situação na qual o requerente, como sucede nos processos principais, ainda não foi perseguido ou alvo de ameaças diretas de perseguição devido à sua religião.

75

É a inexistência de tal «indício sério do receio fundado» dos requerentes na aceção do artigo 4.o, n.o 4, da diretiva que está na origem da necessidade de o órgão jurisdicional de reenvio saber em que medida pode ser permitido, quando o requerente não pode fundar o seu receio numa perseguição já sofrida devido à sua religião, exigir que, uma vez regressado ao seu país de origem, continue a evitar o risco real de perseguição.

76

A este respeito, importa referir que, no sistema da diretiva, as autoridades competentes, quando avaliam, em conformidade com o seu artigo 2.o, alínea c), se um requerente tem um receio fundado de ser perseguido, procuram saber se as circunstâncias estabelecidas constituem ou não uma ameaça que pode fundar o receio da pessoa em questão, atendendo à sua situação individual, de ser efetivamente objeto de atos de perseguição.

77

Esta apreciação da importância do risco que, em todos os casos, deve ser efetuada com vigilância e prudência (acórdão Salahadin Abdulla e o., já referido, n.o 90) assenta unicamente numa apreciação concreta dos factos e das circunstâncias em conformidade com as regras que figuram, designadamente, no artigo 4.o da diretiva.

78

Nenhuma destas regras indica que, na apreciação da importância do risco de sofrer efetivamente atos de perseguição num determinado contexto, é necessário tomar em consideração a possibilidade de o requerente evitar um risco de perseguição se renunciar à prática religiosa em causa e, por conseguinte, à proteção que a diretiva lhe pretende garantir pelo reconhecimento do estatuto de refugiado.

79

Daqui resulta que, a partir do momento em que esteja estabelecido que o interessado, uma vez regressado ao seu país de origem, terá uma prática religiosa que o exporá a um risco real de perseguição, lhe deve ser concedido o estatuto de refugiado em conformidade com o artigo 13.o da diretiva. O facto de que poderia evitar o risco se renunciasse a determinados atos religiosos não é, em princípio, pertinente.

80

À luz destas considerações, há que responder à terceira questão submetida em cada um dos dois processos que o artigo 2.o, alínea c), da diretiva deve ser interpretado no sentido de que o receio do requerente de ser perseguido é fundado a partir do momento em que as autoridades competentes, tendo em conta a situação pessoal do requerente, considerem que é razoável assumir que, quando regressar ao seu país de origem, irá praticar atos religiosos que o irão expor a um risco real de perseguição. Na apreciação individual de um pedido para obtenção do estatuto de refugiado, as referidas autoridades não podem razoavelmente pressupor que o requerente renunciará a estes atos religiosos.

Quanto às despesas

81

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 9.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida, deve ser interpretado no sentido de que:

nem toda a ingerência no direito à liberdade de religião que viole o artigo 10.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia é suscetível de constituir um «ato de perseguição» na aceção da referida disposição desta diretiva;

a existência de um ato de perseguição pode resultar de uma ingerência na manifestação externa da referida liberdade; e,

para apreciar se uma ingerência no direito à liberdade de religião que viole o artigo 10.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia é suscetível de constituir um «ato de perseguição», as autoridades competentes devem verificar, tendo em conta a situação pessoal do interessado, se este, devido ao exercício dessa liberdade no seu país de origem, corre um risco real, nomeadamente, de ser perseguido ou de ser submetido a tratamentos ou a penas desumanas ou degradantes por parte de um dos agentes referidos no artigo 6.o da Diretiva 2004/83.

 

2)

O artigo 2.o, alínea c), da Diretiva 2004/83 deve ser interpretado no sentido de que o receio do requerente de ser perseguido é fundado a partir do momento em que as autoridades competentes, tendo em conta a situação pessoal do requerente, considerem que é razoável assumir que, quando regressar ao seu país de origem, irá praticar atos religiosos que o irão expor a um risco real de perseguição. Na apreciação individual de um pedido para obtenção do estatuto de refugiado, as referidas autoridades não podem razoavelmente pressupor que o requerente renunciará a estes atos religiosos.

 

Assinaturas


( *1 ) * Língua do processo: alemão.