ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

19 de julho de 2012 ( *1 )

«Liberdade de estabelecimento — Livre circulação de capitais — Fiscalidade direta — Imposto sobre as sucessões — Modalidades de cálculo do imposto — Aquisição mortis causa de uma participação, como sócio único, numa sociedade de capitais estabelecida num Estado terceiro — Legislação nacional que exclui benefícios fiscais para a participação em tais sociedades»

No processo C-31/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Bundesfinanzhof (Alemanha), por decisão de 15 de dezembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de janeiro de 2011, no processo

Marianne Scheunemann

contra

Finanzamt Bremerhaven,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente de secção, U. Lõhmus (relator), A. Rosas, A. Ó Caoimh e A. Arabadjiev, juízes,

advogado-geral: V. Trstenjak,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo alemão, por T. Henze e K. Petersen, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por R. Lyal e W. Mölls, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 20 de março de 2012,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 63.°, n.o 1, TFUE e 65.° TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M. Scheunemann ao Finanzamt Bremerhaven (a seguir «Finanzamt»), a respeito do aviso de liquidação do imposto sucessório sobre uma herança que incluía, designadamente, uma participação numa sociedade de capitais estabelecida num Estado terceiro.

Quadro jurídico

O direito da União

3

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO L 178, p. 5):

«Os Estados-Membros suprimirão as restrições aos movimentos de capitais efetuados entre pessoas residentes nos Estados-Membros, sem prejuízo das disposições seguintes. A fim de facilitar a aplicação da presente diretiva, os movimentos de capitais são classificados de acordo com a nomenclatura estabelecida no anexo I.»

4

Entre os movimentos de capitais enumerados no artigo 1.o da Diretiva 88/361, o seu anexo I menciona, na rubrica XI, sob a epígrafe «Movimentos de capitais de caráter pessoal», nomeadamente, as sucessões e os legados.

O direito alemão

5

O § 1, n.o 1, ponto 1, da Lei do Imposto sobre as Sucessões e Doações (Erbschaftsteuer- und Schenkungsteuergesetz), na sua versão publicada em 27 de fevereiro de 1997 (BGBl. 1997 I, p. 378), conforme alterada pela Lei de 10 de outubro de 2007 (BGBl. 2007 I, p. 2332, a seguir «ErbStG»), prevê que «estão sujeitas ao imposto sobre as sucessões (ou doações) [...] as transmissões mortis causa».

6

Por força do § 2, n.o 1, ponto 1, da ErbStG, todos os bens do de cujus que tinha a qualidade de residente na Alemanha à data da sua morte estão sujeitos a imposto sucessório. Isto abrange igualmente os bens situados noutro Estado.

7

O § 13a, n.os 1 e 2, da ErbStG dispõe:

«1.   Os patrimónios de exploração, os patrimónios agrícolas e florestais, bem como as participações em sociedades de capitais na aceção do n.o 4, sem prejuízo do disposto no segundo período, são isentos até ao valor total de 225000 [euros]

1.

em caso de aquisição mortis causa; [...]

2.

O valor residual do património no sentido do n.o 4, após aplicação do n.o 1, será avaliado em 65%.»

8

Nos termos do § 13a, n.o 4, ponto 3, da ErbStG, a «isenção e a avaliação a um valor reduzido são aplicáveis a [...] participações numa sociedade de capitais quando, à data em que o imposto se tornou exigível, esta tiver a sua sede ou a sua direção comercial no território nacional e o de cujus ou o doador detenha uma participação direta superior a um quarto do capital nominal dessa sociedade».

9

Por força do § 13a, n.o 5, ponto 4, da ErbStG, a isenção e a avaliação a um valor reduzido são suprimidas, com efeito retroativo, se o adquirente ceder total ou parcialmente as participações na sociedade de capitais, num prazo de cinco anos a contar da sua aquisição.

10

Resulta dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça que a Administração Fiscal alemã decidiu, na sequência do acórdão de 17 de janeiro de 2008, Jäger (C-256/06, Colet., p. I-123), aplicar os benefícios previstos no § 13a, n.os 1 e 2, da ErbStG, igualmente às participações em sociedades de capitais não cotadas, com sede num Estado-Membro diferente da República Federal da Alemanha. As participações em sociedades estabelecidas fora da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu continuam a ser excluídas.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

11

M. Scheunemann, residente na Alemanha, é a única herdeira do seu pai, igualmente residente alemão, que faleceu em fevereiro de 2007. A herança, que compreendia, designadamente, uma participação, como sócio único, numa sociedade de capitais com sede no Canadá, está sujeita ao imposto sucessório alemão.

12

Por decisão de 24 de novembro de 2008, o Finanzamt fixou o imposto sucessório devido por M. Scheunemann, num montante de 299381,95 euros, considerando que o valor da participação do de cujus na sociedade de capitais em causa se elevava a 1 142 115 euros. Dado que esta sociedade não tinha a sua sede nem a sua direção comercial no território nacional nem no território de um Estado-Membro, a isenção de 225000 euros prevista no § 13a, n.o 1, da ErbStG e a avaliação a um valor reduzido, em virtude do n.o 2 da mesma norma, não foram concedidas.

13

Entendendo que tinha direito a esses benefícios fiscais, M. Scheunemann reclamou da decisão do Finanzamt.

14

Tendo sido indeferida a sua reclamação, M. Scheunemann interpôs recurso para o Finanzgericht Bremen, que lhe negou provimento. Segundo esse órgão jurisdicional, os benefícios fiscais previstos no § 13a, n.o 4, ponto 3, da ErbStG devem ser apreciados à luz, não da livre circulação de capitais mas unicamente da liberdade de estabelecimento, dado que a participação mínima do de cujus de mais de um quarto do capital nominal da sociedade de capitais, como prevista por esta disposição, confere a possibilidade de influenciar esta sociedade. Ora, a liberdade de estabelecimento não é aplicável a uma participação numa sociedade situada num Estado terceiro, como a que está em causa no processo principal.

15

O Bundesfinanzhof, no qual foi interposto recurso de «Revision» da referida sentença, considera que as disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento não são aplicáveis à situação em causa. A este respeito, o referido órgão jurisdicional assinala que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o regime fiscal das sucessões, seja qual for a sua natureza, está abrangido pelo âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais. Por conseguinte, o referido órgão jurisdicional interroga-se sobre se estas disposições se opõem à legislação em causa no processo principal.

16

Nestas condições, o Bundesfinanzhof suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo [63.°], n.o 1, [TFUE], em conjugação com o artigo [65.° TFUE], ser interpretado no sentido de que se opõe [ao regime] de um Estado-Membro que, relativamente ao cálculo do imposto sucessório sobre uma herança, prevê que uma participação, incluída no património privado, como sócio único de uma sociedade de capitais com sede e direção no Canadá, seja tomada em consideração pelo seu valor integral, ao passo que a aquisição de uma participação deste tipo numa sociedade de capitais com sede ou direção no território nacional beneficia de uma isenção em função dos bens e o valor residual é considerado em apenas 65% do seu montante?»

Quanto à questão prejudicial

17

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais devem ser interpretadas no sentido de que se opõem à legislação de um Estado-Membro que exclui, para fins de cálculo do imposto sucessório, a aplicação de certos benefícios fiscais a uma herança sob a forma de participação numa sociedade de capitais estabelecida num Estado terceiro, ao passo que os confere, em caso de herança de tal participação, quando a sede da sociedade está situada num Estado-Membro.

18

A título liminar, quer o Governo alemão quer a Comissão Europeia sustentam que a legislação nacional em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação, não da livre circulação de capitais mas da liberdade de estabelecimento, porque a participação em causa no processo principal permite exercer uma influência efetiva nas decisões da sociedade em questão.

19

Por conseguinte, importa determinar, antes de mais, se à referida legislação é aplicável o artigo 49.o TFUE, relativo à liberdade de estabelecimento, ou o artigo 63.o TFUE, relativo à livre circulação de capitais.

20

A este respeito, resulta de jurisprudência assente que, para determinar se uma legislação nacional é abrangida pelo âmbito de aplicação de uma ou outra das liberdades de circulação, há que ter em conta o objeto da legislação em causa (v., neste sentido, acórdãos de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C-436/08 e C-437/08, Colet., p. I-305, n.o 33, e de 15 de setembro de 2011, Halley, C-132/10, Colet., p. I-8353, n.o 17).

21

No processo principal, o objeto da medida controvertida é estabelecer um tratamento fiscal das sucessões que compreenda, designadamente, uma participação em sociedades de capitais.

22

Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que ao tratamento fiscal das sucessões também é aplicável, em princípio, o artigo 63.o TFUE, relativo à livre circulação de capitais. Com efeito, as sucessões, que consistem na transmissão, para uma ou mais pessoas, do património deixado por uma pessoa falecida, inserindo-se na rubrica XI do anexo I da Diretiva 88/361, intitulada «Movimentos de capitais de caráter pessoal», são movimentos de capitais na aceção do artigo 63.o TFUE (v., designadamente, acórdãos de 11 de setembro de 2008, Eckelkamp e o., C-11/07, Colet., p. I-6845, n.o 39, e Arens-Sikken, C-43/07, Colet., p. I-6887, n.o 30; de 15 de outubro de 2009, Busley e Cibrian Fernandez, C-35/08, Colet., p. I-9807, n.o 18; e de 10 de fevereiro de 2011, Missionswerk Werner Heukelbach, C-25/10, Colet., p. I-497, n.o 16).

23

Não obstante, segundo jurisprudência constante, uma legislação nacional que é aplicável exclusivamente às participações que permitem exercer uma influência efetiva nas decisões de uma sociedade e determinar as respetivas atividades está abrangida pelas disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento. Em contrapartida, as disposições nacionais aplicáveis a participações efetuadas com a única finalidade de realizar uma aplicação financeira, sem intenção de influenciar a gestão e o controlo da empresa, devem ser examinadas exclusivamente à luz da liberdade de circulação de capitais (acórdão Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, já referido, n.o 35 e jurisprudência referida).

24

Decorre do que precede que, para determinar em que liberdade deve ser enquadrada a legislação nacional em causa no processo principal, importa examinar se a participação visada pela referida legislação é suficiente para permitir ao seu detentor exercer uma influência efetiva nas decisões da sociedade e determinar as suas atividades.

25

No caso vertente, resulta da leitura combinada do § 13a, n.os 1 e 2, da ErbStG e do n.o 4, ponto 3, da mesma norma que a possibilidade de obter os benefícios fiscais em causa está subordinada à condição de se deter uma participação direta superior a 25% no capital da sociedade.

26

O Governo alemão alega que, em virtude do direito alemão, tal participação no capital de uma sociedade permite exercer uma influência efetiva nas decisões desta e determinar as suas atividades. Com efeito, tal participação confere ao acionista uma minoria de bloqueio em caso de decisões importantes que determinem o curso a seguir pela empresa.

27

Afirma que o objetivo dos benefícios fiscais previstos pelas disposições nacionais em causa no processo principal consiste especialmente em incitar o herdeiro de participações importantes numa sociedade a envolver-se na gestão desta, para garantir, no fim de contas, a sobrevivência da empresa e a manutenção dos postos de trabalho.

28

Este objetivo seria garantido pela supressão retroativa dos benefícios fiscais em causa, prevista no § 13a, n.o 5, da ErbStG, para a hipótese de o herdeiro ceder, no todo ou em parte, as suas participações na sociedade, no prazo de cinco anos a contar da sua aquisição.

29

Importa assinalar que, para a concessão dos benefícios fiscais em causa no processo principal, o legislador alemão fixou um limiar de participação que permite ao detentor das participações numa sociedade de capitais influenciar a sua gestão e o seu controlo e estabeleceu condições destinadas a garantir que o referido detentor não atua unicamente com a intenção de realizar uma aplicação financeira.

30

Por conseguinte, há que considerar que a legislação em causa no processo principal afeta de maneira preponderante a liberdade de estabelecimento e é abrangida, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, pelo âmbito de aplicação apenas das disposições do Tratado relativas a essa liberdade. Supondo que tal medida nacional tenha efeitos restritivos na livre circulação de capitais, esses efeitos devem ser considerados a consequência inevitável de um eventual entrave à liberdade de estabelecimento e não justificam um exame da referida medida à luz das disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais (v., neste sentido, acórdão de 25 de outubro de 2007, Geurts e Vogten, C-464/05, Colet., p. I-9325, n.o 16 e jurisprudência referida).

31

De qualquer modo, no que toca aos factos no processo principal, é pacífico que o de cujus detinha uma participação de 100% no capital da sociedade em causa, pelo que podia, indubitavelmente, exercer uma influência efetiva nas decisões desta e determinar as suas atividades.

32

Por conseguinte, não é necessário examinar a medida nacional em causa no processo principal à luz das disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais.

33

Quanto ao capítulo do Tratado relativo à liberdade de estabelecimento, não contém nenhuma disposição que estenda o âmbito de aplicação das suas disposições a situações que respeitem à participação detida numa sociedade com sede num país terceiro (v., neste sentido, despacho de10 de maio de 2007, A e B, C-102/05, Colet., p. I-3871, n.o 29, e acórdão de 24 de maio de 2007, Holböck, C-157/05, Colet., p. I-4051, n.o 28). Ora, no processo principal, trata-se de uma participação numa sociedade de capitais com sede no Canadá.

34

Por conseguinte, os artigos 49.° TFUE e seguintes não se aplicam a uma situação como a que está em causa no processo principal.

35

Tendo em conta o conjunto das considerações precedentes, há que responder à questão colocada que a legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que exclui, para fins de cálculo do imposto sucessório, a aplicação de certos benefícios fiscais a uma herança sob a forma de participação numa sociedade de capitais estabelecida num Estado terceiro, ao passo que confere os mesmos benefícios, em caso de herança de tal participação, quando a sede da sociedade se situa num Estado-Membro, afeta de maneira preponderante o exercício da liberdade de estabelecimento no sentido dos artigos 49.° TFUE e seguintes, dado que esta participação permite ao seu detentor exercer uma influência efetiva nas decisões da referida sociedade e determinar as suas atividades. Os referidos artigos não são aplicáveis a uma situação relativa à participação detida numa sociedade cuja sede se situa num Estado terceiro.

Quanto às despesas

36

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

A legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que exclui, para fins de cálculo do imposto sucessório, a aplicação de certos benefícios fiscais a uma herança sob a forma de participação numa sociedade de capitais estabelecida num Estado terceiro, ao passo que confere os mesmos benefícios, em caso de herança de tal participação, quando a sede da sociedade se situa num Estado-Membro, afeta de maneira preponderante o exercício da liberdade de estabelecimento no sentido dos artigos 49.° TFUE e seguintes, dado que esta participação permite ao seu detentor exercer uma influência efetiva nas decisões da referida sociedade e determinar as suas atividades. Os referidos artigos não são aplicáveis a uma situação relativa à participação detida numa sociedade cuja sede se situa num Estado terceiro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.