Processo C‑157/10

Banco Bilbao Vizcaya Argentaria SA

contra

Administración General del Estado

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Supremo)

«Livre circulação de capitais – Imposto sobre as sociedades – Convenção destinada a evitar a dupla tributação – Proibição de deduzir o imposto exigível mas não cobrado noutros Estados‑Membros»

Sumário do acórdão

1.        Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Identificação dos elementos relevantes de direito da União

(Artigo 267.° TFUE)

2.        Livre circulação de capitais – Restrições – Desvantagens decorrentes do exercício paralelo das competências fiscais dos Estados‑Membros – Admissibilidade – Requisito – Inexistência de discriminação

(Artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE)

3.        Livre circulação de capitais – Restrições – Legislação fiscal – Imposto sobre as sociedades – Sistema de prevenção da dupla tributação económica dos rendimentos, recebidos na forma de juros, obtidos noutro Estado‑Membro

[Tratado CEE, artigo 67.° (que passou a artigo 67.° do Tratado CE, revogado pelo Tratado de Amesterdão); artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE; Directiva 88/361 do Conselho, artigo 1.°]

1.        Incumbe ao Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação com os órgãos jurisdicionais nacionais, instituído pelo artigo 267.° TFUE, dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta óptica, compete ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular a questão que é submetida. Do mesmo modo, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União a que o juiz nacional não fez referência nas suas questões prejudiciais.

(cf. n.os 18‑19)

2.        Na falta de medidas de unificação ou de harmonização da União, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar, por via convencional ou unilateral, os critérios de repartição do seu poder tributário, de modo a, nomeadamente, eliminar a dupla tributação. Os inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes Estados‑Membros, desde que esse exercício não seja discriminatório, não constituem restrições às liberdades de circulação. Assim, embora os Estados‑Membros não sejam obrigados a adaptar o seu próprio sistema fiscal aos diferentes sistemas de tributação dos outros Estados‑Membros, nomeadamente para eliminar a dupla tributação, a fortiori, desde que a sua legislação não seja discriminatória, estes Estados‑Membros não são obrigados a adaptar a sua legislação fiscal para permitir ao contribuinte beneficiar de uma vantagem fiscal atribuída noutro Estado‑Membro no exercício das suas competências fiscais.

(cf. n.os 31, 38‑39)

3.        O artigo 67.° do Tratado CEE e o artigo 1.° da Directiva 88/361, para a execução do artigo 67.° do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão], não se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro que, no âmbito do imposto sobre as sociedades e das regras destinadas a evitar a dupla tributação, proíbe a dedução do montante do imposto devido noutros Estados‑Membros da União Europeia sobre os rendimentos obtidos no seu território e abrangidos por esse imposto, quando, apesar da sua exigibilidade, esses montantes não sejam pagos em razão de uma isenção, de uma bonificação ou de qualquer outro benefício fiscal, desde que essa legislação não seja discriminatória relativamente ao tratamento a que são sujeitos os lucros obtidos no referido Estado‑Membro, facto que incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar.

(cf. n.° 46 e disp.)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

8 de Dezembro de 2011 (*)

«Livre circulação de capitais – Imposto sobre as sociedades – Convenção destinada a evitar a dupla tributação – Proibição de deduzir o imposto exigível mas não cobrado noutros Estados‑Membros»

No processo C‑157/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Tribunal Supremo (Espanha), por decisão de 25 de Janeiro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 2 de Abril de 2010, no processo

Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, SA

contra

Administración General del Estado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, M. Safjan, M. Ilešič, E. Levits (relator) e J.‑J. Kasel, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo espanhol, por M. Muñoz Pérez, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek e V. Štencel, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo dinamarquês, por C. Vang, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e C. Blaschke, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo estónio, por M. Linntam, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e J. Gstalter, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e J. Langer, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por M. Szpunar, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo sueco, por A. Falk e S. Johannesson, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por H. Walker, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por R. Lyal e C. Urraca Caviedes, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, SA (a seguir «BBVA»), à Administración General del Estado, pelo facto de esta ter recusado autorizar o BBVA a deduzir do montante do imposto sobre as sociedades devido pelo exercício fiscal de 1991, a título dos seus rendimentos mundiais, o montante do imposto devido na Bélgica sobre os lucros obtidos neste Estado‑Membro, mas não pago em razão de uma isenção.

 Quadro jurídico

 Direito comunitário

3        O artigo 67.° do Tratado CEE (que passou a artigo 67.° do Tratado CE, revogado, por sua vez, pelo Tratado de Amesterdão), em vigor à data dos factos no processo principal, tinha a seguinte redacção:

«1.      Os Estados‑Membros suprimirão progressivamente entre si, durante o período de transição, e na medida em que tal for necessário ao bom funcionamento do mercado comum, as restrições aos movimentos de capitais pertencentes a pessoas residentes nos Estados‑Membros, bem como as discriminações de tratamento em razão da nacionalidade ou da residência das partes, ou do lugar do investimento.

[...]»

4        O artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67.° do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão] (JO L 178, p. 5), dispõe:

«Os Estados‑Membros suprimirão as restrições aos movimentos de capitais efectuados entre pessoas residentes nos Estados‑Membros, sem prejuízo das disposições seguintes. A fim de facilitar a aplicação da presente directiva, os movimentos de capitais são classificados de acordo com a nomenclatura estabelecida no anexo I.»

5        O artigo 6.°, n.° 2, da Directiva 88/361 autoriza, nomeadamente, o Reino de Espanha a manter temporariamente restrições aos movimentos de capitais enumerados no anexo IV desta directiva, nas condições e prazos previstos no referido anexo.

 Direito interno espanhol

6        O artigo 57.°, n.° 1, da Lei Geral Tributária 230/1963 (Ley General Tributaria 230/1963), de 28 de Dezembro de 1963 (BOE n.° 313, de 31 de Dezembro de 1963, p. 18248), dispunha:

«Quando cumpra deduzir ao montante do imposto os montantes devidos ou pagos em relação a outro ou outros cobrados anteriormente, estes serão deduzidos integralmente, ainda que tenham sido objecto de isenção ou bonificação.»

7        A Lei 61/1978, relativa ao imposto sobre as sociedades (Ley 61/1978 del Impuesto sobre Sociedades), de 27 de Dezembro de 1978 (BOE n.° 312, de 30 de Dezembro de 1978, p. 24429), previa, no seu artigo 24.°, n.° 4:

«Em caso de sujeição a imposto, quando os proventos do sujeito passivo abrangerem rendimentos auferidos e tributados no estrangeiro, será deduzida a menor das duas quantias seguintes:

a)      A importância efectivamente paga no estrangeiro em razão de tributação de natureza idêntica ou análoga a este imposto.

b)      A importância do imposto a pagar em Espanha caso os rendimentos fossem auferidos em território espanhol.»

 Convenção destinada a evitar a dupla tributação

8        A Convenção entre o Reino de Espanha e o Reino da Bélgica destinada a evitar a dupla tributação e a regular certas questões em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o património, celebrada em Bruxelas, em 24 de Setembro de 1970, ratificada pelo Reino de Espanha, em 28 de Maio de 1971 (BOE n.° 258, de 27 de Outubro de 1972, p. 19176, a seguir «convenção destinada a evitar a dupla tributação»), aplicável à data dos factos no processo principal, previa, no seu artigo 11.°:

«1.      Os lucros provenientes de um Estado contratante, atribuídos a um residente de outro Estado contratante, são tributáveis nesse outro Estado.

2.      Esses lucros podem, contudo, ser tributados no Estado contratante de que provêm, segundo a legislação deste Estado, não podendo o imposto assim fixado exceder 15% do seu montante.

[...]»

9        Nos termos do artigo 23.° desta convenção:

«1.      Quando um residente de um Estado contratante aufere rendimentos não previstos nos n.os 3 e 4, infra, tributáveis no outro Estado contratante em conformidade com as disposições da Convenção, o primeiro Estado isenta estes rendimentos de imposto [...].

[...]

3.      [...] [Q]uando um residente de um Estado contratante aufere rendimentos tributáveis noutro Estado contratante ao abrigo do artigo 10.°, n.° 2, do artigo 11.°, n.os 2 e 7, ou do artigo 12.°, n.os 2 e 6, o primeiro Estado concede uma dedução sobre o imposto devido por esse residente sobre esses rendimentos, calculada sobre o montante dos rendimentos que está incluído na matéria colectável em nome do residente e cuja taxa não pode ser inferior à taxa do imposto cobrado no outro Estado contratante sobre os referidos rendimentos [...]»

 Factos na origem do litígio principal e questão prejudicial

10      O BBVA é a sociedade dominante do Grupo Consolidado 2/82. No sistema jurídico espanhol, um grupo consolidado é uma unidade formada para efeitos fiscais por um conjunto de sociedades, uma das quais domina as restantes.

11      Por decisão de 24 de Outubro de 1997, adoptada na sequência de verificações e inspecções respeitantes ao imposto sobre as sociedades relativo ao exercício de 1991, e considerando que, em conformidade com as disposições do artigo 24.°, n.° 4, da Lei 61/1978, apenas é dedutível o montante dos impostos «efectivamente» pago, a Oficina Nacional de Inspección aumentou em 6 750 405 ESP (40 570,75 euros) a matéria colectável declarada pelo BBVA. Este montante correspondia ao que o BBVA tinha deduzido do imposto sobre as sociedades devido na Bélgica sobre os lucros auferidos nesse Estado‑Membro, apesar de este último imposto não ter sido pago por ter sido objecto de isenção.

12      A decisão da Oficina Nacional de Inspección foi confirmada, em 11 de Maio de 2001, por decisão do Tribunal Económico‑Administrativo Central (organismo administrativo revisor). Tendo sido negado provimento, por acórdão de 26 de Junho de 2003, ao recurso dessa decisão interposto pelo BBVA na Secção de Contencioso Administrativo da Audiencia Nacional, o BBVA interpôs recurso no Tribunal Supremo.

13      No seu recurso, o BBVA reivindicava o direito a deduzir do montante do imposto sobre as sociedades, que, em Espanha, incide sobre os seus rendimentos mundiais, o montante do imposto devido na Bélgica sobre os lucros obtidos neste Estado‑Membro e que o recorrente não pagou devido a uma isenção.

14      O Tribunal Supremo realça que o direito interno espanhol, como interpretado nos seus últimos acórdãos, não permite que o BBVA deduza do montante do imposto sobre as sociedades, devido em Espanha, o montante do imposto devido na Bélgica, quando este último não foi pago devido a uma isenção. A mesma conclusão decorre do artigo 23.°, n.° 3, da convenção destinada a evitar a dupla tributação.

15      O referido órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas a respeito da compatibilidade desse regime com o princípio da livre circulação de capitais, na medida em que as sociedades, com sede em Espanha, que fazem investimentos na Bélgica e que daí retiram rendimentos, perdem dessa forma a vantagem fiscal atribuída pelas autoridades belgas, pois acabam por pagar no Estado‑Membro da sua sede social o montante dos impostos sobre os rendimentos de que eram devedoras, mas relativamente aos quais beneficiaram de uma isenção no país de investimento.

16      Nestas condições, o Tribunal Supremo decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça:

«Os artigos 63.° [TFUE] e 65.° [TFUE] devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional (adoptada unilateralmente ou por força de uma convenção bilateral destinada a evitar a dupla tributação internacional) que, relativamente ao imposto sobre as sociedades e no respeito das normas destinadas a evitar essa dupla tributação, proíbe a dedução do imposto devido noutros Estados‑Membros da União Europeia por rendimentos sujeitos ao referido imposto e auferidos no território destes quando, apesar da tributação, o respectivo montante não seja pago em razão de isenção, bonificação ou de qualquer outro benefício fiscal?»

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto à admissibilidade

17      O Governo português alega que o pedido de decisão prejudicial deve ser julgado inadmissível pelo facto de, tendo em conta as regras de aplicação do direito no tempo, a interpretação dos artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE, solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, ser irrelevante para a solução do litígio no processo principal, que respeita ao exercício fiscal de 1991. Com efeito, os artigos 73.°‑B e 73.°‑D do Tratado CE (que passaram, respectivamente, a artigos 56.°‑CE e 58.°‑CE) apenas foram inseridos no Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia pelo Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht, em 7 de Fevereiro de 1992.

18      A este respeito, importa recordar que é de jurisprudência constante que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.° TFUE, compete a este dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido e que, nesta óptica, compete ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe foram submetidas (v., nomeadamente, acórdãos de 4 de Maio de 2006, Haug, C‑286/05, Colect., p. I‑4121, n.° 17, e de 11 de Março de 2008, Jager, C‑420/06, Colect., p. I‑1315, n.° 46).

19      Do mesmo modo, segundo jurisprudência igualmente constante, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União a que o juiz nacional não fez referência nas suas questões prejudiciais (v., nomeadamente, acórdãos de 12 de Outubro de 2004, Wolff & Müller, C‑60/03, Colect., p. I‑9553, n.° 24; de 7 de Julho de 2005, Weide, C‑153/03, Colect., p. I‑6017, n.° 25; e de 23 de Fevereiro de 2006, van Hilten‑van der Heijden, C‑513/03, Colect., p. I‑1957, n.° 26).

20      Com efeito, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitam para decidir os litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais (v. acórdão de 19 de Novembro de 2002, Strawson e Gagg & Sons, C‑304/00, Colect., p. I‑10737, n.° 58, e acórdão Jager, já referido, n.° 47).

21      Na medida em que o Tribunal de Justiça tem competência para responder à questão prejudicial, tendo em conta as disposições de direito aplicáveis aos factos na origem do litígio no processo principal, há que julgar improcedente a excepção de inadmissibilidade invocada pelo Governo português.

 Quanto ao mérito

 Observações preliminares

22      O processo principal diz respeito ao exercício fiscal de 1991, ou seja, a uma situação factual e jurídica anterior à entrada em vigor do Tratado FUE. As regras em matéria de livre circulação de capitais, aplicáveis à data dos factos no processo principal, eram compostas pelo artigo 67.° do Tratado CEE e pela Directiva 88/361, adoptada para a execução do referido artigo.

23      Daqui decorre que é à luz destas disposições que se deve responder à questão prejudicial colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

24      A este respeito, importa recordar que a Directiva 88/361 procedeu à liberalização completa dos movimentos de capitais e que o seu artigo 1.°, n.° 1, cujo efeito directo foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça, impôs aos Estados‑Membros a obrigação de suprimir todas as restrições aos movimentos de capitais (v. acórdão de 11 de Dezembro de 2003, Barbier, C‑364/01, Colect., p. I‑15013, n.° 57 e jurisprudência referida).

25      Contudo, o artigo 6.°, n.° 2, da Directiva 88/361 permitia ao Reino de Espanha manter até 31 de Dezembro de 1992 as restrições a certos movimentos de capitais constantes das listas III e IV do anexo IV desta directiva.

26      Daqui decorre que, em primeiro lugar, há que verificar se uma legislação como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à livre circulação de capitais na acepção do artigo 1.°, n.° 1, da Directiva 88/361.

27      Só no caso de a legislação em causa no processo principal ter por efeito restringir a livre circulação de capitais é que o órgão jurisdicional de reenvio deve, em segundo lugar, verificar se os movimentos de capitais que originaram o pagamento dos lucros em causa no processo principal são abrangidos pela excepção prevista no artigo 6.°, n.° 2, da Directiva 88/361, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio é o único competente para fixar a matéria de facto e determinar a natureza e a origem dos lucros obtidos pelo BBVA na Bélgica.

 Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

28      Importa recordar que, embora a fiscalidade directa seja da competência dos Estados‑Membros, estes devem, todavia, exercer essa competência cumprindo o direito da União (v. acórdãos de 14 de Fevereiro de 1995, Schumacker, C‑279/93, Colect., p. I‑225, n.° 21; de 11 de Agosto de 1995, Wielockx, C‑80/94, Colect., p. I‑2493, n.° 16; de 6 de Junho de 2000, Verkooijen, C‑35/98, Colect., p. I‑4071, n.° 32; e acórdão Barbier, já referido, n.° 56).

29      Compete a cada Estado‑Membro organizar, com observância do direito da União, o seu sistema de tributação dos rendimentos de capitais e definir, nesse âmbito, a matéria colectável e a taxa de tributação aplicáveis ao beneficiário desses rendimentos (v., por analogia, acórdãos de 16 de Julho de 2009, Damseaux, C‑128/08, Colect., p. I‑6823, n.° 25, e de 10 de Fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C‑436/08 e C‑437/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 167 e jurisprudência referida).

30      Assim sendo, os lucros pagos por um devedor estabelecido num Estado‑Membro a um beneficiário estabelecido noutro Estado‑Membro podem ser objecto de dupla tributação jurídica, sempre que os dois Estados‑Membros decidam exercer a sua competência fiscal e tributar os referidos lucros, aplicando‑lhes, o primeiro, uma retenção na fonte e incluindo‑os, o segundo, na matéria colectável do beneficiário.

31      Na falta de medidas de unificação ou de harmonização da União, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar, por via convencional ou unilateral, os critérios de repartição do seu poder tributário, de modo a, nomeadamente, eliminar a dupla tributação (acórdãos de 12 de Maio de 1998, Gilly, C‑336/96, Colect., p. I‑2793, n.os 24 e 30; de 21 de Setembro de 1999, Saint‑Gobain ZN, C‑307/97, Colect., p. I‑6161, n.° 57; de 8 de Novembro de 2007, Amurta, C‑379/05, Colect., p. I‑9569, n.° 17; e de 20 de Maio de 2008, Orange European Smallcap Fund, C‑194/06, Colect., p. I‑3747, n.° 32). Compete‑lhes tomar as medidas necessárias para evitar situações de dupla tributação, utilizando, nomeadamente, os critérios seguidos na prática fiscal internacional (v. acórdão de 14 de Novembro de 2006, Kerckhaert e Morres, C‑513/04, Colect., p. I‑10967, n.° 23).

32      No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que tais medidas preventivas da dupla tributação dos lucros foram introduzidas na ordem jurídica espanhola, por um lado, pela convenção destinada a evitar a dupla tributação e, por outro, pela legislação espanhola.

33      Assim, o artigo 23.°, n.° 3, da referida convenção previa que o Reino de Espanha concedesse uma dedução sobre o imposto devido por um residente neste Estado‑Membro sobre os rendimentos provenientes da Bélgica, calculada sobre o montante desses rendimentos que está incluído na matéria colectável em nome desse residente e cuja taxa não podia ser inferior à taxa do imposto cobrado na Bélgica sobre os referidos rendimentos.

34      Por seu lado, o artigo 24.°, n.° 4, da Lei 61/1978 previa, no que respeita aos rendimentos auferidos e tributados no estrangeiro, a dedução do menor dos montantes seguintes, concretamente, ou a importância efectivamente paga no estrangeiro em razão de tributação de natureza idêntica ou análoga a este imposto, ou do montante do imposto a pagar em Espanha, caso os rendimentos fossem auferidos em território espanhol.

35      No âmbito do litígio no processo principal, o BBVA pede, contudo, que o montante do imposto devido na Bélgica sobre os lucros obtidos neste Estado‑Membro, mas não pago devido a uma isenção, seja deduzido do montante do imposto sobre as sociedades devido em Espanha.

36      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a interpretação das disposições da convenção destinada a evitar a dupla tributação e da legislação interna espanhola no sentido de que só um imposto efectivamente pago noutro Estado‑Membro pode ser deduzido do imposto devido em Espanha poderá dissuadir as sociedades estabelecidas em Espanha de investirem os seus capitais noutro Estado‑Membro.

37      Importa constatar, por conseguinte, que a desvantagem alegadamente sofrida pelo BBVA no caso em apreço consiste, não na dupla tributação dos lucros por ele auferidos, os quais só foram tributados em Espanha, mas na impossibilidade de beneficiar, para o cálculo do imposto devido em Espanha, da vantagem fiscal sob a forma de isenção concedida pela legislação belga.

38      Ora, o Tribunal de Justiça já decidiu que os inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes Estados‑Membros, desde que esse exercício não seja discriminatório, não constituem restrições às liberdades de circulação (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kerckhaert e Morres, n.os 19, 20 e 24, Orange European Smallcap Fund, n.os 41, 42 e 47, e Damseaux, n.° 27).

39      Assim, embora os Estados‑Membros não sejam obrigados a adaptar o seu próprio sistema fiscal aos diferentes sistemas de tributação dos outros Estados‑Membros, nomeadamente para eliminar a dupla tributação (v., acórdão de 12 de Fevereiro de 2009, Block, C‑67/08, Colect., p. I‑883, n.° 31), a fortiori, desde que a sua legislação não seja discriminatória, estes Estados‑Membros não são obrigados a adaptar a sua legislação fiscal para permitir ao contribuinte beneficiar de uma vantagem fiscal atribuída noutro Estado‑Membro no exercício das suas competências fiscais.

40      Importa, por conseguinte, verificar se, em aplicação de uma legislação como a que está em causa no processo principal, os lucros obtidos noutro Estado‑Membro não são tratados de forma discriminatória relativamente aos obtidos em Espanha.

41      A este respeito, resulta de jurisprudência constante que uma discriminação pode consistir não só na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis mas também na aplicação da mesma regra a situações diferentes (v. acórdãos Schumacker, já referido, n.°  30; de 29 de Abril de 1999, Royal Bank of Scotland, C‑311/97, Colect., p. I‑2651, n.° 26; e Kerckhaert e Morres, já referido, n.° 19).

42      Ora, à luz da legislação fiscal do Estado de residência, a posição de um contribuinte que aufere lucros não se torna necessariamente diferente pelo simples facto de os receber de um devedor com sede noutro Estado‑Membro, o qual, no exercício da respectiva competência fiscal, pode sujeitar esses lucros a retenção na fonte, a título do imposto sobre o rendimento (v., neste sentido, acórdão Kerckhaert e Morres, já referido, n.° 19, e de 6 de Dezembro de 2007, Columbus Container Services, C‑298/05, Colect., p. I‑10451, n.° 42).

43      É certo que, no caso em apreço, não foi invocado no Tribunal de Justiça um tratamento discriminatório dos lucros auferidos noutro Estado‑Membro relativamente aos lucros de origem espanhola.

44      Contudo, resulta do quadro jurídico, como apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio, que a Lei 230/1963 dispõe, no seu artigo 57.°, n.° 1, que, quando cumpra deduzir do montante do imposto os montantes devidos ou pagos por um ou vários outros impostos anteriormente cobrados, esses montantes serão integralmente deduzidos, ainda que tenham sido objecto de isenção ou bonificação.

45      Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar o direito nacional, verificar se, tendo em conta as modalidades de tributação dos lucros obtidos em Espanha, a referida disposição da Lei 230/1963 é aplicável a esses lucros e se, nesse caso, o tratamento reservado aos lucros obtidos noutro Estado‑Membro não é discriminatório em relação àquele a que são sujeitos os lucros obtidos em Espanha, no que respeita à possibilidade de deduzir um imposto devido mas não pago.

46      Atendendo a todas as considerações precedentes, deve responder‑se à questão colocada no sentido de que o artigo 67.° do Tratado CEE e o artigo 1.° da Directiva 88/361 não se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, no âmbito do imposto sobre as sociedades e das regras destinadas a evitar a dupla tributação, proíbe a dedução do montante do imposto devido noutros Estados‑Membros da União sobre os rendimentos obtidos no seu território e abrangidos por esse imposto, quando, apesar da sua exigibilidade, esses montantes não sejam pagos em razão de uma isenção, de uma bonificação ou de qualquer outro benefício fiscal, desde que essa legislação não seja discriminatória relativamente ao tratamento a que são sujeitos os lucros obtidos no referido Estado‑Membro, facto que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 Quanto às despesas

47      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

O artigo 67.° do Tratado CEE e o artigo 1.° da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67.° do Tratado [artigo revogado pelo Tratado de Amesterdão], não se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que, no âmbito do imposto sobre as sociedades e das regras destinadas a evitar a dupla tributação, proíbe a dedução do montante do imposto devido noutros Estados‑Membros da União Europeia sobre os rendimentos obtidos no seu território e abrangidos por esse imposto, quando, apesar da sua exigibilidade, esses montantes não sejam pagos em razão de uma isenção, de uma bonificação ou de qualquer outro benefício fiscal, desde que essa legislação não seja discriminatória relativamente ao tratamento a que são sujeitos os lucros obtidos no referido Estado‑Membro, facto que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assinaturas


* Língua do processo: espanhol.